4.Prisão Civil na hipótese do artigo 461, § 5º do CPC por descumprimento à medida judicial de proteção à vítima.
Verificada a natureza jurídica civil dos incisos do artigo 22 da lei 11.340/2006 e observada a impossibilidade da aplicação do crime de desobediência em tais casos, surge a questão acerca da possibilidade ou da impossibilidade da prisão civil atípica por descumprimento de ordem judicial com base no poder geral de efetivação previsto no artigo 461, § 5º do CPC.
O § 5º do artigo 461 assim dispõe:
"Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial" .
Como se verifica, o magistrado a tem à sua disposição um instrumento que lhe confere poder para tomar as medidas necessárias (que melhor aprouverem ao processo) a fim de promover a entrega ao jurisdicionado da tutela específica. No dispositivo supra citado, o legislador elencou várias hipóteses de atuação do Estado-Juiz, mas, de nenhuma maneira exauriu, naquelas letras, todas as possibilidades de ação do magistrado e por que não dizer do exeqüente também.
E como não fez "numerus clausulus" as hipóteses de ação do juiz no caso do artigo 461, § 5º do CPC, abriu-se oportunidade para discussão acerca da possibilidade de prisão do executado como meio legítimo de atuação do Estado-Juiz na busca de entrega da tutela específica.
A Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso LXVII, veda a prisão por DÍVIDA, assim determinando: "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".
Os juristas constitucionalistas manifestam-se majoritariamente pela interpretação literal do inciso LVXII, considerando que, além das duas hipóteses ali elencadas, não é permitida a prisão de pessoas por qualquer espécie de dívida.
GILMAR MENDES, Presidente do STF, define que:
"a prisão civil diferencia-se da prisão penal, na medida em que não consubstancia uma resposta estatal à pratica de infração penal, mas antes, corresponde a um meio processual reforçado de coerção do inadimplente, posto à disposição do Estado para a execução de uma dívida. Não possui, portanto, natureza penal, destinando-se apenas a compelir o devedor a cumprir a obrigação contraída, persuadindo-o da ineficácia de qualquer tentativa de resistência quanto à execução do débito". [09]
Porém, o culto Ministro do STF afirma que não é possível a aplicação da prisão como meio para compelir o devedor ao adimplemento da obrigação, pois entende que a vedação contida no texto constitucional é absoluta e "as exceções são expressas e taxativas: a) inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia; b) a do depositário infiel" (Idem acima) (grifos nossos).
No mesmo sentido é o entendimento do jurista Alexandre de Moraes, que também se manifesta contrário à possibilidade da prisão civil, aludindo que "em regra, não haverá prisão civil por dívida. Excepcionalmente, porém, em dois casos será permitida." [10] que são os enumerados no art. 5º, LXVII da CF/88.
Em que pese o entendimento dos Constitucionalistas GILMAR MENDES e ALEXANDRE DE MORAES, a solução não é pacífica, havendo corrente doutrinária que afirme que na hipótese da aplicação do artigo 461 do CPC há possibilidade do juiz decretar a prisão na hipótese de descumprimento da ordem judicial.
A real problemática encontra-se no termo "dívida" utilizado pelo dispositivo constitucional em comento. Vale dizer, se a acepção do termo dívida se refere: a) apenas à prestação pecuniária ou b) a uma prestação qualquer (envolvendo qualquer obrigação civil).
MARCELO LIMA GUERRA (citado na obra Curso de Processo Civil – vol. 2 de autoria de FREDIE DIDIER JR) sintetiza com maestria a problemática em questão:
"O inciso LVII (na verdade, inciso LXVII] do art. 5º da CF dispõe que ‘não haverá prisão civil por dívida, salvo...’. Não se pode ignorar que a expressão ‘dívida’ admite ser compreendida com dois significados distintos, a saber: ‘obrigação de pagar quantia’ e como ‘obrigação civil’. Também não se pode desconhecer que, dependendo do significado a ser atribuído à expressão ‘dívida’, o sentido e o alcance do referido dispositivo constitucional variará radicalmente:
a)Compreendendo-se ‘dívida’ como ‘obrigação de pagar quantia’, a vedação imposta no inc. LVII [inc. LXVII] do art. 5º da CF não exclui a possibilidade de ser admitida no ordenamento o uso de prisão civil para a tutela de outras modalidades de obrigação, sobretudo de fazer ou não fazer;
b)Compreendendo-se ‘dívida’ como ‘obrigação civil’, então a vedação do inc. LVII [inc. LXVII], do art. 5º da CF é absoluta, isto é, exclui o uso de prisão civil fora das hipóteses aí indicadas" [11](grifos nossos).
As duas encontram-se bem divididas na doutrina, não havendo consenso entre elas e estão bem aquém de serem pacificadas Ademais, ambas as correntes possuem doutrinadores de peso como adeptos.
Quanto à corrente que entende que o termo ‘dívida’ envolve somente obrigação de pagar quantia (sentido pecuniário) e que é possível decretação de prisão civil atípica para a tutela de outras modalidades de obrigações, temos como seguidores: LUIZ GULHERME MARINONI [12]; PONTES DE MIRANDA [13]; SÉRGIO SHIMURA [14], LISE NERY MOTA [15], dentre outros.
Já quanto à corrente que entende que o termo ‘dívida’ compreende toda e qualquer obrigação civil, vedando-se assim prisão civil atípica (fora da hipótese do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia da CF/88), temos como adeptos: EDUARDO TALAMINI [16]; HUMBERTO THEODORO Jr [17]; OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA [18]; JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA [19], dentre outros.
Quanto à corrente exposta no parágrafo anterior, cumpre expor os bons argumentos de EDUARDO TALAMINI que diz que a prisão civil não pode ser utilizada como medida coercitiva, em virtude de vedação constitucional contida no art. 5º, inciso LXVII. Entende, também, com maestria, que quando o texto constitucional se refere à "dívida", quer aludir ao inadimplemento de obrigações em geral, não só as de conteúdo pecuniário. Rebatendo a tese de que a "dívida" quer se referir apenas às obrigações pecuniárias, pergunta "se a regra geral fosse essa, como explicar que uma das duas exceções previstas na norma – a do depositário infiel – não envolve prisão por dívida pecuniária?" [20] [21]
Há uma corrente isolada desenvolvida pelo doutrinador e livre-docente pela PUC-SP CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, que entende que a prisão civil só é admitida dentro das hipóteses Constitucionais (haja vista que o termo dívida abrange toda e qualquer obrigação civil). Contudo, SCARPENELLA entende ser admissível a prisão penal (que não se confunde com a prisão civil) a ser aplicada consoante as regras de direito penal e processual penal. Transcrevemos nesta oportunidade está corrente isolada:
"É possível a cominação de pena de prisão para o caso de descumprimento de ordem, de determinação judicial. Não prisão civil, entretanto, restrita, para o sistema jurídico brasileiro, para os casos de pensão alimentícia e depositário infiel (CF, art. 5º LXVII). Trata-se de prisão penal a ser aplicada consoante as regras de direito penal e processual penal". [22](grifos nossos).
Em que pese o brilhantismo de SCARPINELLA, entendemos, data venia, impossível a prisão penal no caso de descumprimento de ordem judicial. Como visto neste trabalho, impraticável a aplicação do crime de desobediência quando a norma prevê penalidade administrativa ou civil e a mesma lei não ressalva expressamente a cumulativa aplicação do artigo 330 do CP (como por ex: a testemunha faltosa, segundo o art. 219 do CPP, está sujeita não só ao pagamento de multa e das custas da diligência da intimação, como a processo penal por crime de desobediência). Ademais, para a ocorrência de prisão penal há de existir lei anterior definindo o crime e a respectiva pena em amor ao brocardo Nullum crimes, nulla pena, sine lege, estampado no artigo 1º do Código Penal pátrio, que reza que: não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Deste modo, caso o acusado de violência doméstica sofra, em decorrência de ordem judicial, alguma das medidas elencadas no artigo 22 da lei 11.340/2006, resta impossível a prisão penal com base no artigo 461, caput e § 5º do CPC c.c. artigo 22, § 4º da lei 11.340/2006 e normas penais e processuais penais.
Expostas as principais correntes sobre o tema da possibilidade de prisão civil atípica, confessamos que somos seguidores da doutrina de FREDIE DIDIER JR, que adotou a tese ampliativa da prisão civil, apenas com uma ressalva: o termo "dívida" possui sentido também de "obrigação de conteúdo patrimonial", não necessariamente de conteúdo pecuniário. Uma obrigação de fazer, de não-fazer ou de dar com conteúdo patrimonial não pode ser efetivada por prisão civil, por estar abrangida pelo termo "dívida". Cabe, em tese, prisão civil como medida executiva atípica para a efetivação de decisão judicial que reconheça direito não-patrimonial (non Money judgement) (DIDIER JR, 2008).
Ademais, ainda nos filiando ao pensamento de DIDIER JR., importante salientar que mesmo adotando a corrente ampliativa (a que admite prisão civil atípica fora da hipótese constitucional do devedor voluntário e inescusável de pensão alimentícia) com a ressalva das obrigações com conteúdo patrimonial, devemos nos ater que em razão do valor inerente da liberdade individual, a prisão civil deve ser tida com ultima ratio, vale dizer, "só deve ser utilizada em último caso, quando não for possível alcançar a tutela específica ou resultado prático equivalente por nenhum outro meio. Deve-se lembrar ainda que essa medida não pode ser utilizada quando o cumprimento da ordem judicial exigir que a parte tenha que dispor de parte de seu patrimônio" [23]. "Além disso, o magistrado, antes de decretá-la, deve garantir o exercício do contraditório, permitindo que as partes, sobretudo o destinatário da medida, falem sobre o assunto e, se for o caso, produzam prova para demonstrar o que for necessário". [24] "No mais, é prudente que o julgador, optando por impor a prisão civil, fixe desde logo o seu prazo de duração, salientando que o cumprimento, pelo devedor, da prestação imposta faz cessar de imediato a incidência da medida coercitiva" [25].
5.Conclusão
Ao término do presente trabalho conclui-se que resta impossível a aplicação do crime do artigo 330 do Código Penal no caso eventual tentativa de responsabilização criminal do agressor no caso de descumprimento de medida judicial de proteção à vítima decorrente da aplicação da lei 11.340/2006.
De outro lado, tendo em vista que o direito à liberdade não tem caráter absoluto (assim como todos os direitos), e deve ser sopesado com os direitos fundamentais ameaçados das vítimas de violência doméstica e familiar (tais como o direito à honra, à imagem, à integridade física, à vida etc), abre-se a possibilidade para a prisão civil atípica, desde que intentadas primeiramente medidas civis e processuais civis. Nessa conjuntura, evitando-se a sobrevitimização (o sofrimento adicional que a dinâmica da Justiça Criminal, com suas mazelas provoca normalmente nas vítimas) da que pessoa que já sofreu agressões de ordem física e moral, devemos permitir, por certo, a prisão civil (como medida subsidiária) do agressor que descumpra as medidas judiciais de proteção a ele aplicadas, desde que primeiramente o magistrado tente alcançar a tutela específica ou o resultado prático equivalente por meio de medidas civis e processuais. Caso nem com a implementação de tais medidas ocorra o resultado pretendido, daí sim, como ultima ratio, caberia a prisão civil como forma de obrigar o agressor a cumprir a obrigação, desde que esta não possua caráter patrimonial, pois se o tiver impossível será a prisão civil por clara afronta ao texto constitucional que proíbe a prisão civil por dívidas (haja vista, que no nosso entendimento, o termo dívida abrange obrigações de caráter patrimonial e não a obrigação não-patrimonial).
Notas
- BRUNO, Anibal. Direito Penal: parte geral. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 196. R. I, p. 11-12
- CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. 4ª Ed. Editora Impetus. 2009. Pag.41-42
- CUNHA, Rogério Sanches e outros. Legislação Criminal especial. Ed. Rt. 2009. Coordenação Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches. Pg. 1122.
- Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of Court. RePro, v. 102, p. 222 e ss, São Paulo, RT, 2001.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais Processuais Comentadas. Ed. Rt, 2006, pg. 879
- NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. V.4. p. 413. apud in MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. III. Ed. Atlas. 21ª Ed. 2006. Pg. 354.
- ÁVILA, Thiago André Pierobom. Lei Maria da Penha. Uma análise dos novos instrumentos de proteção às mulheres.http://jus.com.br/artigos/10692. Acesso em 27 de janeiro de 2010.
- in CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal. Vol. 3. Parte especial. 2008. Ed. RT
- Gilmar Mendes, Curso de Direito Constitucional, p.677, 2ª Edição, 2008, Editora Saraiva
- Moraes, Alexandre de – Direito Constitucional/ Alexandre de Moraes- 17ª Ed.-São Paulo: Atlas, 2005, p.105
- GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. apud in DIDIER JR, Fredie. Curso de Processo Civil. Vol.2. Ed. Podivm. 2008. Pg. 423
- MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos, ob. Cit, p. 292-295
- MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, t. 12, p. 326.
- SHIMURA, Sérgio. Efetivação das tutelas de urgência. Processo de Execução. Sérgio Shimura e Teresa Arruda Alvim Wambier (cood.). São Paulo: RT 2001, p. 674-675.
- MOTA, Lise Nery. Prisão Civil como técnica de efetivação das decisões judiciais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 128-158.
- TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos devedores de entrega de coisa [CPC, arts. 461 e 461-A; CDC, 84]. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2003. P. 302.
- THEODORO JR., Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e de não fazer. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2002, n. 105, p. 30
- SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo Cautelar: 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 530
- MEDINA, José Miguel Garcia. Execução Civil – princípios fundamentais. São Paulo: RT, 2002, n. 5.5.5.3, p. 336
- TALAMINI, Eduardo. Ob cit.. P. 302
- Obs: Decreto n. 529, de 6 de julho de 1992 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos), dispõe em seu art. 11 que "ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual. Obs II: O Decreto n. 678, de 6 de Novembro de 1992 (Pacto de São José da Costa Rica), dispõe em seu art. 7º, intem 7, que ninguém deve ser detido por dívida, exceto no caso de inadimplemento de obrigação alimentar.
- BUENO, Cássio Scarpinella. Código de Processo Civil Comentado. Coord. Antônio Carlos Marcato. Ed. Atlas, 2004. Pg. 1413
- MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. apud in DIDIER JR., Fredie. Curso de Processo Civil. Vol. 2. Ed. Juspivm. 2008, pg. 427.
- ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva, p. 396. apud in DIDIER Jr., Fredie. Ob. Cit. p 427.
- DIDIER JR., Fredie. Curso de Processo Civil. Vol. 2. Ed. Juspivm. 2008, pg. 427.