Este texto tem o objetivo tecer algumas considerações a respeito da responsabilidade civil do transportador aéreo determinada pela legislação nacional e internacional, com principal enfoque na aplicação do Código de Defesa do Consumidor às demandas indenizatórias que envolvem o transporte aéreo.
O contrato de transporte está disciplinado nos artigos 730 a 756 do Código Civil, que estabelecem a responsabilidade civil objetiva na reparação de danos. O Código Brasileiro de Aeronáutica regula o transporte aéreo nacional, e a Convenção de Varsóvia, ratificada pelo Protocolo de Montreal, disciplina o transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens e mercadorias.
Embora receba tratamento diferenciado, dispondo de legislação especifica para regular o setor que opera, o transportador aéreo, por diversas vezes, é enquadrado na figura do fornecedor de serviços, descrita no artigo 4º. do Código de Defesa do Consumidor. Instaura-se, portanto, um aparente conflito de normas entre a legislação especial do transporte aéreo: Convenção de Varsóvia/Protocolo de Montreal, Código Brasileiro de Aeronáutica e Código Civil, e o Código de Defesa do Consumidor.
A matéria mais controversa – e que atribui maior relevância a essa discussão – é referente à responsabilidade civil do transportador e seu dever de indenizar: se é limitado, de acordo com o disposto na legislação especial, ou se é integral, de acordo com a legislação consumeirista.
Eventual conflito de normas deve ser dirimido, conforme determina a Lei de Introdução ao Código Civil, pela análise dos critérios da cronologia e da especialidade. Pois bem, o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor em 1990, e a Convenção de Varsóvia, embora datada de 1929, foi ratificada pelo Protocolo de Montreal em 1999 e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro apenas no ano de 2002. Nesse mesmo ano, entrou em vigor o Novo Código Civil, que trouxe uma importantíssima inovação ao estabelecer, em seu artigo 750, que a responsabilidade do transportador aéreo é limitada ao valor constante no conhecimento.
Essa determinação, inexistente no antigo diploma, demonstra a inclinação do legislador brasileiro em aproximar a norma nacional ao tratado internacional, plenamente vigente. Ainda, com relação ao critério da especialidade, o CDC abrange todas as relações entre fornecedor e consumidor, versando sobre todo e qualquer produto ou serviço, enquanto o Código Brasileiro de Aeronáutica e a Convenção de Varsóvia disciplinam exclusivamente o transporte aéreo, nacional e internacional, respectivamente. Além disso, o próprio CDC, em seu artigo 7º, dispõe que o mesmo não exclui os direitos decorrentes de tratados ou convenções dos quais o Brasil seja signatário. Pode-se constatar, portanto, que, se analisados os critérios da cronologia e especialidade, resta prejudicada a aplicabilidade da legislação consumeirista em demandas que versem sobre transporte aéreo.
Não obstante recentes julgados do STF terem reconhecido a aplicação da referida convenção internacional, há que se observar que a jurisprudência brasileira tem decidido, predominantemente, pela prevalência do Código de Defesa do Consumidor nas demandas indenizatórias. Ou seja, tanto nas ações de passageiros contra empresas aéreas, quanto nas ações de ressarcimento por danos à carga, o entendimento predominantemente é de que o CDC disciplina a responsabilidade do transportador aéreo.
Os desdobramentos práticos desse entendimento jurisprudencial majoritário são diferentes para o transporte de pessoas e de cargas.
No transporte de pessoas, nacional ou internacional, constata-se uma situação de grande insegurança jurídica no que diz respeito às demandas indenizatórias que reclamem avarias ou extravio de bagagem, pois essas ações são, em grande parte, propostas perante os Juizados Especiais Cíveis. Nesse rito especial, em razão dos princípios da celeridade, informalidade e economia processual, sobre os quais é fundada a lei 9.099/95, nem sempre é dada a devida importância à dilação probatória, principalmente levando-se em conta a inversão do ônus da prova, com a qual a empresa aérea se vê surpreendida muitas vezes apenas na sentença.
Essa situação obriga o transportador a indenizar o passageiro tomando-se por base meras alegações sobre o conteúdo da bagagem extraviada, sem que haja comprovação do dano cuja reparação lhe é imputada. Destaque-se que aos passageiros é oferecida a opção do transporte declarado, ou seja, da especificação detalhada do conteúdo de sua bagagem antes de sua entrega ao transportador. De acordo com o disposto na legislação especial, é apenas no caso do preenchimento da declaração dos bens contidos na bagagem que o passageiro tem direito à indenização integral, caso contrário, fica sujeito à indenização tarifada, calculada em US$ 20,00 por quilo. Já o CDC veda a limitação da responsabilidade, e imputa ao transportador o ônus da prova negativa, conferindo exagerado privilégio processual aos demandantes.
No que diz respeito ao transporte de cargas, na maioria dos casos, as demandas indenizatórias são propostas pelas seguradoras sub-rogadas nos direitos de suas clientes, contratantes do transporte aéreo, e defendem ser sub-rogadas também da condição de consumidoras, muitas vezes beneficiando-se das prerrogativas da legislação consumeirista. Isto faz com que sejam totalmente ignorados conceitos como hipossuficiência e vulnerabilidade, além de rechaçar também a legislação aduaneira que estabelece procedimentos específicos de apuração de danos como a realização obrigatória da vistoria aduaneira, ressalvas no conhecimento e registros sobre o estado da carga no sistema Siscomex – Mantra.
Por fim, conclui-se que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas demandas indenizatórias que versem sobre transporte aéreo, nacional ou internacional, além de contrariar as disposições do Código Civil mais recentes e mais específicas, viola frontalmente as determinações do Código Brasileiro de Aeronáutica e nega vigência à Convenção Internacional de Varsóvia.
Esta situação prejudica o Brasil no cenário da aviação civil internacional, do mesmo modo que acaba por negar o princípio da justiça social. Impõe cegamente o dever de reparar e desconsidera a responsabilidade civil do transportador e suas limitações estabelecidas pela legislação especial brasileira e por tratado internacional do qual o Brasil é signatário, devidamente ratificado e incorporado ao nosso ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, plenamente vigente.