Artigo Destaque dos editores

A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil

Exibindo página 2 de 4
Leia nesta página:

2 O ESTADO AUTORITÁRIO "MASCARADO"

A partir da evolução histórica dessa complexa relação existente entre indivíduo e Estado, passamos a ter a necessidade de que este criasse um corpo normativo que possibilitasse a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos em face do forte caráter intervencionista do poder estatal, ainda sob a sombra de regimes ditatoriais preexistentes. Com este propósito, os países inseriram em suas constituições uma série de princípios de cunho garantista, que impõem ao Estado ou a quem quer que seja respeito aos direitos individuais. Desse modo, tenta-se estabelecer um contraponto à tendência, cada vez mais evidente, de se suprimir estes direitos em prol da utópica consecução da "paz social".

O Estado de Direito, ou seja, a existência de um Estado politicamente organizado e dotado de um conjunto de regras que limitam o seu poder, foi a base sob a qual se pôde erigir a ideia de respeito a um núcleo de direitos básicos, intangíveis do ser humano. Neste contexto, a Constituição exerce um importante papel no fortalecimento dessas garantias, haja vista fornecer aos demais ramos do direito diretrizes e objetivos a serem atingidos, no que a doutrina denomina de "constituição dirigente".

A constituição, dessa forma, constitui ao mesmo tempo a base normativa que permite ao estado atuar e estabelecer as limitações a essa atuação, através da consagração dos direitos e garantias fundamentais. O jus puniendi, ou seja, o poder que permite ao Estado e somente ele impor sanções aos comportamentos humanos contrários ao direito, só pode ser exercido através de um importante instrumento, que é o processo.

Desse íntimo relacionamento entre processo e Estado, temos como consequência a introdução cada vez maior nos textos constitucionais de princípios e regras de direito processual, propiciando estudos específicos sobre a constitucionalização dessas normas processuais. Ada Pellegrini Grinover, que tem se dedicado recentemente ao estudo dessa questão, ressalta que:

O importante não é apenas realçar que as garantias do acusado – que são, repita-se, garantias do processo e da jurisdição – foram alçadas a nível constitucional, pairando sobre a lei ordinária, à qual informam. O importante é ler as normas processuais à luz dos princípios e das regras constitucionais. È verificar a adequação das leis à letra e ao espírito da Constituição. È vivificar os textos legais à luz da ordem constitucional. È, como já se escreveu, proceder à interpretação da norma em conformidade com a Constituição. [08]

Dessa forma, dada essa ligação cada vez mais acentuada entre processo e Constituição, que não mais proporciona um estudo isolado dos institutos processuais, o processo não há que ser visto somente como um instrumento de justiça, mas também como um mecanismo de se assegurar a liberdade do imputado.

Com a consolidação do direito processual constitucional, as normas deixam de ser vistas somente como princípios programáticos dirigidos ao legislador ordinário para que esse crie regras e institutos da maneira que lhe melhor aprouver. Atualmente, a constituição pode ser vislumbrada também como verdadeira norma jurídica, que dada a sua posição superior no ordenamento (norma normarum), serve de fundamento de validade para as demais, sob pena de inconstitucionalidade material, quando violar núcleo essencial de algum direito previsto na nossa carta constitucional.

Contudo, o que presenciamos na atualidade é a existência de um Estado de Direito "mascarado", enfraquecido face ao exagerado intervencionismo estatal na esfera penal, que, na maioria das vezes, legitima práticas autoritárias e altamente ofensivas aos direitos e garantias fundamentais. Soma-se a isto o fato de que vivemos numa democracia eminentemente formal, onde a desigualdade social impera e o poder estatal se encontra nas mãos das minorias privilegiadas, que exercem o poder de acordo com seus interesses, através de um discurso político legitimador do retorno a um Estado onipresente que possa zelar pela segurança do cidadão. É a partir desse quadro caótico de supressão constante de direitos, que se torna necessária essa releitura da legislação penal e de institutos processuais penais à luz da constituição, dada a sua proeminência normativa e tendo em vista que dela emanam as garantias do cidadão face ao poder do Estado.

2.2 Autoritarismo e Política Criminal

2.2.1 Autoritarismo no século XXI e segurança pública

Nos anos 20 do século passado, a afluência de capital tornou os Estados Unidos potência hegemônica inconteste. Daí revelar-se a importância de se proceder a uma breve análise sobre o sistema punitivo norte-americano, exportador de ideologias e institutos para vários países, tornando-se um modelo de justiça criminal copiado para a solução das patologias e demandas sociais.

Segundo Zaffaroni [09], tivemos no EUA, a partir do final da década de 70, um aumento significativo no índice de aprisionamento, seguido de um consequente superdimensionamento do sistema penal, mantendo milhões de pessoas presas e controladas (em parole ou em probation), proporcionando com isso milhões de empregos à população em geral. A partir dessa realidade, foi revigorada a pena capital, juntamente com o estabelecimento da prisão perpétua para quem tenha cometido três ou mais delitos, criando-se, dessa forma, um mecanismo eficaz de eliminação dos seres indesejáveis e inimigos do Estado.

Este foi um ambiente propício para o surgimento de uma legislação tipicamente inquisitória, com a reinserção, nos diplomas legislativos, de elementos característicos da Idade Média (espiões, delatores, procedimentos secretos, etc.) aplicáveis, a princípio, no combate ao crime organizado, categoria esta eleita como a verdadeira "inimiga da sociedade". Ainda seguindo as lições do referido autor [10], no que se refere ao sistema penal, o país que difundiu as garantias processuais, adota hoje práticas inquisitórias mais "descaradas".

Nesse diapasão cabe mencionar que se costuma disseminar um falacioso discurso de redução nos índices de criminalidade em Nova York, vinculando tal fato ao programa denominado por Rudolph Giuliani de "tolerância zero" operado pela polícia na década de 90, para legitimar e mostrar a "eficiência" de mecanismos altamente arbitrários e de natureza inquisitória. No entanto, como nos ensina Loic Wacquant [11], tal afirmação não procede, haja vista que a taxa de criminalidade (que segundo estatísticas sérias, não era tão alarmante) não foi reduzida graças à tal programa. O sucesso deve-se a uma reestruturação burocrática da polícia, aliada a alguns fatores independentes da atividade policial e da justiça, como o crescimento econômico e a consequente geração de emprego e renda para as classes marginalizadas; a transformação da economia da droga e o "efeito aprendizado", fazendo com que os jovens se afastassem de tal mercado e do estilo de vida perigoso e ainda as campanhas de prevenção e sensibilização, que afastaram os jovens da predatória economia de rua.

Dessa forma, temos o discurso simplório e infundado da necessidade de se proceder a um aumento do rigor punitivo e da repressão penal, através de criação de novos tipos penais, recolhendo à prisão todos os delinquentes marginalizados, para "limpar as ruas" e dar uma falsa sensação de segurança, mascarando a necessidade de uma verdadeira reforma do sistema, dada a sua evidente falência.

Seguindo as lições de Zaffaroni ao tratar dessa nova forma de autoritarismo, preleciona que:

É cool porque não é assumido como convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder espaço publicitário. [12]

Tal autoritarismo, chamado por ele de "cool", se reveste de uma falsa racionalidade para se adequar a um ideal de Estado de Direito, ocultando constantes afrontas e supressões de direitos e garantias fundamentais.

O Estado, nesse novo modelo punitivo, caracterizado pelo implemento de um racionalismo autoritário, promove o retorno de práticas e institutos típicos de sistemas punitivos inquisitoriais, para dar uma resposta efetiva para a sociedade, sob o discurso de que "algo deve ser feito". Cria-se a ideologia de que diante da extrema desordem e caos social, é necessário um Estado "forte", mesmo que, para se atingir o fim pretendido, sejam utilizadas práticas escusas. Permitem-se, assim, medidas penais e processuais penais extraordinárias e incompatíveis com as garantias liberais, no que Loïc Wacquant denomina de "gestão penal da insegurança social". [13]

Na América Latina, uma singular característica do seu poder punitivo em relação ao aprisionamento é que mais da metade dos presos estão submetidos a medidas de contenção em caráter provisório, pois não são nem processados e muito menos condenados. Portanto, torna-se uma peculiaridade dos sistemas penais desses países o uso em larga escala dessas medidas, convertendo-se tudo em privação de liberdade sem sentença, apenas sob o argumento da presunção da periculosidade.

A situação ainda é mais preocupante nos casos de delitos graves, pois a prisão cautelar é seguida por reclusões praticamente perpétuas ou as penas são absurdamente prolongadas, fato que, na maioria das vezes, até supera a própria possibilidade de vida das pessoas. É a maneira utilizada para eliminar os indesejáveis, promovendo uma autêntica limpeza na sociedade dos elementos "sujos", algo similar ao movimento de tolerância zero aplicado nos Estados Unidos. Já os "iguais", cada vez em menor número graças às desigualdades sociais, podem usufruir dos benefícios e garantias existentes na legislação penal, isso tudo nos poucos casos em que são criminalizados, haja vista o evidente caráter seletivo do sistema penal, de acordo com o que a criminologia denomina de "labeling aprouch".

Portanto, o poder punitivo na América Latina tem como característica principal o fato de ser exercido através de medidas de contenção para suspeitos perigosos, tratando-se de um "direito penal de periculosidade presumida", que é a base para a imposição de penas sem a devida sentença condenatória "formal", haja vista que muitas vezes acabam fadados a uma prisão que assume caráter perpétuo.

Essa ideologia norte-americana transporta-se através de um mesmo discurso pelos países. Porém, sua funcionalidade, por motivos óbvios, é tão diferente quanto à realidade do poder repressivo. Enquanto nos Estados Unidos tal discurso produziu uma empresa que ocupa milhões de pessoas, contribuindo para o problema do desemprego, na América Latina o sistema penal não passa nem perto de gerar empregos, servindo tão somente para controlar quem não os têm, além de ser extremamente violento.

Esse discurso criminal comum, baseado nas diretrizes punitivas norte-americanas, fez com que o sistema penal pátrio se preocupasse com questões referentes à lavagem de dinheiro, tráfico internacional de drogas e crime organizado, todas essas modalidades criminosas possíveis de aplicação da delação premiada.

Tal discurso acaba se inserindo num contexto de prisões superlotadas de sujeitos sem condenação, onde o aumento da abrangência da repressão penal acarreta cada vez mais prisioneiros preventivos, seguindo a tendência de não permitir o desencarceramento. Junte-se a isso o fato de que o rol de direitos inerentes à execução penal é uma simples utopia, aplicado a uma minoria de presos, dada a falência institucional e estrutural do sistema.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Junto com esse fato temos a clara pobreza para a instrução dos processos, que faz com que as polícias dependentes do Poder Executivo sejam verdadeiras "autoridades de instrução ou sumário" [14]. A teia de corrupção e a falta de recurso para a polícia contribuem também para a ineficácia da prestação do serviço público. Somem-se a isso tudo o crescente desemprego e a anomia geradores de exclusão, que aumentam consideravelmente a frequência de cometimento de delitos.

Como se isso não bastasse, percebe-se a deteriorização da estrutura da polícia, muito pela falta de recursos destinados a essa categoria, sem contar a proibição de sindicalização, autoritarismo interno, desprestígio público e riscos altíssimos, demonstrando uma clara inoperância face às péssimas condições de trabalho.

Nos países que apresentam um Estado totalmente enfraquecido, este não consegue resolver seus problemas sociais e a classe política prefere fingir que os resolvem ou sabem revolvê-lo, para que assim possam se reeleger nas próximas eleições. Então, ao invés de buscarem o melhor, preocupam-se em apenas passar a sensação de que sabem o que deve ser feito sempre com o objetivo de agaranhar novos eleitores. Essa manifestação do poder punitivo é desprovida de qualquer racionalidade, não admitindo a efetiva penetração de um discurso acadêmico que possa de alguma forma "racionalizar" o exercício do poder político.

Dessa forma, podemos concluir que sempre na história da humanidade tivemos uma repressão aos estranhos e inimigos, sendo essa discriminação no exercício do poder punitivo uma constante derivada de sua natureza seletista. Como já dito anteriormente, na América Latina temos uma aplicação generalizada de medidas de segurança por periculosidade presumida, sendo que as "penas formais" são aplicadas apenas em caráter residual e excepcional. Como resultado desse autoritarismo contemporâneo, temos um direcionamento da estrutura punitiva para as classes mais subalternas, de onde se extrai os criminalizados, os policizados e as vítimas, já que aqueles que exercem o poder são os que individualizam o inimigo, fazendo isso da forma que melhor se adeque aos seus interesses, conforme nos ensina a teoria criminológica do etiquetamento.

2.2.2 O Papel da Mídia

A partir do século XX, tivemos um visível alargamento da esfera de atuação da mídia, em grande parte devido ao barateamento e ao desenvolvimento dos aparelhos eletrônicos, transformando o público em verdadeiros consumidores da enorme variedade de produtos por ela vendidos. Assim, os órgãos da mídia passaram a exercer uma enorme influência sobre nossa vida, desempenhando um papel preponderante nas relações com as demais instituições da sociedade civil.

Numa perspectiva ideal, a mídia seria um instrumento a serviço da sociedade para criar e aprimorar uma consciência cívica e o respeito aos ditames do regime democrático, até mesmo como controle da atividade judiciária. No entanto, os órgãos midiáticos reproduzem o discurso criado pela classe dominante, transformando-se no principal aliado do poder político para manter e legitimar a ordem vigente.

Essa ação produzida pela mídia, desprovida de padrões éticos, algumas vezes reproduz, sem qualquer senso crítico, o discurso político, dificultando a existência de um interesse geral, podendo-se até falar que não existe atualmente uma "opinião pública". Tendo em vista a enorme capacidade de penetração e persuasão da atuação global da mídia, esta se transforma em um órgão que transmite a ideia que deve ser seguida, perdendo totalmente o seu caráter precípuo, qual seja o de informar, transformando-se num instrumento de consolidação do discurso totalitário. Nesse sentido, todo e qualquer tipo de reflexão que deslegitime essa ideologia de controle por parte da mídia deve ser ignorada ou escondida, ou então não são veiculadas em igualdades de condições com esta.

Tendo como uma de suas características a sua capacidade de distorcer informações, não podemos negar que se trata de um dos mais eficazes mecanismos de controle social, legitimando atuações que importam supressão de direitos fundamentais, em prol desse autoritarismo caracterizado por uma intensa repressão. A mídia funciona, então, nas sociedades pós-modernas, como um instrumento a serviço do fantasioso discurso do direito penal máximo. Não podemos negar que num estado democrático de direito torna-se necessária uma mídia forte, independente, que possa efetivamente exercer um controle dos atos de poder, sendo por isso considerada um genuíno serviço público, devendo, portanto, ser exercida dentro dos padrões da ética. Nesse sentido nos ensina Natália Oliveira de Carvalho [15]:

Na história brasileira recente, a imprensa teve seu papel drasticamente reduzido quando da vigência do regime autoritário imposto pela ditadura militar e, sabe-se, com base na experiência pátria, que um governo efetivamente democrático pressupõe uma imprensa forte, independente e vinculada à iniciativa privada. Contudo, não há de se ignorar que o produto da mídia é um serviço público, o que, em tese, pressupõe um exercício ético do jornalismo.

O paradoxo de que a um estado social mínimo corresponda a um estado penal máximo conduz às consequências concomitantes de despolitização dos conflitos sociais e politização da questão criminal. Hoje podemos visualizar uma estreita ligação entre a imprensa e o sistema penal, já que as questões criminais ganharam quase que a totalidade do espaço nos veículos de comunicação social em geral. Produzindo uma abundância de informações que assustam pela velocidade com que são propagadas, reproduzem o discurso autoritário hegemônico, sem qualquer tipo de "filtro" que possa frear essa atuação abusiva. O novo "credo criminológico" da mídia tem seu núcleo irradiador na própria ideia da pena: antes de mais nada, creem na pena como rito sagrado de solução de conflitos.

Filipo Sgubbi [16], catedrático de Bolonha, analisando com mais profundidade o delito como sendo um risco social, constata o fato de que o Estado é incapaz de controlar todos os atos criminosos dos homens. A partir disso, deriva a óbvia conclusão de que as funções de contenção e conservação do sistema normativo, próprias que são do instrumento penal, não se operam através de uma repressão generalizada a todos os comportamentos ilícitos, senão mediante atos delitivos de maior magnitude e ressonância social. É o que ele denomina de "lógica das vedetes" a qual se faz particularmente presente na Itália. Dessa forma, lá, como aqui, prefere-se uma repressão simbólica, onde, pretendendo-se uma atuação penal contra sujeitos mais representativos, induz-se, ao cidadão comum, a ideia da certeza do castigo e da infalibilidade da pena.

Temos ainda a transmissão pela mídia da ideia de uma inoperância da estrutura legislativa, pautada na máxima de que os direitos e garantias fundamentais funcionam como maior entrave ao funcionamento do poder punitivo. Mascaram-se, assim, os verdadeiros problemas estruturais e culturais de nossa sociedade, estes muito mais difíceis de serem solucionados, desviando-se o foco destes através da implementação de medidas emergenciais e de uma doutrina de segurança máxima. Nesse sentido aduz Nilo Batista [17] que "a criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no estado mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual ele dispõe para administrar, da maneira drástica, os próprios problemas que ele criou".

Cria-se o mito de que as garantias processuais - imprescindíveis para um processo que queira ser imparcial e justo - como o devido processo legal, ampla defesa, princípio da presunção de inocência e o direito a razoável duração do processo funcionam como um entrave à "realização da justiça". Já a publicidade é dissociada de seu verdadeiro papel de transparência no exercício da atividade jurisdicional para muitas vezes tornar-se uma mercadoria de consumo massivo, sendo que a atividade do juiz passa a ser "criticada" por pessoas completamente desprovidas de capacidade técnica para tanto. Daí temos a grande pressão sobre os magistrados, para que tenham uma atuação rigorosa, traduzida no desrespeito aos direitos fundamentais. Ademais, revela-se um autêntico desprezo pela advocacia criminal, esta considerada cúmplice do delito, e os raros juízes que velam pelas garantias constitucionais são taxados de fracos e tolerantes.

Dado que toda essa mensagem é facilmente propagada, rentável para os empresários da comunicação social, funcional para o controle dos excluídos e satisfatória para as classes médias degradadas, é de óbvia dedução que os políticos se apoderem desse discurso e até o disputem, haja vista que se algum político assume a direção oposta poderá ser desqualificado e até mesmo marginalizado dentro de seu próprio partido.

Através de todos esses meios antiéticos ou diretamente criminosos, vende-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o crime, sancionando leis que reprimam os raros vulneráveis e marginalizados, aumentando a arbitrariedade policial e legitimando todo gênero de violência, inclusive contra quem conteste o discurso publicitário.

Na esteira dessa publicidade altamente enganosa, temos a figura do especialista, também denominados por Bourdieu [18] de fast thinkers, pessoas geralmente caracterizadas por serem celebridades ou possuírem algum exercício na área criminal, limitando-se a reiterar o discurso hegemônico. Sob o argumento da paz social e utilizando uma retórica de um passado que nunca realmente existiu, podem tranquilamente exercer o discurso da lei e ordem com o sabor de "politicamente correto".

O que ocorre, portanto, é um verdadeiro pré-julgamento pelos órgãos de comunicação social, também chamado de tryal by media, onde temos que, ao promover a mídia ao status de agência executiva do sistema penal, o discurso repressivo consagra verdadeiramente uma privatização parcial do poder punitivo. Estamos diante de uma mídia que ultrapassa a mera função informativa, passando a se falar em executivização dessas agências de comunicação social do sistema penal, podendo se dar razão à advertência de Nilo Batista [19], quando diz que se passa a ter um temor muito maior por uma manchete no jornal do que uma portaria instauradora do inquérito policial.

2.3 Direito Penal Emergencial e Garantismo

Ao nos depararmos com a expressão emergência, temos nitidamente a ideia de crise, de caos momentâneo, tornando-se necessárias providências rápidas para que se retorne o status quo ante. Exemplo disso são as cartas constitucionais dos Estados Modernos, que preveem mecanismos de proteção do estado de normalidade, através do chamado Estado de Exceção, permitindo-se certa restrição momentânea de alguns direitos fundamentais em prol do restabelecimento da ordem vigente, na busca de paz e coesão social [20].

No que se refere à atuação do sistema punitivo estatal, essa ideia tem revelado ainda mais importância e repercussão, estabelecendo-se, no sistema penal e processual penal, uma verdadeira cultura de emergência. Esta vem consagrando, sob argumento do combate à criminalidade, a adoção de medidas de caráter altamente repressivos e autoritários, numa evidente e perigosa afronta às bases que sustentam o nosso Estado Democrático de Direito. A partir dessas medidas, o que se tem verdadeiramente é uma transição do modelo democrático para o absolutista, cujo discurso confere legitimidade para que se estabeleça uma política criminal pautada pelo incremento rigoroso de estratégias repressivas, movimento este que a criminologia chama de neobarbárie, movimento de lei e ordem ou do direito penal máximo [21].

Esse movimento é caracterizado pela alta taxa de encarceramento dos excluídos do atual sistema, nitidamente consumista e segregante, e também, de uma forma antagônica, por diversos instrumentos alternativos à pena privativa de liberdade, estes, de uma maneira lógica, voltados para aqueles que fazem parte dessa sociedade desigual e utilitarista. Dessa forma, é por meio desse discurso que propaga a ideia de caos que temos o fundamento de um direito e processo penal emergencial altamente repressivo. Com isso, passamos a ter uma pena cuja finalidade é pautada na defesa do próprio sistema contra seus excluídos indesejáveis [22].

Da primazia do ideal de segurança pública sobre as liberdades individuais é que surge um sistema punitivo caracterizado por uma constante afronta aos direitos fundamentais, tendo como base uma teoria criminológica surgida nos Estados Unidos a partir do século XX. Nesse país, a partir das mudanças já mencionadas no item 2.2.1, dentre elas o superdimensionamento do sistema penal, ganharam destaque movimentos que propiciaram um retorno á práticas de natureza inquisitória, sob diferentes nomes, como, por exemplo, a "teoria das janelas quebradas" (broken windows theory) e a famosa "tolerância zero".

Esta última se baseou numa forte atuação policial, tendo como alvo principal a chamada "criminalidade suja", tentando "limpar as ruas" dos criminosos pobres, passando para a sociedade a falsa sensação de que o crime estava sendo combatido, sendo que na verdade os criminosos do colarinho branco (estes sim que deveriam ser o alvo principal) permaneciam impunes, isso tudo também devido à alta seletividade do sistema penal, que desvia seu foco dos principais e mais perigosos criminosos para cuidar principalmente dos pobres, mais frágeis perante o inoperante sistema e, portanto, mais visados. Com a política da "tolerância zero", acabaram-se os boletins de ocorrência nas delegacias, sendo qualquer infração, por menos grave que seja, motivo de encarceramento [23].

Temos, dessa forma, um constante estado de emergência que é praticado pelos Estados modernos, que tem como ideologia principal a incessante busca pela segurança, esta erigida ao status de foco central das políticas públicas, proporcionando a adoção de soluções paliativas e altamente rigorosas, como o aumento da ingerência da atividade policial, disseminação de prisões cautelares e, no plano processual, forte atuação no campo probatório, principalmente por meio da valorização do direito premial [24]. Este foi intuído no século XIX por um jurista alemão chamado Rudolf Von Jhering, o qual afirmou que a escalada criminal e incapacidade apuratória do Estado levariam o mesmo a oferecer prêmio ao delator, justificando tal ato com base no interesse social.

No que tange ao direito penal e processual pátrio, podemos aqui seguir o mesmo raciocínio e tendências dos EUA, a "sociedade farol da humanidade" [25], pois como preleciona Zaffaroni [26], "trata-se de uma lei que se repete: quando se transfere um problema social, segue-se a transferência da ideologia de controle".Nesta esteira, o recrudescimento da legislação processual penal, como reflexo dessa cultura da emergência, faz com que ganhe destaque a figura da delação premiada, instituto importado dos EUA e Itália, tornando-se um dos principais instrumentos no combate à criminalidade organizada, esta alvo de legislação específica, dada a enorme preocupação com seu crescimento.

Instituto adotado também por países como Alemanha e Espanha, além de países da América Latina, a delação premiada foi "emblemática na recente história italiana", através da operação "mãos limpas", empreendida no começo da década de 90 e que representou um verdadeiro retorno ao sistema penal fascista de Mussolini. Esta contou, em grande parte, com incentivo à colaboração com a "justiça", e esta "voluntária" colaboração só foi possível através de medidas como o isolamento de suspeitos na prisão e divulgação de supostas outras confissões, se revelando um verdadeiro mecanismo de extorsão da prova.

No Brasil, não há como negar o fenômeno do crime organizado e a preocupante maneira como se encontra entrelaçado com a pobreza e desigualdade social, tendo como exemplo o PCC e o Comando Vermelho, tudo isso aliado à corrupção que assombra as nossas instituições, fator que aperfeiçoa a estruturação dessas entidades. Assim, segue-se a tendência mundial de o Estado se valer do emprego simbólico do sistema repressivo como meio de controle social, o que se observa através da edição desenfreada de leis penais especiais, como resposta às pressões momentâneas. Sem contar que essa cultura de emergência faz com que os valores do nosso regime democrático sejam vistos como empecilhos para a realização da justiça, e a ideia de que um Estado só pode possuir um processo penal justo e igual através de respeito às garantias fundamentais é suplantada por uma forte ideologia de controle pautada no mito da insegurança.

Vivemos, portanto, numa época marcada pela complexidade, riscos e insegurança, cujo reflexo no sistema punitivo é a adoção de medidas emergenciais que, em síntese, mitigam direitos e garantias individuais, transformando o processo penal num instrumento de barganha, para não falar num processo que visa atingir resultados que ultrapassam a resolução do caso penal, pautado, pois, sob a ótica da eficiência. E é dentro desse contexto altamente preocupante para a manutenção dos alicerces do Estado de Direito que devemos nos valer do garantismo, para estabelecer um "freio", uma contraposição a esse direito emergencial acima analisado.

Nessa esteira, o processo penal, como um efetivo instrumento para a realização do Direito penal, deve não somente tornar viável a aplicação da pena, mas também servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Assim, o processo deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos.

W. Goldschmidt [27] ensina que os direitos fundamentais dirigem-se contra o Estado, e pertencem, por conseguinte à seção que se refere ao amparo do cidadão contra o poder punitivo deste ente. Uma prova disso é grande quantidade de regras que integram as constituições modernas, regulando o processo penal, com o objetivo de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais do acusado enquanto estiver sendo alvo da persecução penal. Isso sem contar que o processo penal constitui um ramo do Direito Público, e que a essência deste é a autolimitação do Estado.

A democracia é um sistema político cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado e que se manifesta em todas as esferas da relação entre estes. Inegavelmente, leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do acusado, valendo aqui sempre a ideia (princípio) de proteção ao inocente, até que exista uma sentença penal condenatória transitada em julgado. O processo penal é uma das expressões mais típicas do grau de cultura alcançado por um povo, e os princípios de política processual de um país não são outra coisa senão segmentos da política estatal em geral. Num Estado que se proclame democrático de direito, não se pode admitir um processo penal autoritário e típico de um Estado-policial, pois o processo penal deve adequar-se à Constituição e não vice-versa.

Deve-se buscar a consolidação de uma cultura que assegure os valores democráticos e, também, de direitos fundamentais, lutando contra os ranços e as resistências de um país que a democracia é recente, e essa transição de um Estado autoritário para outro democrático é lenta e gradativa.

Dessa forma, dentro da ideia de filtragem constitucional do processo penal, já tratado neste trabalho, deve-se romper essa noção de direito puramente regulador para que se possa ingressar no modelo de direito promovedor e transformador, fazendo com que o processo seja um verdadeiro instrumento a serviço da ordem constitucional.

Neste sentido é que ganha imenso destaque a teoria do garantismo, que se propõe a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloque a "defesa social" acima dos direitos e garantias fundamentais. Os direitos fundamentais adquirem, portanto, status de intangibilidade, constituindo os chamados "vínculos substanciais de caráter negativo" [28], além de funcionarem como objeto e limites do direito penal nas sociedades democráticas. È um esquema tipológico baseado no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e garantindo o indivíduo contra qualquer tipo de violência arbitrária e privada.

Portanto, o direito processual moderno, e mais especificamente a delação premiada, se encontra dentro dessa tensão permanente, que coloca de um lado a necessidade de se reduzir a violência e desigualdades sociais e do outro a exigência de respeito às garantias fundamentais do cidadão, sob pena de se cometerem abusos e arbitrariedades. Obviamente nos inclinamos pelo segundo aspecto, pois não obstante os problemas estruturais e sociais que apresentamos, isso não pode e nem deve ser um argumento utilizado pelo Estado para legitimar cada vez mais essas práticas arbitrárias, deixando em segundo plano e flexibilizando os direitos dos cidadãos. Num país claramente desorganizado e desestruturado como o nosso, e ainda assombrado por um histórico de ditadura até certo ponto recente, se a cada problema permitirmos esses tipos de soluções, pode-se então "jogar fora" nossa Constituição - nos valendo da ideia de Ferdinand Lassalle que esta seria apenas uma mera "folha de papel" [29] - e assumirmos de vez a ditadura do Estado. A Constituição, e principalmente os direitos fundamentais, têm sua força normativa e devem ser respeitados independentemente de qualquer argumento, pois são a base de um Estado que se proclame Democrático de Direito [30].

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Bruno de Souza Martins Baptista

Advogado/ Graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora e pós-graduado em ciências penais pela UNIDERP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAPTISTA, Bruno Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2507, 13 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14848. Acesso em: 23 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos