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O flagrante preparado

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No dia 18 de outubro de 2009, Evandro João da Silva, coordenador da ONG Afro-Reggae, foi alvo do crime de latrocínio no Rio de Janeiro. Dias depois, imagens de circuito de segurança causaram perplexidade e repugnância na sociedade brasileira: policiais militares supostamente se omitiram no dever de prender os criminosos, tomaram-lhe os bens subtraídos e não socorreram a vítima. Eis mais um capítulo da (in)segurança pública, que se consolida como um dos maiores problemas brasileiros, sobretudo quando a criminalidade envolve aquele que justamente detém a prerrogativa da fiel aplicação da lei: o agente público.

Nesse cenário, emerge a velha pergunta: o que fazer para identificar, punir e expurgar dos quadros oficiais agentes públicos criminosos? A resposta parte da premissa de que os atuais meios legais de persecução criminal são ineficientes e obsoletos para tanto. Ou seja, representação por abuso de autoridade (art. 2º da Lei 4.898/65), controle interno de corregedorias/auditorias, interceptação telefônica (Lei 9.296/96), controle externo pelo Ministério Público (art. 129, VII, da CF/1988) e ação controlada (art. 2º, II, da Lei 9.034/95) são medidas insuficientes.

Para piorar, uma pretensa evolução legislativa encontraria um obstáculo poderoso: o paradigma garantista da jurisprudência brasileira, cujo maior expoente é o Enunciado 145 da súmula do STF. Segundo ele, não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a consumação, o que significa que se alguma outra vítima desses dois policiais os tivesse denunciado por episódio anterior semelhante, não seria possível à autoridade policial fazer uso da inteligente técnica policial de "jogar uma isca" para testar a reação dos policiais e "tirar a limpo" a notícia-crime. Caso os policiais testados reagissem criminosamente, como no episódio do Rio, mostrando inaptidão para o exercício da atividade de segurança pública, as provas obtidas seriam vistas como ilícitas pelos juízes brasileiros.

A sociedade civil tem dificuldade de compreender isso, mesmo que valorize direitos fundamentais. É que condutas criminosas advindas de agentes públicos soam como contradição, porque realmente são incompatíveis com a natureza do cargo público. O agente público é quem melhor deveria conhecer os limites legais. Hoje, uma proposta como essa, de não aplicar o Enunciado 145 de modo excepcional para permitir o monitoramento de agentes públicos, que fazem compromisso de lisura para assumir as responsabilidades do cargo, é rejeitada no mundo jurídico. O argumento técnico para tanto, em linhas gerais, é que tudo seria ilusório (crime de ensaio); não teria havido risco real ao bem jurídico, que esteve o tempo todo fora de perigo.

O STF é o espaço da máxima razão no ordenamento democrático brasileiro. Mas, fez uma opção penal técnica que testa a tolerância moral da sociedade. A jurisprudência que prestigia o garantismo sem ponderação simplesmente não combina com os níveis de danos provocados pelo crime organizado. No senso comum, agentes públicos assumem o bônus de fazer parte de uma estrutura estável no mercado de trabalho, e devem assumir o ônus decorrente dessa escolha, como já fazem, por exemplo, quando têm de declarar bens publicamente.

É evidente que os fins não justificam os meios. Mas é preciso ponderar os ganhos diante das perdas, especialmente quando os mecanismos eleitos em vigência não têm sido eficazes. Assim como a fruição da privacidade pelo agente público é relativizada pela lei (declaração eleitoral de bens, na Lei 9.504/97, e administrativa, na Lei 8429/92), seu tratamento persecutório criminal, ante a relevância de sua posição e o dano sempre maior do crime funcional, imprescindem de tratamento especial. O que é mais razoável: fechar os olhos diante do dogma em tese insuperável da imprestabilidade do flagrante provocado, em nome da segurança jurídica para uma sociedade que vive insegura, ou admiti-lo em casos excepcionais, como seria o da persecução criminal a agentes públicos?

Infelizmente, o Plenário do STF entende que essa proposta de uso excepcional não merece uma chance, "ainda que em prejuízo da apuração da verdade, porque a justiça penal não se realiza a qualquer preço, sendo esse o pequeno preço que se paga por viver-se em um Estado de Direito" (AP 207-3 DF, Plenário). O resultado dessa lógica é o hercúleo esforço, na maioria das vezes vão, para identificar agentes públicos corruptos e para haurir provas para sua responsabilização criminal e demissão a bem do serviço público.

Se, por um lado, a legislação nacional não é de todo desprovida de instrumentos louváveis na repressão ao crime ─ como, por exemplo, a infiltração policial, a ação controlada, o flagrante esperado e até o quase desconhecido instituto da "entrega limpa" ou "entrega vigiada com substituição", previsto na Convenção de Palermo, cuja essência é permitir que a polícia substitua o corpo de delito por substância inócua, o que todavia não está regulado no Brasil ─, por outro, falta uma aceitação mais ampla da teoria da proporcionalidade ou teoria do interesse predominante no que tange ao aproveitamento de provas ilícitas.

Hoje, a jurisprudência (STF, HC 74.678-DF) e parte da doutrina aceitam-na restritamente aos casos de benefício ao réu ou nos casos em que a prova é feita pela vítima diante da agressão do agente do crime. Ainda falta no ordenamento brasileiro uma postura prática nesse campo que reconheça proporcional e juridicamente válida para fins condenatórios a instigação policial, com autorização judicial, para reprimir criminosos que exercem função pública. A idéia exige audácia, mas certamente agrada a população, que não suporta mais lidar com notícias chocantes como a da morte do coordenador do Afro-Reggae.

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Não se trata de pregar investigação a qualquer custo e de qualquer jeito: o desejo não é pelo absurdo da criação de uma fábrica institucional de provas, controlada por um Estado policialesco, tanto que a proposta, para funcionar, depende de autorização judicial e de ciência do MP, órgãos-espelho da democracia. O fato é que os meios investigativos de hoje são insuficientes e, por isso, talvez somente algo novo possa trazer sucesso. A positivação da figura do flagrante preparado, com autorização judicial para casos excepcionais, pode ser uma resposta muito interessante para a velha pergunta.

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Sobre os autores
Arryanne Queiroz

Delegada de Polícia Federal e mestra em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília, com dissertação intitulada "Deficiência e Justiça: um estudo de caso sobre a visão monocular".

Hebert Mesquita

Delegado de Polícia Federal em Brasília/DF e professor universitário do IESB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Arryanne ; MESQUITA, Hebert. O flagrante preparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2345, 2 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13954. Acesso em: 19 abr. 2024.

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Título original: "O flagrante preparado e o caso da morte do coordenador do Afro-Reggae".

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