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Aborto de fetos anencéfalos.

Uma questão de paradigmas

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Tratar da possibilidade de aborto de fetos anencéfalos, no Brasil, importa em uma tarefa hermenêutica das mais difíceis. É que as formas clássicas de interpretação do Direito parecem não ser capazes de resolver o problema. Por um lado, costuma-se colocar o direito à vida em sentido amplo como garantidora da vida do ser humano em desenvolvimento, por outro, tem-se a dignidade da pessoa humana na obrigação da mãe em suportar essa gravidez.

Infelizmente, as ciências da saúde, no estado atual não possuem condições de fornecer uma resposta completa e satisfatória sobre o problema. No entanto, não é possível afirmar que essa situação, com o surgimento de novas tecnologias, não se altere e que as ciências possam efetivamente produzir uma resposta que seja reproduzida pelo Direito. Não deve, portanto, o Direito imiscuir-se nas áreas de outras ciências de forma a impedir o avanço e, quem sabe, a criação de uma melhor solução.

Nesse ponto, talvez seja interessante fazer menção à obra de Lawrence Lessig, que, ao tratar do que é o ciberespaço hoje e do que ele possa vir a ser, aduz [01]:

Nature. Essence. Innate. The way things are. This kind of rhetoric should raise suspicions in any context. It should especially raise suspicion here. If there is any place where nature has no rule, it is in cyberspace. If there is any place that is constructed, cyberspace is it. Yet the rhetoric of "essence" hides this constructedness. It misleads our intuitions in dangerous ways.

This is the fallacy of "is-ism"—the mistake of confusing how something is with how it must be. There is certainly a way that cyberspace is. But how cyberspace is is not how cyberspace has to be. There is no single way that the Net has to be; no single architecture that defines the nature of the Net. The possible architectures of something that we would call "the Net" are many, and the character of life within those different architectures is diverse.

Apesar de tratar sobre outro tema, essa noção pode também ser aplicada ao tema em análise. Em resumo, a forma como está consolidado o tema hoje não necessariamente conduz a como ele será no futuro e o Direito deve estar aberto a essas situações sem impedir o desenvolvimento científico. Ainda para Lessig [02], a forma como a tecnologia se apresenta na atualidade não reflete o que ela será e, assim, deve ser regulada apenas em como é.

Nas ciências da saúde, os diversos especialistas divergem sobre o estado do feto anencéfalo. Alguns dos especialistas afirmam que o feto não possui condições de viabilidade, uma vez que o órgão responsável pelo controle das funções do organismo e pelos sentimentos não está presente. Outros especialistas, por sua vez, afirmam que não é possível prever quanto tempo um feto anencéfalo poderá sobreviver fora do corpo da mãe.

A religião, por outro lado, costuma entender que, desde a fecundação, aquela célula que se forma, o zigoto, possui o estado de ser humano. Apesar de esse entendimento não ser unânime, reflete de modo geral as principais religiões presentes no território brasileiro.

A própria noção de vida é um conceito complicado. No Brasil, o Código Civil, em seu art. 2º, estabelece que a personalidade civil da pessoa natural começa com o nascimento com vida, mas resguarda os direitos daqueles que irão nascer com vida.

O legislador optou, portanto, em admitir como fenômeno natural com repercussões jurídicas apenas o nascimento com vida, apesar de seus efeitos retroagirem, ao invés de tratar como fenômeno jurídico a própria formação do zigoto. Por sua vez, o Código Penal, decidiu proteger o feto de forma mais ampla ao proibir o aborto e permiti-lo em apenas duas hipóteses (art. 128 e incisos).

Ocorre, no entanto, que a questão do aborto de fetos anencéfalos conduziria a uma questão de ética e moralidade. Nesse sentido, para Miguel Reale, "as leis éticas, ou melhor, as normas éticas, não envolvem apenas um juízo de valor sobre os comportamentos humanos, mas culminam na escolha de uma diretriz considerada obrigatória numa determinada comunidade" [03], enquanto a moral "é o mundo da conduta espontânea do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra". [04]

É dizer, assim, que, enquanto a moral está circunscrita ao sujeito, o comportamento ético representa uma escolha de valores de uma determinada comunidade e que, a priori, deve ser por todos observados sob risco de ser posto à parte da sociedade.

Tem-se, no entanto, que os valores éticos não são estáticos e modificam-se com o passar do tempo. Assim, considerando-se que o aborto é uma das principais causas de mortalidade feminina, a questão não deve ser encarada sobre esse aspecto, mas sob o aspecto das políticas públicas, não sendo possível determinar com padrões seguros qual o valor ético mais importante para a sociedade, se o direito à vida do feto, se o direito à dignidade da mulher.

Como já é possível observar por essa breve introdução, a questão do aborto de fetos anencéfalos não apresenta uma resposta simples, que possa ser resolvida pela ciência, em seu estado atual de desenvolvimento, e, tão pouco, pelas regras usuais de interpretação de normas, quais sejam: gramatical, teleológica, histórica e sistêmica.

Não se afasta, no entanto, a importância destas formas de interpretação para a aplicação do Direito, diz-se, apenas, que elas podem não ser suficientes para resolver a questão posta sob análise. Deve-se, no entanto, fazer uma ressalva quanto à busca de soluções pautadas na vontade do legislador.

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É que esse aspecto da lei, em raríssimas hipóteses, pode ser determinado de forma satisfatória. Enfatize-se que a construção das leis está associada a um determinado contexto histórico e cultural e, portanto, uma interpretação distinta daquela consubstanciada na vontade do legislador pode estar de acordo com o ordenamento jurídico como um todo e, mais importante, com a Constituição.

De acordo com a lição de Ronald Dworkin, poder-se-ia caracterizar o tema sob a denominação de hard case, que são casos controversos sem uma resposta simples ao problema [05].

Como se sabe, o Direito socorre-se de outras ciências na solução de seus problemas. Como ciência do dever-ser, o Direito, por vezes, precisa buscar o complemento de suas normas em outras ciências, sejam elas sociais, ou naturais. No caso, buscou-se as ciências da saúde como fontes de resposta às indagações surgidas no bojo de um caso.

Nesse sentido, parece ser possível encarar essa questão como uma crise paradigmática, nos termos do que proposto por Thomas Kuhn [06]. É que, em termos gerais, a crise paradigmática surge quando, diante de uma anomalia que não pode ser resolvida pelos métodos científicos atuais, o conhecimento científico entra em um processo de experimentação do próprio paradigma, às vezes com a intenção de integrá-lo, às vezes, de substituí-lo. Durante tal período, as soluções podem apresentar um caráter de filosofia científica, ao invés de ciência propriamente dita.

O que se tem, na hipótese, portanto, é um caso em que as ciências naturais não conseguem oferecer uma resposta precisa à questão do início da vida, fazendo com que os cientistas discutam a própria metodologia das ciências da saúde e reinterpretando soluções anteriores.

Em conjunto com a lição de Lessig anteriormente reproduzida, em um momento como esse, pode ser problemático que o Direito crie uma regra fixa sobre a questão com repercussões no futuro. Deve o Direito limitar-se a normatizar o estado atual das coisas.

Não pode, nesse sentido, o Direito pretender normatiza o alcance da vida. É certo que as normas jurídicas podem influenciar outros ramos do conhecimento humano, mas, como já demonstrado, não devem limitá-los de forma a tolher sua evolução e construção.

Ainda de acordo com Lessig, existem 4 tipos de normas, a saber [07]: normas de mercado, normas sociais, normas jurídicas e arquitetura (tradução livre). Em linhas gerais, as normas de mercado e a arquitetura indicam como as coisas são, enquanto as duas outras como deveriam ser. Portanto, a maior eficiência estaria em associar um tipo normativo com outro, uma norma do ser com uma norma do dever-ser. A arquitetura, nesse contexto, relaciona-se com a natureza e com a forma como as coisas são construídas.

Assim, não é possível ao Direito estabelecer um limite para a vida sem ter noção de como isso realmente é e se as ciências do ser não conseguem, ainda, precisar o limite da vida, não deve o Direito fazê-lo sob pena de impedir o desenvolvimento científico.

Como se pode concluir, a questão do aborto de fetos anencéfalos deve ser definida caso a caso a partir de diretrizes claras. Ainda que o Direito possa parecer não permitir, a interpretação do Direito deve estar associada a outros ramos do conhecimento científico.


REFERÊNCIAS

LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. Nova Iorque: Basic Books, 2006.

_________. Free Culture. Nova Yorque: The Penguim Press, 2004.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed.. São Paulo: Saraive, 2002.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KUHN, Thomas. As estruturas das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1990.


Notas

  1. LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. Nova Iorque: Basic Books, 2006. p. 32.
  2. LESSIG, Lawrence. Free Culture. Nova Yorque: The Penguim Press, 2004. p. 296-297.
  3. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed.. São Paulo: Saraive, 2002. p. 33.
  4. Idem. p. 44.
  5. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  6. KUHN, Thomas. As estruturas das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1990.
  7. LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. op. cit.. p. 123.
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Sobre o autor
Pedro Henrique Arazine de Carvalho Costandrade

Advogado; Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB; Graduando em Letras Português - Licenciatura pela Universidade de Brasília - UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTANDRADE, Pedro Henrique Arazine Carvalho. Aborto de fetos anencéfalos.: Uma questão de paradigmas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2446, 13 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14497. Acesso em: 25 abr. 2024.

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