RESUMO: O presente trabalho tem como objeto principal o estudo da atuação internacional dos municípios brasileiros, mais especificamente no que concerne à captação de recursos internacionais junto a Organismos Multilaterais e Agências Governamentais de Crédito com os quais o Brasil mantém cooperação financeira. Para tanto, necessária se faz uma breve análise sobre os motivos determinantes que elevaram o interesse municipal na busca de recursos externos diante dos fenômenos da globalização e da redemocratização brasileira, e a sua relação com o movimento que é conhecido no Direito Internacional por "Cooperação Descentralizada". Dentro desta perspectiva o estudo passará pelo Sistema da Organização das Nações Unidas de Cooperação Internacional e sua evolução histórica, bem como de seus Organismos Multilaterais criados especificamente para atender projetos de desenvolvimento econômico e social dos chamados países em desenvolvimento. E por fim, haverá descrição crítica da legislação pátria apontando quais são os requisitos internos necessários para os Municípios Brasileiros desenvolverem seus projetos sociais através de financiamento internacional.
1 - A ATUAÇÃO DOS MUNICÍPIOS EM ÂMBITO INTERNACIONAL E O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO.
A atuação dos municípios brasileiros em âmbito internacional se situa dentro de um fenômeno batizado pelo direito internacional de "Cooperação Descentralizada", em que governos subnacionais (no caso do Brasil, os Estados membros e Municípios) passam a ter relevante papel no cenário internacional a despeito da atuação do governo central.
A visão inicial de Cooperação Internacional criada a partir da Segunda Guerra Mundial, com o Plano Marshall, era de cooperação oficial somente entre Estados Nações e regulada por acordos internacionais. Com a evolução do cenário clássico do Direito Internacional impulsionado principalmente pela globalização, novos atores surgiram nas relações internacionais, tais como as empresas transnacionais, as organizações não-governamentais e os movimentos sociais. Nas décadas de 80 e 90 do século passado, e principalmente no começo deste século, intensificaram-se sobremaneira a atuação dos governos subnacionais, o que levou o basco SOLDATOS (1990) a introduzir o conceito de Paradiplomacia para designar as relações internacionais dos governos não-centrais (BARROS e CÉSÁRIO, 2008).
Por ser um tema relativamente novo no cenário internacional ainda não se tem um conceito pacífico e completo de Cooperação Descentralizada. Dentre os conceitos existentes o que mais agrega pontos de convergência seria o dado por HAFTECK cuja tradução é a seguinte:
Cooperação descentralizada consiste em uma relação substancial colaborativa entre governos subnacionais de diferentes países, visando um desenvolvimento local sustentável que implica em algumas formas de trocas e suportes conduzidas por estas instituições ou outros atores locais. (2003, 336)
BARROS e CÉSÁRIO (2008) enfatizam que "tal definição tem como principal mérito o fato de reconhecer a liderança dos governos locais neste processo, assim como perceber a importância do engajamento dos demais atores da esfera local para o desenvolvimento da cooperação descentralizada. O que parece faltar a essa visão é o reconhecimento da relevância da participação dos governos centrais e das agencias internacionais como partes/promotores deste fenômeno".
Não se faz possível distanciar a intensificação da Cooperação Descentralizada das políticas adotadas pelos governos centrais e muito menos das agências internacionais, justamente porque são estes os principais responsáveis pelo surgimento dessa nova forma de atuação nas relações internacionais. São na verdade os direitos responsáveis pelos fatores determinantes da atuação internacional dos governos subnacionais, principalmente pela necessidade destes de buscarem novas fontes de recursos para o seu desenvolvimento.
No caso dos municípios brasileiros, pode-se apontar como fatores globais determinantes para o fenômeno: i) a Globalização, e ii) a Integração regional. Como Fatores Regionais: i) a redemocratização e descentralização política, e ii) o ajustamento da economia brasileira.
É notório que o fenômeno recente de globalização econômica exerce papel determinante neste novo cenário internacional, na medida em que a acumulação baseada no desenvolvimento industrial, tecnológico e do comércio constituiu preocupação central dos Estados nacionais. A busca pelo poderio econômico e tecnológico superou a busca da hegemonia ideológica e estratégico-militar. Nesta esteira, a integração regional entre países vizinhos passou a ser prioridade das políticas macroeconômicas dos governos centrais, em busca de uma maior competitividade econômica no comercio mundial (BARRETO, 2001, p. 3)
Dentro desta nova perspectiva global dos anos 90, foram exigidos dos chamados países em desenvolvimento, como o Brasil, novos padrões de capacitação internacional que foram universalmente aceitos, e cujas características em comum foram apontadas por MARIA INÊS BARRETO:
estabilidade política, abertura econômica, baixa inflação, altas taxas de poupança nacional (acima de 25% do PIB), indicadores sociais de boa qualidade, capacitação de mão de obra, alta produtividade, agressividade, na procura pelo acesso a investimentos, tecnologias e mercados e, finalmente, grande esforço na promoção de uma imagem de confiabilidade do país no exterior. (2001, p. 4-5)
Na busca desta imagem de credibilidade e confiabilidade no cenário econômico internacional, o governo central do Brasil abriu sua economia, promoveu sua estabilização macroeconômica, reformou suas instituições, e cumpriu as metas estabelecidas pelo Fundo Monetário Nacional (FMI).
Todo este processo de transformação do Estado brasileiro afetou tanto o governo central como os governos subnacionais. A União através do processo de privatização abandonou seu modelo intervencionista por atividades de fomento, orientação e, principalmente, regulação, e gradativamente eliminou os mecanismos formais e informais que protegiam os Estados e Municípios das condições desfavoráveis da realidade econômica. Em resumo, diminuíram os repasses de verbas federais aos governos subnacionais.
Contraditoriamente, em uma sociedade recém saída da ditadura militar, onde os cidadãos clamavam por redemocratização e descentralização política, os seus anseios não mais eram calados pela censura e pela repressão estatal. Os problemas sociais ficaram evidentes e a cobrança destes por uma solução recaiu sobre os "ombros" dos governos locais.
Estes, todavia, se vêem em meio a um complicado pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal de 1998, que apesar de ter elevado os Municípios à categoria de ente da federação, autoriza que a União concentre aproximadamente 60% da arrecadação, restando 25% para os estados e apenas 15% para os municípios. Neste contexto, não é difícil imaginar o porquê da busca destes últimos por recursos no sistema financeiro internacional.
Para se entender este novo fenômeno de âmbito internacional é essencial que se entenda o próprio pacto federativo brasileiro e suas falhas.
O modelo da federação brasileira, conhecido como centrifugo (que busca a descentralização), surgiu a partir de um Estado unitário, extremamente autoritário e centralizador, criado pela Constituição de 1824. Diferentemente, o modelo norte-americano, do qual buscou inspiração, é um federalismo conhecido como centrípeto, ou seja, dirigido ao centro, onde primeiro os estados soberanos organizaram uma confederação para depois uma federação, abrindo mão de parte de sua soberania em prol de um poder central e visando um bem comum.
Esta origem histórica explica o porquê da tradição brasileira centralizadora e autoritária do poder central ao contrário da alta descentralização de competências administrativas, legislativas ordinárias e legislativas constitucionais dos estados membros dos Estados Unidos da América. Por isto também não se pode compará-los principalmente por aqueles que adotam o modelo norte-americano como exemplo para rejeitar os municípios como entes da federação brasileira.
O Federalismo brasileiro é absolutamente inovador, uma vez que estabelece três níveis de federação incluindo o município como ente federado dotado de poder constituinte derivado. A Constituição Federal de 1988 não só manteve a autonomia municipal como elevou a sua posição para ente federado, podendo, portanto, organizar as suas próprias Constituições, chamadas de leis orgânicas municipais, auto-organizando seus poderes legislativo e executivo sem a intervenção da União e dos estados membros. Estes sofrem apenas um controle a posteriori de constitucionalidade, tal como sofrem estes últimos (MAGALHÃES, 2003, p. 85)
A característica essencial do federalismo, portanto, que o difere de outras formas descentralizadoras de Estado [01], e que também afasta os frágeis e inconsistentes argumentos dos autores que rejeitam a idéia do município como ente federado (têm como seu principal defensor o Professor José Nilo de Castro [02]), é a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências legislativas constitucionais nos entes federados (MAGALHÃES, 2003, p. 85-86)
Assim, o Brasil ao copiar o federalismo norte-americano não pôde também copiar a sua historia e o seu processo de formação. A cópia brasileira é única e diretamente inversa do modelo original, pelo que de forma alguma podem ser comparados.
No entendimento de José Luiz Quadros de Magalhães, "a visão de nosso federalismo como federalismo centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada, que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Somos um Estado Federal que surgiu a partir de um Estado Unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que devemos procurar abandonar para construir uma federação moderna e um Estado Democrático de Direito." (2003, p.86).
Daí a grave distorção do nosso federalismo, qual seja o grande numero de competências e recursos em poder da União em nítido detrimento dos Estados e principalmente dos municípios. A manutenção deste poder centralizado impede a evolução do federalismo brasileiro que devia, em um movimento centrífugo, descentralizar suas competências aos poderes regionais e locais, tal como observa o professor José Luiz Quadros Magalhães:
A constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, procurando avançar um novo federalismo centrifugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três níveis (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, apesar das inovações, o numero de competências destinadas à União, em detrimento dos estados e municípios, é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos estados federais mais centralizados do mundo. Isto ainda é uma grave distorção, que tem raízes no autoritarismo das "democracias formais constitucionais" que tomaram conta da América Latina na década de 1990, com a penetração do perverso modelo neoliberal: os neo-autoritarismo ou o neopresidencialismo autoritário, segundo o constitucionalista Friedrich Muller (1998).
Ironicamente, esta distorção do nosso modelo federal com a centralização dos recursos no poder central, e com as práticas neo-liberalistas de proteção deste, aumentou a necessidade dos municípios brasileiros em buscar recursos em âmbito internacional a fim de sanar seus graves problemas de ordem social, não mais fomentados pela União Federal.
Este nova busca por recursos externos, consequentemente, aumentou a importância dos poderes regionais e locais em virtude do reconhecimento das organizações internacionais de financiamento de que estes seriam atualmente os grandes protagonistas do crescimento da economia global. Entendimento este que contribui para a evolução do federalismo brasileiro, na medida em que demonstra na prática a necessidade da descentralização de competências para os governos subnacionais e o abandono das práticas centralizadoras e autoritárias do governo central.
Todos estes fatores, portanto, em nível global e interno, criaram um novo espaço para a atuação internacional dos municípios brasileiros, que se viram em um vácuo produzido pelas políticas externa e interna adotadas pelo governo central. Tanto é assim que os bancos e agencias internacionais tem cada vez mais se atentado para os governos municipais, o que levou até mesmo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) a criar um programa específico de crédito voltado para os projetos dos governos municipais, batizado de PROCIDADES. [03]
Esta escolha do BID também foi influenciada pelo novo modelo de "Cooperação Internacional", em que o "ambiente internacional passou a valorizar os estados regionais e locais como os grandes protagonistas da atividade econômica, na medida em que fossem capazes de se constituírem como unidades de produção de riqueza e de atuarem como ‘os verdadeiros portões de entrada da economia global’, nos termos propostos por OHMAE (1999, p. 83-84). Assim foi-se caracterizando a interface global-local: embora a competição ocorresse nos mercados globais, as capacidades competitivas foram sendo (ou deveriam vir a ser) construídas nos níveis locais (BERMEDO e MIÑO, 2000, p. 164) (BARRETO, 2001, p. 5).
Criou-se a expectativa de que os governos regionais e locais passariam de meros expectadores das políticas internacionais a verdadeiros sujeitos responsáveis pelo desenvolvimento social e econômico. Este posicionamento ativo dependia e ainda depende diretamente das suas habilidades e capacidades para desenvolver e executar projetos coletivos em seus territórios. Estes têm que ser capazes de convencer os bancos e as agências internacionais que o recurso despendido por eles naquele local irá efetivamente produzir desenvolvimento social, econômico e tecnológico. Tudo isto na esteira do movimento de Cooperação Internacional criado pela Organização das Nações Unidas, e que passa por recentes transformações, sendo o seu exemplo mais importante o fenômeno da Cooperação Descentralizada.
2 - A COOPERAÇÃO DESCENTRALIZADA COMO NOVO MODELO DA COOPERAÇAO INTERNACIONAL – RELEVÂNCIA DO PODER LOCAL.
A Cooperação Internacional não é um fenômeno recente. Criada após o fim da Segunda Guerra Mundial, muitas mudanças ocorreram desde o seu surgimento especialmente diante dos novos atores internacionais que passaram a exercer grande influência mundial, dentre eles, os governos subnacionais.
Para se entender o recente movimento da Cooperação Descentralizada, e mais especificamente para situar a atuação municipal na captação de recursos externos dentro do Sistema Normativo Internacional, necessário se faz trazer um breve histórico da evolução da Cooperação internacional dentro do Sistema da Organização das Nações Unidas.
Neste histórico será possível entender a relevância do Poder Local e a importância do desenvolvimento e da execução dos projetos territoriais para alcançar dois dos princípios basilares da Carta das Nações Unidas descritas no seu preâmbulo, quais sejam, "promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla" e "empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos". [04]
Sobre o surgimento e os compromissos assumidos pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas no âmbito da Cooperação Internacional, GUIDO F. S. SOARES discorre com muita propriedade, cuja transcrição enriquecerá o presente trabalho:
O atual sistema das relações internacionais, conforme estabelecido ao final da Segunda Guerra Mundial e consubstanciado no sistema da segurança coletiva sob a égide da ONU, tem marcada diferença em relação ao sistema vigente no entre - guerras (vigência da Liga das Nações) e bem mais marcante ainda do que os sistemas que imperaram em séculos anteriores. A nota característica reside no fato de a preocupação dos Estados menos favorecidos passa a ser uma das políticas a serem seguidas. Na verdade, se em séculos anteriores a preocupação era estabelecer regras negativas nas relações internacionais (ou seja, regras de conduta dos Estados, que assegurassem a paz através de normas proibitivas de ações perturbadoras da mesma e, portanto, um Direito Internacional que assegurasse o statu quo), particularmente a partir do sistema das Nações Unidas, a ênfase atual recai no estabelecimento de regras de construção de comportamento, no incentivo de condutas de cooperação; pode-se mesmo dizer que o chamado Direito Internacional Clássico era um direito do não-fazer, ao passo que o denominado ‘Direito do Desenvolvimento’, consiste num conjunto de regras de cooperação. A mais evidente constatação reside no fato de a própria Liga das Nações não ter previsto mecanismo de construção da paz, mas tão-somente órgãos de prevenção da guerra: uma Assembléia Geral, um Conselho Permanente e um Secretariado Geral. Já a ONU, ao lado desses três órgãos (o Conselho Permanente foi rebatizado de Conselho de Segurança), prevê um Conselho de Tutela (dedicado às tarefas de descolonização) e o importante Conselho Econômico e Social (ECOSOC). (...) Na verdade, o art. 1º da Carta da ONU estabelece os propósitos dessa organização: manter a paz e a segurança internacionais (§1º), desenvolver relações amistosas entre as nações (§2º), portanto, atribuições tradicionais do Direito Internacional. Acrescenta, contudo, no parágrafo 3º:
‘conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural, ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião’;
para, finalmente, descrever-se a si mesmo com o desiderato de vir a ser:
‘um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns’. (1994, p. 164-165)
Na busca destes objetivos, o Capitulo IX da Carta da ONU estabeleceu os princípios basilares da Cooperação Internacional Econômica e Social, nos seus artigos 55 e 56, in verbis:
"Artigo 55
Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão:
a) A elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social;
b) A solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional;
c) O respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Artigo 56
Para a realização dos objetivos enumerados no art. 55, todos os membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente."
Percebe-se que a Cooperação Internacional prevista no sistema ONU não se trata de mera questão humanitária ou assistencial. A paz e a segurança internacional dependem diretamente dos mecanismos internacionais de promoção do progresso econômico das nações menos favorecidas, tanto quanto da atuação do Conselho de Segurança nas questões de uso da força armada.
GUIDO F. S. SOARES (1994, p. 170) vai mais além e enfatiza que o fenômeno de transferência de recursos internacionais "não se trata de mera atitude ligada a humanitarismos de ajudar Estados carentes, e muito menos de fornecer uma moldura normativa às ações dos países industrializados que pretendiam legitimar suas ações unilaterais de intervenção sutil nos países em desenvolvimento: trata-se, antes, da afirmação de um direito ao desenvolvimento por parte desses Estados, conjugado com um dever de cooperação por parte dos países industrializados, dentro dos princípios já anunciados da Carta da Organização das Nações Unidas".
Para atingir tais objetivos foi criado em 22 de novembro de 1965, através da resolução 2029 da XXª Assembléia Geral da ONU, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNDU) [05], cujo objetivo era o de coordenar o Programa das Nações unidas de Assistência Técnica, criado em 1949 e o Fundo Especial das Nações Unidas, criado em 1958. Em 1971 essas duas organizações se unificaram completamente sob o nome de PNUD. Trata-se, na verdade, do organismo operacional da ONU para a promoção do desenvolvimento.
Contudo, apesar de estarem todos estes princípios consagrados na Carta das Nações Unidas é notório que após mais de cinqüenta anos desde o lançamento do PNDU, os países ditos do sul ainda possuem níveis de desenvolvimento muito baixos, o que demonstra o fracasso do modelo tradicional de cooperação internacional.
BARROS e CÉSÁRIO (2008) destacam que o motivo principal deste fracasso é a ausência de visão integrada para se enfrentar as dificuldades nestes países. Para que as ações de desenvolvimento passem a dar certo, será necessário que os indivíduos locais deixem de ser meros recebedores de assistência para serem "sujeitos de cooperação".
Os mesmo autores destacam que:
A compreensão desses dois eixos, conhecimento local e engajamento político, é fundamental para o presente debate. Do conhecimento local, entende-se o envolvimento da comunidade nas decisões de interesse público, sem o intuito de retirar a responsabilidade principal dos governos em executar políticas de desenvolvimento. Para que essas políticas sejam efetivas é essencial que, ademais da capacitação dos indivíduos e das organizações, os governos promovam mudanças político-culturais. Segundo a corrente de Desenvolvimento de Capacidades, a diferença de performance econômica e de qualidade de vida entre países é determinada, em primeira instância, pelo grau de conhecimento local e de institucionalização, ao invés de riquezas naturais e de capital investido. A cooperação descentralizada deve ser e vem sendo utilizada como um catalisador do conhecimento de técnicos para atender às demandas de suas localidades. (BARROS e CÉSÁRIO, 2008)
Tanto é assim, que a Organização das Nações Unidas vem afirmando que as metas do Milênio só poderão ser alcançadas quando houver o comprometimento dos governos locais. Assim, sobretudo ao final da Guerra Fria, a agenda internacional aborda cada vez mais temas que passam por competências dos governos locais como pode ser observado nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. [06] (BARROS e CÉSÁRIO, 2008)
Neste sentido, André Costa, ex-deputado federal e diplomata de carreira elucida a importância da Cooperação descentralizada, in verbis:
"A dinâmica complexa da globalização aponta para o fortalecimento do poder local, que em muitas circunstâncias se revela um espaço de mediação eficaz entre as demandas dos cidadãos e o caráter transnacional. Diante dessa realidade cada vez mais presente, é importante que todo o processo democrático seja aprofundado e estimulado do nível local ao global. (BRIGAGÃO, 2005, p. 11)" (BARROS e CÉSÁRIO, 2008)
A Cooperação Descentralizada, portanto, tida como novo modelo de Cooperação Internacional, é o grande instrumento de compartilhamento e divulgação do saber local, essencial para a efetividade dos projetos territoriais na busca do real e verdadeiro desenvolvimento humano.
Fácil é perceber o terreno fértil que se encontra a atuação dos Municípios em âmbito internacional. A grande maioria dos bancos e agências internacionais ligadas ao sistema ONU de cooperação pautam suas ações nesta premissa do fortalecimento do poder local. A interface global-local está em voga e a chance de engendrar e executar projetos através de recursos externos está acima de qualquer crise internacional. Cabe aos governos locais brasileiros, interessados realmente em resolver seus problemas sociais e promover o seu desenvolvimento, desenvolver seus projetos, se adequar a lei de responsabilidade fiscal, e buscar junto aos Organismos Internacionais de crédito (observado os procedimentos do Ministério de Planejamento), os recursos necessários para tanto.
2.1 – Democracia participativa e poder local na elaboração de Projetos Técnicos.
O Sistema ONU quando de sua criação foi totalmente baseado nas relações entre os Estados. Não havia no inicio qualquer possibilidade de participação da sociedade civil. Não existia também qualquer possibilidade do individuo ser considerado ator de direito internacional, mesmo sendo objetivo precípuo da Carta da ONU protegê-lo. Os Estados acreditavam que as suas relações internacionais bastariam para proteger e fomentar os seus cidadãos através da Cooperação Internacional interestatal voltada para o desenvolvimento econômico e social. Hoje resta mais que provado que os Estados não são capazes por si só de fazer valer os direitos humanos de desenvolvimento econômico e social. A sociedade civil e os poderes locais são essenciais para que se possa direcionar os recursos financeiros dos Estados ao seu verdadeiro necessitado.
No mesmo erro incorre a Democracia Representativa. Partiu-se do pressuposto de que os representantes eleitos para representar o povo na esfera governamental conseguiriam legitimamente defender as demandas de seus eleitores. Acreditava-se que seriam capazes de proteger os cidadãos, confiando-lhes o desenvolvimento social em prol da efetividade dos direitos humanos previstos nas Constituições.
A bem da verdade, vive-se hoje uma crise da democracia representativa em todo o mundo, seja no Brasil, nos Estados Unidos, ou no Sistema ONU (que nada mais é do que um reflexo das políticas dos Estados). Existe uma grande disparidade dos reais anseios do povo e o que os seus representantes efetivamente buscam na sua atuação política.
A democracia é um dos temas mais estudados dentro das ciências sociais e também no direito público. Percebe-se que a crise da democracia representativa se agrava cada vez mais com a influência do poder econômico nas campanhas eleitorais, o marketing, e a manipulação da opinião pública.
Instrumentos que poderiam ser utilizados para disseminar a democracia, tal como a mídia televisiva, acabam se tornando mecanismos de manipulação da opinião popular, protegendo grandes interesses econômicos e a perpetuação de poder.
Um Senador democrata nos EUA, por exemplo, gastou 60 milhões de dólares para se eleger nas eleições de 2000. Levando em consideração que o seu salário anual seria de 150.000 dólares, pergunta-se qual o interesse que lhe move? Quem ele representa de verdade? O povo ou a indústria de tabaco, armamentistas, ou outras? (MAGALHÃES, 2003, p. 93).
Qual seria então a alternativa para esta crise de representatividade influenciada pelo megapoder global? Segundo José Luiz Quadros Magalhães pode-se dizer que a resistência se encontra em dois flancos: a sociedade global e a sociedade local, que são duas faces da mesma moeda. "O cidadão é hoje global e local. (...) O núcleo local é o principal na transformação de valores e de realização de justiça social e econômica. Simultaneamente, este núcleo local deve estar em comunicação permanente com outros núcleos (organizações sociais, ONG`s, municípios, comunidades de bairro, rádios, jornais, e televisões comunitárias etc.) de todo o mundo. A inserção desses núcleos na comunicação global garante o seu arejamento e sua evolução constante, (...). (2003, p. 94).
A democracia que realmente funciona é a democracia que constrói e que dá oportunidade para um diálogo livre, no livre pensar de uma sociedade onde a construção de espaços de comunicação seja possível. Esta participação popular que resulta em mais democracia e controle social efetivo, somente ocorrerá de maneira efetiva e eficiente no poder local. É nos Municípios que as teorias tomam concretude, e os problemas podem ser verificados e resolvidos na prática.
Jose Luiz Quadros Magalhães enfatiza que "a construção de uma democracia dialógica, radical, participativa no Brasil passa, por esse motivo, por uma discussão territorial e, especialmente no nosso caso, pela discussão do pacto federativo. Só no nível local conseguiremos incluir uma população que deseja e luta por justiça." (2003, p. 94). Destaca, ainda, que
para nós, no Brasil, que não vivemos um Estado Social efetivo, capaz de oferecer saúde, educação e previdência de qualidade para todos, o caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada de poder, a descentralização radical de competências fortalecendo os estados, e principalmente, os municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente à organização da sociedade civil e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação como as rádios, os jornais e televisões comunitárias. Podemos (e assim estamos fazendo) construir uma democracia social e participativa a partir do poder local. (2003, p. 90)
O Brasil não pode mais esperar a construção de um Estado Social através somente dos seus representantes eleitos. Não há mais tempo para tal espera. As necessidades são mais que urgentes e a democracia representativa se desmonta ano após ano. A democracia participativa no Brasil precisa ser construída e nada ocorrerá sem a participação da sociedade civil ativa e organizada que resiste ao desmonte do estado social e democrático. Tal solução passa necessariamente pela questão local.
Meios de sucesso de aproximação entre a sociedade civil e o estado, utilizados em grande escala no Brasil, são o orçamento participativo e a criação de conselhos municipais. Daí pergunta-se: Porque não incluir neste modelo de sucesso o desenvolvimento de projetos técnicos de cooperação com o objetivo de se pleitear recursos externos em prol da efetivação dos direitos sociais? Se o principal fator de análise para a aprovação dos contratos de financiamento é a efetividade e viabilidade do projeto no local beneficiado, quem melhor do que os próprios beneficiários para garantir tal efetividade tanto na sua elaboração quanto na sua implementação e fiscalização.
O projeto técnico de cooperação internacional sem consulta popular está fadado a fracassar, ou pelo menos não se realizar em sua plenitude. As experiências já realizadas com o orçamento participativo dão bons indícios para o sucesso desta nova aplicação. O Município de Porto Alegre/RS foi o pioneiro na implementação do orçamento participativo, seguido logo depois pelo município de Belo Horizonte/MG e por mais de 300 outros municípios brasileiros. (MAGALHÃES, 2003, p. 97-98)
Em Porto Alegre, excluídos os recursos com destinação constitucional como a saúde, educação e pagamento do funcionalismo público, todos os outros recursos da Prefeitura passam por discussão popular. A vanguarda deste instituto se deu nesta cidade porque já existia uma comunidade de moradores organizada em constante diálogo com o executivo municipal.
Em um primeiro momento a administração municipal apresentou uma proposta fechada para formação de conselhos populares e de como se daria esta participação popular. Este foi o primeiro erro que deu ensejo à principal característica que garantiu o sucesso do orçamento participativo e atraiu a população para participar da construção das regras, qual seja, a possibilidade de auto-regulamentação das comunidades populares. A razão disto, segundo José Luiz Quadros Magalhães, é porque "não existe um regulamento previamente elaborado pela Prefeitura, nada é imposto. Em cada Regional será organizado uma Assembléia Popular, convocando o povo para o debate de criação das regras de funcionamento do processo de orçamento participativo. (...) Elas se auto-regulamentam e é dever da Prefeitura fornecer os dados técnicos indicando o recurso disponível e as carências de cada região do município." (2003, p. 95-96)
Após a construção deste regulamento da participação popular que é renovada a cada ano em dezembro e janeiro, a prefeitura em março através de sua secretaria, criada especificamente para este fim ou não, levará às regionais e assembléias populares as disponibilidades de recursos, as obras necessárias, as obras em curso, o custo da obra, enfim os dados técnicos necessários para a tomada de decisão popular. Após, serão discutidos quais os critérios para se repartir recursos entre diversas regiões. (MAGALHÃES, 2003, p. 96)
Para a tomada de decisão, o professor José Luiz Quadros Magalhães, destaca que
serão escolhidos os conselheiros em cada uma dessas regiões para participar de uma reunião especifica para a discussão da repartição dos recursos entre as diversas regionais. Os critérios têm que observar os aspectos técnicos e democráticos. Os critérios normalmente adotados levam em consideração aspectos demográficos, a carência territorial de bens, a existência ou não de uma estrutura de saneamento melhor, existência de estrutura de saúde e educação e, por fim, é observada a exeqüibilidade da demanda, ou seja, se o que a população deseja é possível ser feito. É necessário, portanto, uma assessoria técnica por parte da Prefeitura com relação à exeqüibilidade da obra.(2003, p. 96)
Toda deliberação é uma deliberação exclusivamente popular, onde os representantes dos municípios, em geral assessores técnicos, tem direito a voz, mas não a voto. Depois de aprovada a decisão, a proposta é encaminhada para o executivo, para que se possa montar a lei orçamentária, que será encaminhada no final do ano para o legislativo municipal. (MAGALHÃES, 2003, p. 97)
Percebe-se que este sistema do orçamento participativo se encaixa perfeitamente ao processo de elaboração dos projetos técnicos de fomento internacional, principalmente na sua primeira fase de implementação, com uma vantagem: não precisam passar pelo crivo do poder legislativo municipal.
A discussão dos projetos técnicos de desenvolvimento social, portanto, é parte integrante deste processo de democracia participativa, não havendo qualquer óbice para tanto. Nada melhor para a legitimação e efetividade dos projetos que o diálogo entre a sociedade civil e os representantes dos governos locais que irão levar as demandas ao conhecimento internacional.
É claro que o executivo municipal não está obrigado a acatar as decisões populares no momento da elaboração do projeto. Todavia, há uma nítida vinculação eleitoral na aceitação ou não das demandas populares. Assim como no não acatamento do orçamento participativo, o Prefeito que não respeitar o que ficou decidido pela população sobre a implementação do projeto técnico internacional corre o risco de não ser eleito novamente. Ocorre, portanto, um controle social. Além disto, o projeto perde em qualidade e em legitimidade que serão facilmente identificados pelos organismos internacionais de financiamento, o que pode significar o seu pronto indeferimento.
Percebe-se, assim, que a participação popular na elaboração dos projetos, na esteira do modelo do orçamento participativo, atua de forma complementar a democracia representativa. Ou melhor, a democracia participativa garante que a democracia representativa seja mais democrática. Não tira o Prefeito do seu papel, nem a sua titularidade na apresentação dos projetos de financiamento, ou seja, não o substitui a democracia representativa, mas contribui para o seu aperfeiçoamento e reforça o poder do controle social sobre a representatividade democrática.