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A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil

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CONCLUSÃO

A questão da delação premiada é típica dos momentos de crise, e tem como causa uma falência do Estado e de suas instituições. Na perspectiva de um modelo econômico neoliberalista que minimiza o papel do Estado, este não proporciona condições operacionais mínimas aos seus órgãos, conduzindo a uma completa falta de estrutura. Tal fato acarreta implicações importantes na atividade de persecução penal, fazendo com que se abandonem os métodos que conduzam a padrões normais de investigação, ou seja, aqueles que se pautam nos princípios instituídos em nossa Carta Constitucional e que representam uma conquista de todos face a recente história de ditadura e subsequentes arbitrariedades do poder estatal.

Muito mais do que expediente capaz de colaborar com a solução de crimes, a delação premiada é o reconhecimento da debilidade e fragilidade estatal, bem como de sua incapacidade de prover segurança aos seus cidadãos. Novamente enfrentamos uma contradição, pois um instituto de tal estirpe, criado para garantir maior segurança, acaba por favorecer a anomia – haja vista o enfraquecimento da sanção – e a promover uma enorme incerteza e insegurança jurídica, na medida em que pode conceder liberdade a um criminoso confesso.

O instituto em tela vem dentro de um movimento de recrudescimento da legislação penal, importado dos EUA e da Itália, legitimando práticas inquisitivas sob o discurso de que "algo deve ser feito", na busca de uma suposta "paz social". Nessa esteira, conta com a mídia como poderosa aliada na disseminação dessa ideologia da necessidade de um intenso controle social, mesmo que para alcançar esse resultado se promovam as mais diversas formas de violação aos direitos constitucionalmente assegurados aos cidadãos.

Um processo penal garantista, ou seja, que busque resguardar tais direitos fundamentais, não pode admitir que se alcance a justiça a qualquer preço, violando as garantias básicas do cidadão. Deve-se assegurar a proeminência normativa da carta constitucional, proibindo qualquer tipo de medida que se mostre antagônica ao espírito da Constituição.

A delação premiada configura um instrumento que se contrapõe aos preceitos da ética, na medida em estimula a traição, prática repudiada pela sociedade e pelo ordenamento jurídico, visto numa perspectiva sistemática. Além disso, constitui uma modalidade de prova ilícita, por se transformar num verdadeiro mecanismo de extorsão da prova (verdade) do acusado, legitimado por esse modelo atual de incessante busca por uma suposta "verdade real", mesmo que para esse fim sejam utilizados instrumentos autoritários e lesivos a direitos fundamentais.

Como se não bastassem essas violações, a delação configura grave ofensa a princípios constitucionais, como o da ampla defesa e do contraditório, por promover ao magistrado a faculdade de apreciar uma prova produzida sem a possibilidade de confronto e ciência da outra parte; da dignidade da pessoa humana, ao submeter, na maioria das vezes, o réu a violações nos aspectos físicos e mentais de sua personalidade na busca por "alguma informação"; e do princípio da não auto-incriminação, vez que as técnicas utilizadas pelo Estado conduzem a uma verdadeira inquisição e consequente extorsão da verdade.

Diante disso, faz-se um questionamento se seria a delação premiada adequada aos valores fundamentais consagrados em nossa Constituição, principalmente quando põe em xeque a dignidade da pessoa humana. Seria justificável defender deslizes éticos como premissas toleráveis em prol de avanços no combate à criminalidade? Ao oferecer ao delator criminoso a possibilidade de ter sua pena extinta, mediante "traição" de seus comparsas, não estaríamos institucionalizando a perfídia e gerando uma sensação de insegurança? Estaria a delação premiada promovendo a consolidação de algumas das funções do Direito, tais como educar, promover a organização e o controle social, incentivar os comportamentos positivos e reprimir os nocivos objetivando a manutenção da ordem social?

São questões que devem ser refletidas, entendendo-se que a máxima de que "os fins justificam os meios", em todos os tempos revelou-se altamente manipulável e, portanto, perigosa. Apesar de útil, a delação premiada tem sacrificado os mais nobres valores em nome de um pretenso fim mais alto, qual seja, a segurança. É um instituto que se demonstra dotado de flagrante inconstitucionalidade, por ofender o arcabouço axiológico que sustenta o Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 200.
  2. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 13.
  3. OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 278.
  4. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 364.
  5. RANGEL, Paulo. Direito Processual penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 414.
  6. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
  7. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 137.
  8. GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo, novas tendências do Direito processual de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Forense Universitária, 1990, p. 14-15.
  9. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2007, p. 60.
  10. Id. Ibid., p.64.
  11. WACQUANT, loïc. Sobre a "janela quebrada" e alguns outros contos sobre segurança vindos da América. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 46 São Paulo: Revista dos Tribunais: IBCCRIM, 2004. p. 245.
  12. ZAFFARONI, op. cit., p. 69.
  13. WACQUANT, op.cit., p. 237.
  14. ZAFFARONI, op. cit., p.73.
  15. CARVALHO, Natália Oliveira de. Delação à brasileira: produto da concentração de discursos punitivos. Dissertação de Mestrado: Universidade Cândido Mendes. Rio de Janeiro, 2007, p. 68.
  16. Cf. SGUBBI, Filippo. "El Delito como Riesco Social. Investigación Sobre lãs Opciones em la Asignación de la llegalidad Penal". Tradução e estudo preliminar de Julio E.S Virgonilli, Buenos Aires, Depalma, 1998. pp. 133 e segs.
  17. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Revista Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade, ano 7, n. 12. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. pp. 271-290.
  18. Apud BATISTA. op. cit, p. 276.
  19. BATISTA. op. Cit., pp. 286-287.
  20. CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
  21. Id. Ibid.
  22. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2007.
  23. CHOUKR, op. cit.
  24. CHOUKR, op. cit.
  25. WACQUANT, op.cit., p.232.
  26. ZAFFARONI, Eugenio Raul. "Crime Organizado": uma categorização frustrada. In: Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, n. 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Instituto Carioca de Criminologia, 1996., p.56.
  27. GOLDSCHMIDT, Werner. La Ciencia de la Justicia – Dikelogía. 2. ed. Buenos Aires, Depalma, 1986.
  28. SALO, Carvalho. Aplicação da Pena no Estado Democrático de Direito e Garantismo: Considerações a partir do Princípio da Secularização. Rio de Janeiro. Lumem Iuris. 2001., p. 19.
  29. LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1985.
  30. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1991.
  31. CARVALHO, op. cit. p. 96.
  32. RAÓ, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.282.
  33. Id. Ibid.
  34. Art. 121, § 2º, IV. "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido"; (grifo nosso)
  35. Art 61, II, "c". "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido"; (grifo nosso)

  36. CARVALHO, op. cit.
  37. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo Penal: A Contrariedade na Instrução criminal; O Direito de Defesa no inquérito Policial; Inovações do Anteprojeto de Código de Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1973, p. 82.
  38. ALMEIDA, op. cit.
  39. ALMEIDA, op. cit.
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Sobre o autor
Bruno de Souza Martins Baptista

Advogado/ Graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora e pós-graduado em ciências penais pela UNIDERP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAPTISTA, Bruno Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2507, 13 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14848. Acesso em: 24 abr. 2024.

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