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A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil

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3 A DELAÇÃO PREMIADA

A delação premiada foi introduzida no cenário jurídico-penal pátrio como uma inovação importada do direito penal italiano, dentro do contexto de pânico frente à criminalidade, e do discurso de que "algo deve ser feito", movimento este ensejador da elaboração da Lei 8.072/90. O instituto em questão foi inicialmente aplicado aos tipos penais da extorsão mediante sequestro e quadrilha ou bando.

No artigo 159, § 4º, do Código Penal (extorsão mediante sequestro), havendo concurso de infratores, o concorrente que venha a delatar os demais à autoridade, possibilitando com isso a libertação do sequestrado, terá a pena reduzida de 1/3 a 2/3. O nexo entre as informações e a libertação é obrigatório, já que a delação ineficaz pode militar apenas como atenuante genérica (art. 66, CP).

Na Lei nº 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional), o § 2º institui algo um pouco diferente, pois para a redução de 1/3 a 2/3, só se exige a confissão, revelando a trama delitiva. Não se exigiu expressamente a identificação do produto do crime. Esses fatores, contudo, podem ser sopesados na determinação do quanto de redução da pena.

A Lei nº 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo) conta com a mesma previsão aplicada aos crimes contra o sistema financeiro nacional, através do parágrafo único do artigo 16.

Em três de maio de 1995, foi sancionada a Lei nº 9.034/95, dispondo "sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas". Esta, em seu art. 6º, ao instituir meios de prova e procedimentos investigatórios próprios para os crimes resultantes da ação de quadrilha ou bando, incluiu nesse rol a figura da colaboração espontânea.

Outra previsão legal se dá na Lei nº 9.613/98 (lavagem de capitais): o § 5 do artigo 1º contempla três possibilidades ao magistrado: a) reduzir a pena de 1/3 a 2/3, sendo que a agente iniciaria o cumprimento no regime aberto; b) substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; c) aplicação do perdão judicial. Para tanto, o agente deve colaborar espontaneamente com a autoridade, prestando esclarecimentos que conduzam á apuração da infração com a respectiva autoria, ou a localização dos bens, direitos e valores objetos da lavagem. A Lei nº 11.343/06 (Lei de tóxicos), no artigo 41, prevê a delação como causa especial de diminuição de pena. Aqui também se exige a ocorrência de um resultado.

Por fim, a Lei nº 9.807/99 (proteção a vítimas e testemunhas) admite a delação premiada sem preestabelecer a infração praticada, convivendo harmonicamente com as demais normas que tratam da matéria, fracionando nos artigos 13 e 14 a admissibilidade do instituto em duas modalidades: a do artigo 13 admite perdão judicial em face da delação, o que leva a extinção da punibilidade, podendo o juiz concedê-la de ofício, ou por requerimento das partes, desde que o delator, sendo primário, colabore de maneira efetiva e voluntária com a investigação e processo criminal, resultando na identificação dos demais co-autores e partícipes, localização da vítima e na recuperação total ou parcial do produto do crime. Já o artigo 14 prevê a redução da pena de 1/3 a 2/3 para o acusado ou indiciado que colaborar voluntariamente com a persecução penal. As benesses do dispositivo são menos atrativas que a anterior, que prevê a extinção da punibilidade. Assim, não atendendo o delator aos requisitos anteriores, como primariedade, personalidade favorável etc., poderá enquadrar-se no dispositivo em exame, tendo a pena reduzida.

Com relação ao âmbito subjetivo de abrangência da delação premiada, a lei optou pela expressão "agente", abarcando qualquer elemento que tenha tomado parte da organização criminosa e que agora se revele disposto a contribuir para a devida aplicação da lei penal. Aqui se exige "espontaneidade", traduzida em ato de iniciativa do próprio agente, não bastando, pois, a simples voluntariedade da colaboração prestada.

Do exposto, seguindo o ensinamento de Natália de Oliveira de Carvalho [31]:

A medida, assistematicamente tratada pelos diversos diplomas legais examinados, vem tendo sua legitimidade questionada, mormente sob o ponto de vista ético e de sua inconstitucionalidade, já que o Estado fomenta a colaboração do criminoso para realizar "justiça", ainda que ao preço de sua impunidade, ofendendo princípios constitucionais.

O que induziu o legislador a instituir o prêmio ao delator da organização criminosa foi a patente dificuldade do poder público na repressão do crime organizado, acreditando incrementar com a medida a eficácia do sistema penal.

3.2 Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada

3.2.1 A delação como meio antiético de extorsão da prova

A tão famosa frase atribuída a Maquiavel, "os fins justificam os meios", foi uma ideologia a serviço da arbitrariedade e supressão de direitos por parte do governante ("O Príncipe"). Pode-se dizer que tais palavras alcançaram o significado de completa falta de ética no exercício do poder. Aproximando-nos do século XXI, chegamos ao Estado Democrático de Direito, ao tempo de respeito aos Direitos Humanos e de um direito penal mínimo e garantista, que, dentre as suas bases, a atuação do governante deve estar "amarrada" à lei e aos ditames da ética e da moral.

Nas palavras de Vicente Ráo [32], para que se alcance o fim que se propõe, é imperativo que a lei seja "honesta" não podendo conter nenhum elemento de torpeza ou contrário à ética. Dessa forma, o Estado, visando privilegiar um direito penal mínimo e garantista, preservando as garantias individuais postas na Constituição Federal, não pode incentivar, premiar condutas que ofendam a ética, ainda que ao final a sociedade se beneficie dessa violação. Em outras palavras, num Estado que proclame pelos ideais da democracia, os fins jamais poderão justificar os meios, mas justamente são estes que emprestam legitimidade àqueles.

É nesse sentido que ordenamento jurídico proíbe, por exemplo, o uso de tortura como método de investigação criminal. Ainda que sob o pretexto de se alcançar uma finalidade lícita, o Estado não se pode valer de meios antiéticos e muito menos pode incentivar que os cidadãos se utilizem de expedientes contrários aos certames da moral [33].

É exatamente por esse motivo que não admissível que a delação premiada seja aceita no direito pátrio, como forma de atenuar ou excluir a pena de quem pratica ou é partícipe de crime. Ora, a quebra da confiança gera sempre desordem e desagregação, sendo a delação sempre ato antiético, já que a própria sociedade pressupõe uma aversão à traição das relações sociais e pessoais.

E não é justificável o argumento de que entre os presos ou criminosos não existiria uma ética; a delação de um criminoso em detrimento de outro não apaga a aeticidade intrínseca à traição, não se podendo invocar aqui a regra matemática de que "menos com menos dá mais".

Se a traição é tida com circunstância agravante ou qualificadora de crime (artigo 61, inciso II, letra "c" e artigo 121, § 2º, inciso IV, ambos do Código Penal) [34], como ela pode levar à isenção ou a diminuição de pena? Claramente soa como algo esquizofrênico.

Nesse sentido, numa situação de dois suspeitos de um crime serem presos e interrogados separadamente, sem qualquer comunicação, tendo o livre arbítrio de assumir a culpa ou protestar a inocência, dentre as soluções possíveis para esse "jogo", a melhor delas com certeza é trair o autor que não trai. Mesmo se o delatado igualmente o delatar, ambos os delatores terão a pena diminuída, daí concluindo que em qualquer cenário, a melhor escolha é trair o comparsa. A conclusão a que se chega é que, racionalmente, jogando com as probabilidades, a escolha mais racional é a própria traição.

Atualmente, com essa anomia que predomina na fase de investigação preliminar, onde há uma variedade de agentes e órgãos que invocam legitimidade para fazê-la, a persecução penal se inicia com base em um tripé previsível: primeiramente com o uso da interceptação telefônica, por prazo indefinido, buscando elementos que justifiquem uma prisão cautelar, esta que, por sua vez, será utilizada como mecanismo de coação sobre o indiciado ou acusado, este instigado pelos investigadores e acusadores a confessar e delatar, tendo a própria liberdade objeto de barganha. Ao proceder no sentido de condicionar a liberdade do preso à delação, o Estado pratica claramente uma modalidade de extorsão da prova (verdade) mediante sequestro do investigado, sob o olhar complacente do Poder Judiciário. O preço da liberdade pode ser ainda, além da confissão, também a apresentação de outras provas materiais, negociáveis em meio a garantias acanhadas e um Estado com poderes ilimitados e sem freios morais [35].

A situação ainda se agrava quando lembramos que o delator tem uma mera expectativa de direito ao benefício, uma vez que somente o juiz, alheio à negociação anterior, ao prolatar a sentença, poderá reconhecer tal redução ou isenção de pena. Outra garantia que falta ao réu é a de que o Estado proporcionará a ele, dentro ou fora dos estabelecimentos prisionais, as medidas protetivas, previstas em lei, que resguardarão a sua integridade física e a de seus familiares.

Portanto, o que ocorre é a disseminação dessa cultura, típica de regimes ditatoriais, de um Estado que prefere suprir seu dever de investigação e acusação pela busca irracional da confissão do próprio autor do crime, promovendo uma verdadeira extorsão da verdade, algo que ofende claramente princípios constitucionais, sendo que as informações prestadas pelo acusado na grande maioria das vezes poderiam ter sido obtidas pelos meios de repressão oficiais típicos das autoridades policiais.

Temos na atualidade uma quebra da tendência surgida após o término do regime da ditadura militar, que procurava difundir um método de investigação baseado sobre elementos de prova objetivos e subjetivos, que não a confissão do acusado. A investigação criminal deixa de seguir sua lógica, de partir do fato rumo ao sujeito do delito, para se concentrar inicialmente na obtenção da confissão deste, utilizando-se na maioria das vezes de prática escusas.

Portanto, pode-se concluir que o processo de investigação que presenciamos atualmente, calcado nesse movimento da "lei e ordem", que promove o retorno de práticas inquisitivas, configura uma verdadeira modalidade de extorsão da verdade do acusado, por se utilizar de mecanismos irracionais, como a delação premiada, e também por condicionar a liberdade do acusado à obtenção de alguma informação. Tudo isso configura claramente uma modalidade de prova ilícita, que deve ser rechaçada pelo ordenamento jurídico pátrio. Assim, a delação premiada, além de configurar um estímulo a práticas que contrariam a ética, algo que a Constituição e a sociedade não toleram, constitui uma modalidade de prova ilícita, por estes e por outros fundamentos que ainda serão analisados.

3.2.2 Delação premiada como modalidade de prova ilícita

Como já analisado anteriormente, a Constituição Federal veda expressamente a obtenção de provas por meio de ofensas a princípios constitucionais de direito material e processual. A delação premiada, como meio de prova que é, claramente promove ofensa a uma gama de princípios basilares norteadores do Estado Democrático de Direito.

Num primeiro momento, vislumbra-se tal instituto como típica expressão do princípio inquisitivo, que vem sendo adotado - em clara contraposição ao expresso pela carta constitucional - haja vista que o juiz faz a gestão da prova, pois ao receber o termo em que consta a delação, se entender, altera-o, dispondo sobre o seu conteúdo, como se o MP e o réu não tivessem importância. Isso é só um exemplo da variedade de atos que podem ser impulsionados pelo magistrado. Por aí, demonstra-se o lugar ocupado pelo magistrado dentro do sistema (ele comanda a gestão da prova, determinante ao acertamento do caso penal), o que evidencia uma estrutura eminentemente inquisitória. Não há nada na delação premiada que possa, sequer timidamente, associá-la ao modelo acusatório de processo penal.

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Pode-se ainda vislumbrar uma ofensa ao princípio do devido processo legal e do contraditório, este que foi definido por Mendes de Almeida como "ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los" [36]. Nesse sentido, no processo penal, o contraditório deve ser conjugado com a atividade que o qualifica e haverá de compreender a instrução como procedimento de alegar e provar. Do ponto de vista do garantismo, para cuja teoria o contraditório é indispensável recurso de elucidação da causa, a decisão judicial imotivada não contém um nexo entre a legitimidade no exercício do poder punitivo e a verdade processual. O juiz, dessa forma, não pode considerar a delação como meio de prova no processo, por ser inconstitucional, haja vista a inexistência dessa contrariedade, debate entre as partes, não há um confronto sobre o material probatório [37].

Vale ressaltar, ainda, que o resultado da delação premiada não é questionado, pois a palavra do delator é tomada como verdade absoluta, inquestionável. É a "cegueira" do Estado, substituindo a investigação objetiva dos fatos pela ação direta sobre o suspeito, visando torná-lo fonte de prova, para que possa postergar uma sucumbência institucional, mas que na verdade já denota falência do sistema.

Outro ponto que a delação atinge é o direito que é concedido ao acusado de não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), expresso nos artigos 5º, inciso LXIII da Constituição Federal e no artigo 8º, § 2º, alínea g da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica). As consequências dessa permissão são: a possibilidade que o réu tem de silenciar-se, este que não pode ser interpretado contra ele; de mentir no intuito de se defender, sendo que a mentira agressiva (incriminatória) pode constituir crime de denunciação caluniosa; e o direito de não praticar nenhum ato (prova) incriminador. Ressalte-se que os próprios métodos de extorsão da prova, conjugados com as circunstâncias em que se encontra o acusado fazem com que este tenda a delatar.

Por fim, a delação premiada, não obstante a clarividência de sua inconstitucionalidade, por essas inúmeras ofensas, constitui grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao constranger o acusado a se submeter a aviltantes métodos arbitrários para que possa "dizer algo", muitas vezes ofendendo sua integridade física e mental, em evidente contrariedade com o espírito da Constituição [38].

Dessa forma, a delação premiada não pode, sob hipótese alguma, ser admitida como legítimo meio de prova a ser utilizado na persecutio criminis, por claramente ofender a inúmeros princípios constitucionais, como o contraditório, a dignidade da pessoa humana e ao direito de não auto-incriminação. Constitui, portanto, uma modalidade de prova ilícita, algo repudiável pela ordem constitucional.

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Sobre o autor
Bruno de Souza Martins Baptista

Advogado/ Graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora e pós-graduado em ciências penais pela UNIDERP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAPTISTA, Bruno Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2507, 13 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14848. Acesso em: 19 abr. 2024.

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