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Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação

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4 AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

Não há dúvidas que a reprodução humana assistida é tema polêmico, ensejando acirrados debates éticos e questionamentos jurídicos, visto interferir no modo natural de procriação humana, gerando situações antes inimagináveis, desafiando o direito, principalmente as questões relativas à relação de parentesco, relativizando o conceito de filiação, antes um determinismo biológico.

Desde os tempos mais remotos o homem pensou na possibilidade de fecundação fora do ato sexual. A mitologia estrangeira é rica em casos de mulheres que engravidam fora do ato sexual, como por exemplo: Ates – filho de Nana, filha do Rei Sangário, que teria colhido uma amêndoa e colocado em seu ventre (Grécia); Kwanyin – deusa que possibilitava a fecundidade das mulheres que lhe prestassem culto (China); Vanijiin – deusa da fertilidade, mulheres que se dirigiam sozinhas a seu templo retornavam grávidas (Japão); Maria, mãe de Jesus, que engravidou ainda virgem pela força do Espírito Santo (Bíblia); no Brasil é conhecida a lenda do boto que engravida as mulheres que lhe dirigem o olhar (ALDROVANDI; FRANÇA, 2002) [05].

O avanço da ciência, aliada à vontade de reproduzir, permitiram que o sonho mítico se tornasse realidade. As modernas técnicas de inseminação e fertilização assistida tornaram esse "milagre" praticamente um fato "normal", não fossem as dúvidas sobre o desrespeito aos ritmos naturais da vida humana e a valores éticos.

O novo Código Civil elenca algumas das técnicas de reprodução humana assistida, não indo muito além, visto que esta matéria deverá ser regulada por lei específica. Observando o art. 1.597 do diploma civil, veem-se as hipóteses de presunção de paternidade, elencadas nos três últimos incisos, dentre as quais verificamos que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos de fecundação artificial homóloga, inclusive a post mortem, de fecundação in vitro (homóloga), e inseminação artificial heteróloga, com a prévia autorização do marido. Venosa (2005) percebe que este dispositivo resolve inúmeras dúvidas relativas à filiação e à reprodução assistida, deixando tantas outras sem solução, merecendo lei específica que a jurisdicione.

A vontade de ter filhos é inerente ao ser humano. Entretanto, muitos casais não podem, por um motivo ou outro, realizarem o projeto parental.

A todo cidadão é deferido o direito ao planejamento familiar, sendo assegurado constitucionalmente e regulamentado pela Lei nº 9.263/96.

O planejamento familiar é entendido "o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal". Tais ações são deveres do Estado, devendo o Ministério da Saúde garantir os direitos de homens e mulheres em idade reprodutiva, e, para tanto, lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, ampliando as ações voltadas ao projeto parental.

Segundo Nathalie Carvalho Cândido (2007):

Um dos eixos de ação dessa Política é a introdução das tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde. As técnicas de reprodução assistida se mostram necessárias, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde, entre 8% e 15% dos casais têm algum problema de infertilidade, caracterizado como a incapacidade de engravidar após doze meses de relações sexuais regulares sem uso de contraceptivos.

As técnicas de reprodução humana assistida passaram a ser a solução aos casais que não conseguem gerar filhos, driblando os problemas de infertilidade, superando tal infortúnio.

Neste sentido, Aldrovandi; França (2002):

A Reprodução Humana Assistida é, basicamente, a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com problema de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade.

Para tanto, não somente coletou o gameta masculino e o inoculou no corpo da mulher, havendo a fecundação sem a prática sexual, como também realizou toda a fecundação fora do corpo da mulher, unindo espermatozoide e óvulo, para depois implantar no útero desta. Muitos, à época, não acreditavam nesta possibilidade.

A Reprodução Assistida consiste na novidade central da Reprodução Humana, unindo artificialmente os gametas femininos e masculinos. Utiliza dois métodos: o ZIFT e o GIFT (DINIZ, 2007).

O método ZIFT, do inglês Zibot Intra Fallopian Transfer, é a conhecida fertilização in vitro, onde a união dos gametas ocorre fora do corpo da mulher, que consiste na colocação desses zigotos resultantes para o interior das tubas uterinas (antes denominadas trompas de falópio) para que naturalmente ocorra a nidificação. O método GIFT, sigla inglesa para Gametha Intra Fallopian Transfer, consiste na introdução de sêmen na mulher, técnica que conhecemos por Inseminação Artificial (DINIZ, 2007).

A inseminação artificial é um método bem mais simples que aqueles que ocorrem in vitro, visto que há a coleta de gametas masculinos, e estes são injetados dentro da cavidade tubária da mulher, a fim de que os mesmos se encontrem com o óvulo (DINIZ, 2007).

A união do espermatozoide com o óvulo por vezes não ocorre devido a problemas diversos, que vai desde o fraco jato do sêmen, até mesmo a ejaculação precoce, fatos estes impeditivos da fecundação natural.

Tanto as inseminações artificiais, quanto a fertilização in vitro, podem ocorrer de duas formas: homóloga ou heteróloga, a depender da origem dos gametas. Será homóloga quando a fecundação se der entre gametas provenientes de um casal que assumirá a paternidade e a maternidade da criança. Será heteróloga, quando o espermatozoide ou o óvulo utilizado na fecundação, ou até mesmo ambos, são provenientes de terceiros que não aqueles que serão os pais socioafetivos da criança gerada. Geralmente utiliza-se a inseminação heteróloga quando o marido é absolutamente estéril, ou fica patente a dificuldade de inseminação com seu sêmen, recorrendo-se ao material genético de terceiro. Nesta hipótese, o consentimento informado é fundamental para inseminação de mulheres casadas ou vivendo em União Estável, conforme estabelece a Resolução nº 1.358/92 do CFM: "Em caso de mulheres casadas ou vivendo em União Estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro, após processo semelhante de consentimento informado" (CONSELHO..., 1992).

A reprodução humana assistida homóloga - em que se utiliza o material genético do casal na fecundação – não gera problemas maiores no choque da filiação, visto que à socioafetividade se junta o biologismo da origem genética. Talvez os maiores problemas estejam relacionados com a questão sucessória no caso de fecundação post mortem do marido, uma vez que a criança terá sido concebida após a morte de seu genitor.

A problemática em questão está na capacidade para suceder informada pelo atual Código Civil. Nosso diploma afirma, no art. 1.577, que "a capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor". À primeira vista, parece não se conhecer os direitos sucessórios da criança envolvida nesta situação. Entretanto, a doutrina entende que a criança gerada terá sim direito à sucessão, desde que seu genitor a tenha contemplado em instrumento testamentário, solução dada pelo próprio Código Civil no art. 1.799, quando traz a seguinte norma: "Na sucessão testamentária, podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão".

Não havendo discussões maiores quanto a hipótese de reprodução homóloga, sem dúvida alguma a reprodução humana assistida heteróloga é a que mais apresenta problemas a serem dirimidos pelo Direito. E não poderia ser de outra forma, pois nesta hipótese a filiação não será biológica em relação a um dos cônjuges, ou a ambos, regendo-se a relação de parentesco pelo critério socioafetivo, previsto no art. 1.593 do Código Civil atual, quando prevê que o parentesco pode decorrer de outra origem.

Por sua natureza controvertida, somente a reprodução assistida heteróloga será abordada com maior ênfase, visto compor um dos objetivos gerais do presente trabalho acadêmico. Este procedimento apresenta complicações éticas, jurídicas e sociais, as quais merecem o devido tratamento pela ciência do Direito.

4.1 REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA

A inseminação artificial heteróloga é a técnica de reprodução humana assistida que envolve a doação de material genético de terceiro anônimo estranho ao casal, seja por impossibilidade biológica do homem ou da mulher. É prevista no inciso V do art. 1.597 do Código Civil vigente e regulamentada pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina (CÂNDIDO, 2007, p. 1).

Esta forma de reprodução humana, por utilizar célula reprodutiva de terceiro estranho ao casal, é a que apresenta maiores discussões jurídicas em torno de suas consequências dentro do arranjo familiar. E não poderia ser diferente, haja vista que nesta hipótese a filiação não será regida pelo dogma do biologismo, mas sim por um aspecto superior, fundado em laços de afetividade, criando o liame familiar entre a criança gerada por estas técnicas e o pai que não tem no filho seu material genético.

A norma inscrita no art. 1.597, V, do Código Civil trouxe significativa contribuição ao direito pátrio no que concerne a esta forma de reprodução assistida, visto que após o consentimento informado do marido o impede de posterior impugnação de paternidade.

A Resolução CFM nº 1.358/92 dispõe sobre a forma como esse consentimento informado se exterioriza:

O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.

Muito embora o trecho acima declinado seja norma de caráter ético, e, portanto, sem força cogente, não podemos duvidar que hipóteses há que mulheres casadas utilizem desta técnica sem o consentimento informado do marido. E neste caso, teria o marido obrigação em assumir a criança? Poderia ele dissolver a sociedade conjugal por grave injúria?

Segundo a doutrina, ao marido não poderia ser imputada a paternidade da qual não demonstrou interesse, constituindo até mesmo causa de dissolução do vínculo matrimonial e de ação negatória de paternidade cumulada com anulação do registro de nascimento, se houver sido feita enganadamente.

As formas de determinação de paternidade e maternidade, derivadas das técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga, ocorre de dois modos.

A primeira é a forma presumida para os filhos nascidos na constância do casamento por força do inciso V do art. 1.597 do Código Civil. Andou bem o legislador quando normatizou a presunção de paternidade em casos de reprodução humana assistida heteróloga, desde que haja o consentimento direto e sem vícios do marido. A vontade, acoplada à existência do vínculo conjugal e ao êxito da técnica de procriação assistida heteróloga, se mostra o elemento fundamental para o estabelecimento da paternidade que, desse modo, se torna certa, insuscetível de impugnação pelo marido.

A segunda forma é aquela percebida no seio de casais que não se uniram em matrimônio, hipótese em que os filhos não terão o enquadramento legal nas situações de presunção de paternidade. Entretanto, não pode a criança ser criada em uma total incerteza quanto à sua filiação, de modo que o aspecto socioafetivo é o que melhor se adéqua a tais casos. Não se podem alijar os pais do direito de terem para si os filhos almejados e conseguidos à custa de muito sacrifício, dor, gastos médicos e riscos à saúde da mulher quando da utilização das técnicas de reprodução humana assistida. Ressalte-se que nesta situação, a paternidade socioafetiva, uma vez consentida, não se permite seu retrocesso, de forma que não há que se falar em impugnação posterior da paternidade.

Quanto aos possíveis desentendimentos que filhos socioafetivos possam vir a ter com seus pais, não podem ser aceitos como motivo para desconstituição da filiação socioafetiva, pois é natural que discussões e problemas surjam na convivência familiar, já que ninguém é tão parecido com outro que não tenha ideias diferentes que possam gerar conflitos. Mesmo que estes conflitos sejam tão absurdos ao ponto de descaracterizar o estado de filho, eles não irão se resolver através da atribuição da paternidade ou da maternidade ao doador.

Ao assumir a filiação socioafetiva, os pais não podem posteriormente dispor de seus deveres legais, sociais e morais de educação, amor, zelo, e de oferecimento de um ambiente adequado ao pleno desenvolvimento da criança. Não há outro modo de se pensar, visto que nesta hipótese, muito embora os laços não se perdurem por questões biológicas, a socioafetividade assumida faz as vezes, de modo que atualmente o afeto se mostra muito mais adaptado à presente conjuntura social.

Após esta breve passagem do principal aspecto controvertido, necessário entrar no ponto específico deste trabalho, apresentando a superação do dogma do biologismo, a ascensão da socioafetividade, e por último a impossibilidade de desconstituição do estado de filiação a partir de resultados de DNA, nos moldes da Súmula 301 do STJ.

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5 A DESBIOLOGIZAÇÃO DO CONCEITO DE FILIAÇÃO

Para definirmos o direito à filiação ou o dever da filiação, devemos ter em mente que hoje a doutrina e a jurisprudência consagram, além da filiação biológica, a filiação afetiva, também chamada de socioafetiva, muito embora em passado recente não tenha sido assim.

A filiação socioafetiva tem como principal estandarte a adoção, aqui incluindo a adoção à brasileira, prática recorrente nas cidades interioranas. Entretanto, diante dos recentes avanços da biotecnologia, a popularização das técnicas de reprodução assistida heteróloga, o critério socioafetivo destacou-se muito no seio jurídico e familiar, se mostrando o mais coerente com os interesses da sociedade, da criança e dos pais que intentaram o projeto parental.

Após o surgimento do liame de afeto criado entre a criança gerada com material genético de outrem e os pais que a quiseram, não pode o doador reivindicar a paternidade, e nem pode o filho, após longos anos de dedicação de seus pais, intentar conhecer seus pais biológicos com o fito de alterar sua filiação, exceto para fins terapêuticos, devendo a identidade daquele que doou o sêmen ser preservada, abrindo-se conhecimento apenas ao estritamente necessário.

A família brasileira sofreu profundo abalo em sua estrutura em um curto espaço de tempo. Foram mudanças bruscas, antes nunca sentidas em qualquer sociedade, não em tempo recorde. Pode-se dizer que o século passado foi o nascedouro destas mudanças, mormente após a segunda guerra mundial, momento em que o mundo passou a dar mais atenção ao homem considerado globalmente.

O Código Civil de 1916, arraigado em uma sociedade patriarcalista e carente de recursos científicos, regulamentava o estado de filiação em meras presunções legais tendentes a facilitar a sua identificação prática, adotadas em razão das limitações tecnológicas que impediam, antes do advento dos testes de DNA, a certeza a respeito da origem genética (ALBUQUERQUE, 2007).

Em que pese a vinculação jurídica às origens genéticas, esta não deve ser vista como algo rígido, estático no tempo, imune a toda e qualquer evolução social. Deve ele, na verdade, servir como um dos critérios, mas não o preponderante.

Lôbo Netto (2004), em interessante passagem, afirma:

Na tradição do direito de família brasileiro, o conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva sempre se resolveu em benefício da primeira. Em verdade, apenas recentemente a segunda passou a ser cogitada seriamente pelos juristas, como categoria própria, merecedora de construção adequada. Em outras áreas do conhecimento, que têm a família como objeto de investigação, a exemplo da sociologia, da psicanálise, da antropologia, a relação entre pais e filhos fundada na afetividade sempre foi determinante para sua identificação.

Diz-se que na antiguidade, remontando à família romana, base de nosso arranjo familiar, os laços familiares se faziam em torno da religião cultuada pelo pater, de modo que faziam parte de uma mesma família tanto os filhos gerados na constância do matrimônio, quanto escravos, clientes e tantos outros que cultuavam os mesmos antepassados que o pater. Assim, dois homens seriam parentes quando partilhassem o culto aos mesmos antepassados, sendo importante observar que inexistia parentesco por ascendência exclusivamente feminina, ou seja, o compartilhamento de uma mesma antepassada mulher não ligava dois homens por parentesco, posto que cada um estaria vinculado ao culto doméstico de seus antepassados masculinos (ALBUQUERQUE, 2007). Naquela época, o parentesco, mais precisamente a filiação, não se sustentava em laços sanguíneos (agnatio). Somente com o advento da República, e no princípio do Império, ganhou destaque uma relação de filiação sustentada em laços de sangue, a cognatio, independente da agnatio.

Como se depreende do acima afirmado, no Direito Romano pós-clássico coexistiram duas formas de se reconhecer a filiação: uma fundada em laços de consanguinidade, adotando o critério biológico, e outra desvinculada da origem biológica.

Já na Idade Média, sob forte influência da Igreja, adotou-se o critério da legitimidade, ou seja, somente eram legítimos os filhos havidos na constância do casamento, enquanto que os outros eram considerados bastardos, sofrendo uma série de limitações jurídicas.

Em verdade, o direito abraçou a verdade biológica, convertendo-a em verdade real da filiação, decorrência de fatores religiosos, históricos e ideológicos, que serviram de mote à hegemonia do modelo familiar patriarcal e matrimonializada.

Observando a evolução do direito, Lôbo Netto (2004, p. 1) informa:

Ao longo do século XX, a legislação brasileira, acompanhando uma linha de tendência ocidental, operou a ampliação dos círculos de inclusão dos filhos ilegítimos, com redução de seu intrínseco quantum despótico, comprimindo o discrime até ao seu desaparecimento, com a Constituição de 1988. Com efeito, se todos os filhos são dotados de iguais direitos e deveres, não mais importando sua origem, perdeu qualquer sentido o conceito de legitimidade nas relações de família, que consistiu no requisito fundamental da maioria dos institutos do direito de família. Por conseqüência, relativizou-se o papel fundador da origem biológica.

No que tange aos aspectos de filiação, o direito sempre se sustentou em meras presunções legais, seja pela natural dificuldade em se determinar a paternidade, seja por óbices histórico-sóciais, notadamente o patriarcalismo que preponderou desde as primeiras formas de arranjo familiar adotadas pelos antigos povos.

Como dito alhures, o conceito de filiação sofreu ao longo dos anos uma profunda reformulação, onde as novas técnicas artificiais de reprodução provocaram um desmoronamento completo nas bases, antes arraigadas, da filiação.

O direito de família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes da paternidade, maternidade e filiação, e todas essas transformações permitiram a ocorrência de um importante fenômeno, denominado desbiologização, ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.

Em um primeiro, e superficial contato, o termo desbiologização provoca dúvidas, questionamentos e mesmo desconhecimento. Podem alguns considerar até mesmo inauditismo, entretanto, não o é. O termo começou a se destacar muito provavelmente com a publicação da obra "A desbiologização da paternidade", nos idos de 1979, pelo autor João Baptista Villela (PAULILLO, 2003).

Utilizando termos de outras ciências, notadamente a biologia, passou-se a jurisdicionar o termo devido à profunda mudança de paradigma da filiação sentida pelo nosso ordenamento jurídico. Neste sentido, Paulillo (2003):

Nasceu no esteio de um caudal de teses multifocadas na paternidade real não-natural e nas diversas micro-áreas espraiadas do Direito Familiarista, incluindo campos diversos, mas complementares, como a antropologia, a biologia, a psicologia e a sociologia. Um tema profícuo, dada sua relevância metajurídica.

Pelo atual posicionamento doutrinário, hoje em dia não é pai ou mãe simplesmente aquela pessoa que gera uma criança, mas sim quem cria, que ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade, ou seja, a pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe em atendimento ao melhor interesse da criança. Isso reafirma premissa indiscutível: para ser pai não basta ser a fonte do espermatozoide fecundante, para ser mãe não basta gerar o feto. É preciso exercer o poder familiar de forma permanente e efetiva.

O determinismo do biologismo passou a ser contestado a partir do momento em que a doutrina volveu os olhos para a existência de um outro fundamento para a filiação, verdadeiramente de ordem cultural e desde sempre radicalmente presente na adoção: a socioafetividade. O direito torna-se capaz de perceber, através da construção doutrinária então emergente, que paternidade e maternidade não são geração, mas sim afetividade. Neste sentido, Albuquerque Júnior (2007):

O desempenho perene da função de pai ou de mãe, com a criação de laços afetivos recíprocos com a criança e o desempenho das atividades de educação e cuidado passa a ser visto como suporte fático da filiação, concepção esta que ganharia força após a Constituição de 1988 e sua regulamentação das relações familiares com especial atenção aos princípios da liberdade, da igualdade e da afetividade.

A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou uma mãe e seus filhos. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas.

A desbiologização deve ter como foco o efetivo amparo moral, psicológico e educacional, o respeito e a socialização entre pais e filhos no recíproco afeto, mesmo que não-biológicos. Princípios que, quando presentes, minimizam as ameaças à ruptura familiar através do diálogo construtivo na manutenção do alicerce familiar em suas variadas e mutáveis estruturas através dos tempos.

Homenageando a afetividade, o Colendo Tribunal de Justiça do Paraná julgou da seguinte forma no Acórdão nº 108.417-9, exarado pela 2ª Câmara Civil, Relator Des. Accácio Cambi, publicado no DJ do dia 12.12.2001:

A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade.

No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da denominada ''''adoção à brasileira'''' (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana.

A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ''''adoção à brasileira'''', não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado.

Do julgado acima retiramos a premissa da sociafetividade, que sem problema algum se aplica perfeitamente à hipótese da reprodução humana assistida heteróloga. A doutrina tem entendido que, nos casos de inseminação heteróloga, para se definir o parentesco, deverão ser considerados somente o pai ou a mãe socioafetiva, desconsiderando-se a paternidade ou maternidade biológica, à semelhança do que ocorre na adoção.

Ainda retirando-se conclusões do julgado acima, observa-se o respeito ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana, o qual funciona como parâmetro para muitos outros princípios, inclusive o aqui estudado: a sociafetividade.

O direito de família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes da paternidade, maternidade e filiação, e todas essas transformações contribuíram para a ocorrência do importante fenômeno denominado "desbiologização", ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.

É na intensa discussão entre a verdade biológica e a socioafetiva é que surge o instituto da posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, o caráter sociológico da filiação. É na posse de estado de filho que se vê caracterizada a paternidade de afeto.

Aldrovandi; França (2002) nos mostra a importância da posse do estado de filiação, o qual tem por base as relações socioafetivas:

A importância de tal instituto se revela quando da existência de conflitos de paternidade, especialmente quando da filiação extramatrimonial, como por exemplo, nos casos em que as relações de afeto entre pai e filho não condizem com a paternidade jurídica, ou ainda quando comprovada a paternidade biológica, mas a existência de posse de estado de filho se dá com um terceiro, que não o pai genético. Em todos esses casos, assume importância primordial a posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, a verdade sociológica. É a verdade sócio-afetiva ganhando o abrigo do Direito.

Segundo Lôbo Netto (2006), o importante é ver que a relação de paternidade já não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-biológica. Durante muito tempo prevaleceu a presunção de que somente eram filhos as crianças geradas biologicamente na constância do casamento de seus pais, que neste caso haveria uma identidade entre a filiação biológica e a sociaofetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes.

Neste sentido, continua o autor lembrando-se de trecho de um artigo de sua autoria, intitulado O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, publicado na 1ª edição da Revista Brasileira de Direito de Família:

Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios de paternidade.

De fácil dedução, a paternidade não é apenas o dever de prover alimentos, ou consentâneo de partilha de bens no direito sucessório. É muito mais que isso. É a constituição de valores, desenvolvimento interpessoal no interesse da criança, construído ao longo da convivência familiar. É atualmente um múnus, direito-dever erguido na relação afetiva, com respaldo constitucional em busca da concretização dos direitos fundamentais da pessoa em formação, como o direito à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar, todos protegidos pela Constituição da República no art. 227. Enfim, pai é todo aquele que assumiu todos estes deveres, ainda que não seja o genitor.

Pela desbiologização do conceito de filiação surge uma nova categoria, o estado de filiação, compreendido como o que se estabelece entre o filho e aquele que assume os deveres de paternidade, que correspondem aos direitos mencionados no art. 227 da Constituição. Trata-se de qualificação jurídica dessa relação de parentesco, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai é titular do estado de paternidade em relação a ele. Assim, onde houver paternidade juridicamente considerada haverá estado de filiação. O estado de filiação é presumido em relação ao pai constante do registro de nascimento (LÔBO NETTO, 2006, p. 797).

O estado de filiação encontra suporte direto na afetividade, outra categoria que ganhou destaque paulatino, principalmente diante das recentes técnicas de reprodução humana assistida. É entendida como o liame que une duas pessoas em razão do parentesco ou de outra fonte constitutiva da relação de família. A afetividade familiar é, pois, distinta do vínculo de natureza obrigacional, ou patrimonial, ou societário.

O afeto foi elevado à categoria de princípio jurídico, tendo força normativa, impondo deveres e obrigações aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Desta forma, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o dever de afetividade. Além dos fundamentos contidos nos artigos 226 e seguintes da Constituição, ressalta o dever de solidariedade entre os membros da família (art. 3º, I, da Constituição), reciprocamente entre pais e filho (art. 229) e todos em relação aos idosos (art. 230). A afetividade é o princípio jurídico que peculiariza, no âmbito da família, o princípio da solidariedade (LÔBO NETTO, 2006).

5.1 JURISDICIONALIZAÇÃO DA SOCIOAFETIVIDADE

Ao longo de todo este trabalho acadêmico restou evidenciado que o atual ordenamento jurídico adota o modelo inclusivo da paternidade, não havendo qualquer norma constitucional que obrigue a identidade entre genitor e pai para a configuração do aspecto filiativo, ou mesmo a preponderância do critério biológico. A Constituição Federal de 1988 tomou partido neste sentido, apesar dos espantosos e recorrentes desvios doutrinários e jurisprudenciais, seduzidos pela impressão de certeza de exames genéticos, particularmente do DNA.

Nossa Lei Maior é rica em vários dispositivos que mostram esta tendência em destacar a filiação socioafetiva como melhor critério que respeite os interesses do menor. Dentre as várias normas, pode-se elencar as seguintes: a) Art. 227, § 6º, o qual preconiza serem todos os filhos iguais, independentemente de sua origem; b) Art. 227, §§ 5º e 6º, adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos; c) Art. 226, § 4º, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida; d) Art. 227, caput, que defende o direito à convivência familiar, e não à origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente.

A filiação socioafetiva, uma vez estabelecida na convivência familiar, impede a contradição da paternidade, ou mesmo impugnada. A investigação de paternidade somente é cabível quando não há pai, o que não é o caso.

Durante alguns anos, foi frequente o número de julgados dos tribunais sustentados erroneamente no art. 27 do Estatuto da Criança e Adolescente. Para este dispositivo infraconstitucional, o direito ao estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. Antes do advento do Código Civil de 2002, a norma do ECA fora muito utilizada pelos tribunais em seus julgados para justificar a impugnação à paternidade já existente. O erro reside justamente em ser o estado de filiação algo construído e incorporado com a convivência familiar duradoura. O artigo somente deve ser aplicado quando não houver paternidade, nunca para contraditá-la ou impugná-la.

O Código Civil de 2002, influenciado pelos novos ares do direito de família trazidos pela Constituição da República de 1988, suplantou de vez o paradigma do Código Civil anterior, que estabelecia a relação entre filiação legítima e filiação biológica; todos os filhos legítimos eram biológicos, ainda que nem todos os filhos biológicos fossem legítimos, traçando as linhas fundamentais em prol da paternidade de qualquer origem, e não apenas a biológica.

Neste sentido, Lôbo Netto (2006, p. 799):

Com o desaparecimento da legitimidade e a expansão do conceito de estado de filiação para abrigar os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação), o novo paradigma é incompatível com o predomínio da realidade biológica. Insista-se, o paradigma atual distingue paternidade e genética.

O atual Código Civil traz diversas normas albergando a clara e límpida opção da paternidade socioafetiva pelo legislador pátrio.

O art. 1.593 caminha neste sentido quando afirma ser o parentesco derivado da consanguinidade ou de outra origem. Nesta última parte percebe-se a previsão da determinação da filiação por outros aspectos que não unicamente o biológico. É neste trecho que reside o persistente equívoco de boa parte da jurisprudência pátria. A paternidade por outra origem, qual seja, a socioafetiva, goza de igual dignidade e merece o mesmo tratamento.

Da mesma forma segue o art. 1.596, o qual reproduz a regra constitucional da igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição da República de 1988 revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo, soterrando a antiga discriminação que era deferida aos filhos originados fora do casamento.

Por sua vez, o art. 1.597, V, prevê a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, utiliza-se o material genético-reprodutivo de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. Nesta hipótese a origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior.

Já o art. 1.605 mostra-se como o dispositivo consagrador da posse do estado de filiação. Tal norma preceitua que, na falta ou defeito no termo de registro de nascimento, a filiação poderá ser provada por qualquer meio admitido em direito, mormente quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente, ou ainda quando existirem veementes presunções resultante de fatos já certos. Esta última parte protege as relações familiares que na experiência brasileira incluem-se a posse de estado de filiação do filho de criação e a adoção de fato, também chamada "adoção à brasileira", que é feita sem observância do processo judicial, mediante declaração falsa ao registro público. O CC/2002 em nenhum momento elenca, nem mesmo exemplificativamente, quais seriam estes meios de prova, mostrando-se amplas as possibilidades, de certo que a socioafetividade pode aí ser incluída sem problema algum, sendo mesmo que a solução mais correta nestes casos.

Por último o Art. 1.614 contém duas normas em seu bojo. Na primeira parte temos que a pessoa maior somente pode ser reconhecida como filho com o seu consentimento. Na segunda parte, o menor pode impugnar seu reconhecimento ate é quatro anos após atingir a maioridade ou a emancipação. Este artigo em verdade mostra que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. Claro está que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento não se enquadra no conceito estrito de reconhecimento da paternidade.

Os dispositivos acima apresentados servem de mote à contestação da primazia ou exclusividade da origem genética como determinante da filiação, visto que a paternidade é mais que um dado da natureza, é um plexo de direitos e deveres que se atribui a uma pessoa em razão da posse do estado de filiação, podendo ser ele consanguíneo ou não.

5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Como já dito por vezes no presente trabalho, a família foi, durante muito tempo, eminentemente patriarcalista, matrimonializada e hierarquizada. Estruturalmente girava em torno do patrimônio familiar, tendo como função precípua servir de meio à transmissão da herança de pai para filho. Em razão do advento de alguns movimentos sociais como a revolução industrial, a urbanização e a revolução feminista, esse modelo de família foi aos poucos se desfazendo.

Segundo Lobo Netto (2000):

O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988.

A crescente urbanização, aliada à revolução industrial, fez com que o número de membros da família diminuísse. A mulher lançou-se no mercado de trabalho, passando a auxiliar o marido no sustento da casa. Alcançando maior autonomia e independência financeira, a união entre homem e mulher justificava-se, neste momento, em laços afetivos, principalmente com o advento da lei do divórcio, nos idos da década de 1970.

Ao participar do mercado de trabalho, a mulher deixava seu lar por algumas horas do dia, passando o homem a auxiliá-la nos afazeres domésticos e, com isso, ele começou a conviver mais com seus filhos, surgindo um ambiente mais propício ao estreitamento de laços afetivos entre o pai e seus filhos, antes uma relação hierarquizada.

Este ambiente mostrou-se propício ao desenvolvimento do afeto no meio familiar, elevando-o ao patamar de princípio jurídico norteador do novo arranjo familiar brasileiro, passando a ser um dos mais relevantes imperativos axiológicos do Direito de Família. Isso porque a atual família só faz sentido se for alicerçada no afeto, razão pela qual perdeu suas antigas características: matrimonializada e hierarquizada.

A despatrimonialização do direito civil contribuiu em muito para a elevação da afetividade ao status de princípio jurídico, tendo no macroprincípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a premissa para promover a pessoa ao centro do ordenamento jurídico nacional. O princípio da afetividade pode, sem dúvida alguma, ser reconhecido como um dos vários desdobramentos do princípio da dignidade humana, notadamente no direito de família.

Sendo assim, para que haja respeito à dignidade de cada membro da família, é necessário que o seio familiar seja um ambiente mergulhado no profundo respeito, compreensão, amor, atenção e proteção entre todos, sentimentos que podem ser reconhecidos no princípio da afetividade.

A família atual adotou perfeitamente a nova roupagem da afetividade, visto que aquela já não é mais vista como mera instituição, mas sim como instrumento de desenvolvimento e efetividade prática a dignidade e satisfação de seus membros.

O princípio da afetividade é tão importante que seus efeitos permanecem até mesmo após o divórcio, já que quando o casamento termina o que cessa é apenas a relação de conjugalidade, mantendo-se a relação parental, que será compartilhada para sempre entre pais e filhos. Outro exemplo claro é no reconhecimento das uniões estáveis, na paternidade socioafetiva e no instituto da adoção prevista no Código Civil.

O ordenamento jurídico converteu a afetividade em princípio jurídico, possuindo força normativa, impondo dever e obrigação aos membros da família, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido o afeto. Assim, pode haver desafeto entre pai e filho, mas o direito impõe o dever de afetividade. Além dos fundamentos contidos nos artigos 226 e seguintes da Constituição, ressalta o dever de solidariedade entre os membros da família (art. 3º, I, da Constituição), reciprocamente entre pais e filho (art. 229) e todos em relação aos idosos (art. 230). A afetividade é o princípio jurídico que peculiariza, no âmbito da família, o princípio da solidariedade (LÔBO NETTO, 2006).

Maria Berenice Dias (2005, p. 66-67), neste sentido, informa:

Ao serem reconhecidas as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, como entidade familiar merecedora da tutela jurídica, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade como um direito a ser alcançado.

Alcançando o patamar de princípio jurídico, a afetividade deve ser vista por todos os membros, o que não quer dizer que seja obrigatória, seria teratológico impor que todos se amem. O que o princípio quer reforçar é o dever de mútua cooperação ao pleno desenvolvimento dos membros, função assumida pela nova família brasileira após sua despatrimonialização.

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Sobre o autor
Aurimar de Andrade Arrais Sobrinho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB e Técnico Judiciário do TRE-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARRAIS SOBRINHO, Aurimar Andrade. Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2495, 1 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14662. Acesso em: 23 dez. 2024.

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