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Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação

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6 SÚMULA 301 DO STJ: A VERDADE DO DNA E RETROCESSO

O advento dos exames de DNA causou furor entre os familiaristas de todo o mundo. A certeza quase que absoluta que os resultados do exame de DNA gerava deslumbrou o mundo científico e jurídico, sendo espantosos e recorrentes os desvios doutrinários e jurisprudenciais.

Antes do advento do atual Código Civil de 2002 era hábito dos tribunais julgarem erroneamente com base art. 27 do ECA. Este dispositivo afirmava ser direito personalíssimo, indisponível e imprescritível o direito ao reconhecimento do estado de filiação, podendo-se o menor questionar e impugnar a paternidade já existente. No caso das técnicas de reprodução humana assistida chegar-se-ia ao absurdo do indivíduo gerado por estas técnicas intentar conhecer seus pais biológicos com fins patrimonialistas, suplantando toda a convivência familiar formada ao longo de anos.

Entretanto, verifica-se que o atual CC/02 suplantou tal tese. O estado de filiação é algo construído no decorrer da convivência familiar sustentada em laços de afeto, independente de origem biológica. O dispositivo citado anteriormente somente é aplicável no caso de inexistência de paternidade conhecida.

Com base em sete precedentes, o STJ publicou a Súmula 301, onde traz o seguinte enunciado: "Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade".

A citada súmula peca por não restringir seu campo de atuação, fazendo parecer que seja aplicável em toda e qualquer situação em que se queira impugnar a paternidade e atribuí-la a alguém. Os sete precedentes tinham como ponto comum o fato da criança ter sido registrada apenas com a maternidade conhecida, onde as partes envolvidas buscavam o reconhecimento da paternidade pelos pais biológicos.

Visto superficialmente, o enunciado procura ater-se ao campo processual de produção de provas. Entretanto, seus efeitos vão muito além, atingindo o direito material, desconsiderando toda uma construção jurídica. Erra ao considerar a supremacia da paternidade biológica em detrimento do novo paradigma da filiação, a socioafetividade. Confunde investigação da paternidade com o direito da personalidade de conhecimento da origem genética. Cria desnecessariamente mais uma presunção no direito de família: a da confissão ficta ou da paternidade não provada (LÔBO NETTO, 2006).

A Súmula 301 do STJ vai de encontro ao preconizado pelo STF, no sentido de que ninguém pode ser obrigado a submeter-se a exame de DNA, pois tal ato violaria garantias constitucionais explícitas e implícitas, a saber, preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta da obrigação de fazer. Impor a paternidade pelo só fato da pessoa se recusar a realizar o exame é violar todas as garantias constitucionais preservadas pelo STF. Para não lhe ser imputada a paternidade ficta a pessoa tem que se submeter ao exame.

A prova de filiação se faz pelo termo de nascimento estabelecido no registro civil, conforme determina o art. 1.603 do CC/02. O registro pode conter a filiação biológica ou a filiação não biológica. É cediço que não se exige do declarante qualquer prova biológica, bastando sua declaração. A declaração como qualquer outra, poderá estar viciada por erro ou por falsidade. Mas não haverá erro ou falsidade da declaração para registro de filiação oriundo de posse de estado, consolidado na convivência familiar.

Sabe-se que enquanto essa súmula viger, dois grandes limites implícitos devem ser observados para sua adequada aplicação e interpretação em conformidade com a Constituição e o CC/02. O primeiro limite não permite a negação de paternidade derivada de estado de filiação comprovadamente constituído. O segundo óbice é quanto à presunção de paternidade, em ação investigatória quando haja apenas mãe registral, haja vista depender da existência de provas indiciárias consistentes, não podendo ser aplicada isoladamente.

Ainda em relação ao primeiro limite, cabe frisar que o CC/02 apenas admite duas hipóteses de impugnação da paternidade: uma, pelo marido, conforme o art. 1.601, e outra pelo filho contra o reconhecimento da filiação, os moldes do art. 1.614. Não há, pois, fundamento legal para a espantosa disseminação de ações negatórias de paternidade, com intuito de substituí-la por suposta paternidade genética (LÔBO NETTO, 2006).

Em relação ao segundo limite, temos que a presunção não pode ser tomada isoladamente, mas sim acompanhada de um forte material indiciário de possível paternidade. A presunção apenas é um dos elementos de convencimento à disposição do juiz. E não poderia ser diferente. Aceitar a livre movimentação da máquina judiciária apenas com suporte na presunção estabelecida na Súmula 301 do STJ, seria permitir que qualquer pessoa quisesse ser filho de artista, de milionários e tantas outras pessoas, as quais, por simples negatória em realizar o exame de DNA, seriam considerados pais presumidos. Um total absurdo.

O campo de atuação da Súmula 301 do STJ é a investigação da paternidade, sendo incabível como fundamento de ação negatória ou de impugnação de paternidade. A investigação ou reconhecimento judicial da paternidade busca garantir o reconhecimento de pai a quem não o tem, ou seja, na hipótese de genitor biológico que se negou a assumir a paternidade. Portanto, é incabível nas hipóteses de existência de estados de filiação não biológica protegidos pelo direito: adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação. É totalmente incabível para constituir paternidade desconstituindo a existente fundada principalmente em laços socioafetivos (LÔBO NETTO, 2006).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem dúvida alguma a constitucionalização das relações familiares, aliada à repersonalização do Direito Civil, principalmente no campo familiarista, contribui em muito para uma total reformulação do conceito de família que antes se conhecia.

A nova ordem constitucional passou a ver a família sob outros olhos, não sendo mais identificada apenas pelo casamento. O elemento caracterizador da família é o vínculo afetivo existente entre os membros, unindo pessoas rumo a um objetivo comum, fazendo gerar entre os componentes do núcleo familiar os sentimentos de comprometimento, cooperação, amor, ajuda.

A superação de valores individualista e egoístas se não suplantou os critérios biológico e legal de filiação, ao menos os colocou em segundo plano, reconhecendo-se a afetividade como determinante mais eficaz e sintonizado com as recentes mudanças sociais, convertendo-o em princípio norteador das relações familiares, efetivando, neste plano, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

A biotecnologia também contribuiu fortemente para a superação do biologismo no que concerne aos aspectos filiativos. As novas técnicas artificiais de reprodução humana provocaram um desmoronamento completo nas bases, antes arraigadas, da filiação.

O Direito de Família sofreu ao longo dos anos profundas mudanças, principalmente em razão dos grandes avanços da biotecnologia, que devemos repensar e vivenciar as relações entre pais e filhos. A família atual não mais se identifica com os tradicionais modelos familiares antes predominantes. A relação entre pais e filhos não é mais de completa subordinação e hierarquia. Todos devem contribuir para o desenvolvimento pleno dos membros da família.

O poder familiar ganhou novos contornos. Se antes era representado por um conjunto de direitos dos pais sobre os filhos, agora significa um conjunto de deveres dos pais não só de ordem material, mas principalmente de ordem moral. Isto quer dizer que o ordenamento pátrio impõe aos pais deveres de ordem moral, acima, portanto, dos deveres de ordem patrimonial, devendo educá-los, dar atenção, carinho, afeto, enfim, amor pleno.

A superação da visão patriarcalista, hierarquizada e matrimonializada da família somente foi possível quando o meio social percebeu que a família não devia servir aos caprichos do pai. Os avanços sociais após a segunda grande guerra mundial, aliada à evolução biotecnológica, contribuíram para a desbiologização do conceito de filiação.

O direito, então, teve que jurisdicionalizar esses novos valores e situações surgidas. As técnicas de reprodução humana assistida colocaram em xeque o antigo determinismo biológico da filiação, haja vista que em pelo menos um dos pólos a filiação será necessariamente socioafetiva.

Desta forma, o conceito de filiação não mais se sustenta no dogma do biologismo ou em meras presunções legais. Há algo superior, mais harmonizado com o atual estágio de evolução social. A socioafetividade se mostra como o critério que melhor atende aos princípios da dignidade humana e do melhor interesse do menor. É fato que liga pessoas pelo que há de mais sublime, o afeto, amor, carinho. Gera responsabilidades, mesmo que findo o contato direto entre pais e filhos.

Portanto, é necessária a conscientização dos juristas, tribunais, magistrados e sociedade para essa nova postura de ver a família. Sustentar a filiação em aspectos biológicos e legais em detrimento de sentimentos superiores é retroceder na história evolutiva do homem. Fechar os olhos a essa nova realidade é ser negligente com todas as conquistas neste campo de fundamental importância a todos os indivíduos, a família. O direito não pode manter-se inerte e nem coagido ou deslumbrado com uma ou outra corrente tradicional. Deve-se atender àquilo que melhor se coaduna com o desenvolvimento dos membros da família. E o critério socioafetivo é, sem dúvida nenhuma, o que cumpre tal munus com maior eficácia.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6668>.
  2. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6668>.
  3. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4752>.
  4. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4752>.
  5. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3127>.
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Sobre o autor
Aurimar de Andrade Arrais Sobrinho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB e Técnico Judiciário do TRE-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARRAIS SOBRINHO, Aurimar Andrade. Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2495, 1 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14662. Acesso em: 19 abr. 2024.

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