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Os consórcios públicos na Lei nº 11.107/2005.

Aspectos jurídicos relevantes

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16/06/2010 às 00:00
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A Lei 11.107/05 é consentânea com os novos princípios que norteiam a Administração Pública, pautada principalmente pela eficiência e pela moralidade, e com o modelo estatal que prega e estimula parcerias entre o privado e o público.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO. 2 O FEDERALISMO COOPERATIVO COMO ARCABOUÇO FÁTICO DO SURGIMENTO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS. 3 OS CONSÓRCIOS PÚBLICOS COMO MECANISMOS MAIS ADAPTADOS DO QUE OS CONVÊNIOS. 4 DELINEAMENTOS DO REGIME JURÍDICO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS. 5 OS CONSÓRCIOS PÚBLICOS COMO ENTIDADES INTEGRANTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA. 6 CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

A Lei 11.107/05, que traz os delineamentos do instituto do consórcio público, nasce com a finalidade de ser o marco regulatório do art. 241 da Constituição de 1988. Referido artigo constitucional ficou durante esses 20 anos sem regulamentação, em um limbo jurídico, o que trouxe consequências danosas para consecução de finalidades públicas que demandam atuação cooperativa entre as entidades federação.

A doutrina administrativa mais tradicionalista, que tem como precursor Hely Lopes Meirelles, sempre entendeu que a diferença entre consórcios e convênios residia em seus participantes. O Convênio seria um pacto em que os partícipes poderiam ser pessoas de natureza diversa. Já o Consórcio teria que, necessariamente, envolver pessoas jurídicas de uma mesma natureza.

Hely Lopes Meirelles leciona que:

O que caracteriza o consórcio e o distingue do convênio é que este é celebrado entre pessoas jurídicas de espécies diferentes e aquele só o é entre entidades da mesma espécie. (MEIRELLES, 2004, p. 389)

Percebe-se, claramente, a superação da teoria exposta acima, quando do advento da Emenda Constitucional 19/1998, que alterou a redação do art. 241 da Constituição de 1988. A nova redação estabeleceu a possibilidade de se realizar tanto convênios de cooperação quanto consórcios entre os entes federados.

Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998).

Dessa forma, resta claro que a velha distinção doutrinária, entre convênios e consórcios, não mais subsiste.

O nascimento da Lei 11.107/05 é consentâneo com os novos Princípios que norteiam a Administração Pública, pautada principalmente pela Eficiência e pela Moralidade. A coerência também existe com o modelo estatal vanguardista, que prega e estimula parcerias entre o privado e o público. Tal ideia rompe, bem como entra em total contraposição com o modelo de Estado Social, ou, "Welfare State", monopolizador dos serviços públicos a serem prestados à sociedade.

Referida tendência moderna surge no momento em que o Estado, por razões históricas, com raízes nas gerações de direitos, se vê sobrecarregado de funções e deveres. Assim, este modelo estatal traduz uma máquina estática e extremamente lenta, que mais burocratiza o serviço público do que o presta de maneira eficiente. Tais fatos levaram a um endividamento interno e à ideia, difundida na sociedade, de um estado inadimplente.

A crise do estado do bem-estar social levou os doutrinadores e cientistas do direito a buscar na sociedade civil alternativas para responder as necessidades da população por bens e serviços, que, em um passado recente, eram totalmente de responsabilidade estatal. De acordo com Luciano Medeiros de Andrade Bicalho:

A reforma do Estado de Bem Estar Social idealizado em meados do século passado não é apenas uma idéia do que se denominou chamar de neoliberalismo. É uma necessidade premente. O Estado burocrático, rígido, estático e dispendioso não atende mais às necessidades de uma era de globalização da produção e do consumo, de estreitamento de relacionamentos através da revolução nos meios de comunicação que se encontra em curso. De uma era de grande densidade populacional nas urbes, o que enseja o surgimento de demandas cada vez mais onerosas de infra-estrutura básica de saúde, educação, saneamento, dentre outras. (BICALHO, 2006, p. 6)

Os consórcios públicos surgem, conjuntamente com outros institutos, como as parcerias público-privadas, os contratos de gestão com Organizações Sociais e Organizações da Sociedade de Interesse Civil, entre outros, exatamente na tentativa de responder mais adequadamente às demandas deste novo milênio. Maria Sylvia Zanella Di Pietro aduz que:

Urge substituir a chamada administração pública burocrática, que se alega ser rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, pela denominada administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento ao cidadão (DI PIETRO, 1999, p. 581).

No mesmo sentido, argumenta Cristiana Fortini:

Há a tendência de flexibilização dos rígidos modos de atuação do Estado. Advoga-se a substituição da Administração Pública verticalizada, hierarquizada pela Administração Pública pautada pela marca da consensualidade (FORTINI, 2007, p. 1).


2 O FEDERALISMO COOPERATIVO COMO ARCABOUÇO FÁTICO DO SURGIMENTO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS

Insta salientar que o nascimento do instituto do Consórcio Público também ratifica o Princípio Geral Federativo insculpido no inciso III, do art. 19 da Constituição de 1988. O termo federalismo vem do latim "foederis" que traduz pacto ou aliança. O federalismo prega que deve haver uma convergência de forças das entidades federativas que compõem a nação, no intuito de melhor administrar a "res pública". Em um Estado Federal, os Estados Membros almejam não somente a manutenção de sua autonomia, uma vez que a cooperação mútua na consecução de objetivos comuns é altamente visada.

Na lição de Marçal Justen Filho, analisando Vedel:

Qual é, então, do ponto de vista político, o espírito de Federalismo? É precisamente o espírito de associação. Ao se agrupar no seio de um Estado Federal, os Estados associados aceitam uma autoridade comum para o seu bem, para todos e para cada um, mas conservando um domínio próprio, que se manifesta pela sobrevivência de uma Constituição, de uma legislação, de uma administração e de uma justiça própria (JUSTEN FILHO, 2008, p. 8).

Konrad Hesse aduz que:

O Federalismo expressa, como princípio fundamental político, a livre unificação de totalidades políticas diferenciadas, fundamentalmente, com os mesmos direitos e regras regionais que, deste modo, devem, ser unidas para colaboração comum (HESSE, 1988, p. 180).

Na história do Federalismo brasileiro, um dos primeiros textos a expressar a ideia de cooperação foi a Constituição do Estado de São Paulo de 14 de julho de 1891. De acordo com o art. 60 da referida Constituição:

As municipalidades poderão associar-se para realização de quaisquer melhoramentos, que julguem de comum interesse, dependendo, porém, de aprovação do Congresso as resoluções que nesse caso tomarem.

O instituto do consórcio ganha ainda mais relevância quando se analisa o advento do que a doutrina batizou de federalismo cooperativo. O federalismo cooperativo nada mais é do que a organização ou sistematização de objetivos ou competências comuns, que devem ser buscadas em conjunto pelos entes da federação, em um instrumento normativo, no caso a Constituição da República Federativa. É a criação de mecanismos que viabilizam a atuação cooperativa.

No Brasil, a pioneira em abordar o federalismo cooperativo foi a Constituição de 1934, que institui, ao lado das competências privativas da União e remanescentes dos Estados, um rol de competências comuns. Em consonância com o art. 10 da referida Constituição:

Art. 10. Compete concorrentemente à União e aos Estados:

I-velar na guarda da Constituição e das leis;

II-cuidar da saúde e assistência públicas;

III-proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, IV_dendo impedir a evasão de obras de art;

V_promover a colonização;

VI-fiscalizar a aplicação das lei sociais;

VII-difundir a instrução pública em todos os seus graus;

VIII-criar outros impostos, além dos que lhe são atribuídos privativamente.

A Constituição de 1988, expressa e literalmente, adotou a ideia do federalismo cooperativo. Aduz o seu art. 3º:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A validade de todo e qualquer mecanismo de cooperação federativa está adstrita ao cumprimento dos objetivos esposados no aludido art. 3º. O rol de competências materiais comuns aos entes da federação está expresso no art. 23 da Constituição de 1988. Entretanto, o federalismo cooperativo permeia todo o texto da Constituição. Cite-se como exemplo: art. 23, parágrafo único (cooperação visando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional), art. 25, parágrafo terceiro (instituição de regiões metropolitanas), art. 198 (Sistema Único de Saúde), além do próprio art. 241 que norteia as presentes exposições.


3 OS CONSÓRCIOS PÚBLICOS COMO MECANISMOS MAIS ADAPTADOS DO QUE OS CONVÊNIOS

Deve-se ressaltar que a maneira mais comum e mais utilizada para a consecução de interesses comuns da União, Distrito Federal, Estados e Municípios entre si tem sido a pactuação de convênios. Várias vantagens e fruições públicas foram adimplidas através de convênios firmados, entretanto, o instituto traz fragilidades e lacunas que devem ser apontadas, vez que estas foram responsáveis para o impulsionamento na regulamentação dos consórcios públicos.

O Convênio traduz a necessidade do agrupamento dos entes federativos na consecução de interesses comuns. Entre as características do convênio, o aspecto mais importante que deve ser destacado é a mútua colaboração. Dita colaboração pode ser traduzida em várias atitudes, desde o repasse de verbas, que é o mais comum, até a reunião de esforços para traçar um Plano de Trabalho. Em consequência disso, no convênio não se cogita de preço ou remuneração (o que é inerente nos contratos). Outra consequência importante da cooperação mútua é a desnecessidade de licitação, pois não há que se falar em competição. Decorre também desse fato a ausência de cláusulas de permanência obrigatória e de sanções pela inadimplência.

É exatamente a impossibilidade de haver cláusulas de permanência obrigatória cumulada com a ausência de sanções em razão do não cumprimento de qualquer das disposições do acordo, que fez com que se começasse a apontar as primeiras inadequações do convênio. A doutrina e a jurisprudência estão permeadas de exemplos em que entidades federativas permaneciam no Convênio somente até o momento em que era conveniente e proveitoso. O marco temporal em que as primeiras dificuldades e obstáculos surgem no Convênio tende a corresponder ao seu fim, vez que o bônus é almejado, mas o ônus parece não ter proprietário.

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O fato gerou o nascimento de inúmeros Convênios já fadados a morte, ou ajustes interesseiros e oportunistas. Consequência do explicitado foram as milhares de sequelas na sociedade, vez que projetos sociais eram iniciados, a população obtinha melhorias, fruía benefícios que abruptamente eram cessados. Expectativas eram incessantemente frustradas.

Patente é o fato que tais dificuldades precisariam ser ultrapassadas. A Lei 11.107/2005 soluciona alguns destes conflitos, em especial a superação da precariedade, característica do convênio, e o estabelecimento de pactos e ajustes mais permanentes e contínuos.

Inova a Lei 11.107/2005 ao sustentar que os Consórcios Públicos não são meros ajustes entre entidades federativas. O instrumento normativo ultrapassa a ideia clássica de pactos de cooperação, no momento em que estipula que, nos Consórcios formar-se-á verdadeira personalidade jurídica própria. A "mens legis" é que as entidades federativas, no momento em que demonstrem o interesse em atingir uma finalidade comum, tragam ao mundo jurídico um novo ser, uma nova entidade, com objeto, patrimônio e pessoal próprio.

Caso dita personificação não ocorresse, não seria possível traçar diferenças entre convênios e consórcios públicos, sendo que haveria explícito retrocesso à doutrina liderada por Hely Lopes Meirelles, no que diz respeito à antiga distinção entre os institutos. Ademais, a norma constitucional que visa criar a figura do consórcio público perderia sua eficácia no momento em que se decidisse pela não personificação da figura, vez que se estaria diante de um mera modalidade de convênio.

Logo, os Consórcios Públicos devem ser tratados como entidades ou seres. Marçal Justen Filho, por exemplo, entende que a criação de um Consórcio entre pessoas administrativas, destituído de personalidade própria, seria um contrassenso, vez que:

Corresponderia a uma associação temporária entre pessoas estatais, voltada a execução de um certo projeto, em que a contratação se faria em nome dos consorciados (JUSTEN FILHO, 2005, p. 20).

E continua o autor afirmando que:

Consórcio Público é uma manifestação conjunta e concomitante da atuação de diversos entes federados. Portanto, não é pura solução organizatória interna, por meio da qual um certo ente federado racionaliza o modo de promover o cumprimento de seus encargos. Tal figura propicia o surgimento de sujeitos a quem serão investidas, de modo permanente e contínuo, a execução de tarefas de competência própria dos entes federados (JUSTEN FILHO, 2005, p. 20).

A ausência de personalidade jurídica dos consórcios, conforme bem observou Alice Gonzáles Borges (2008, p. 3), limitava em muito sua liberdade de ação e o êxito de seus objetivos.

Marçal Justen Filho explica que tal fenômeno não é peculiaridade brasileira, podendo-se observar modelos semelhantes em outros países, em especial nos do continente europeu, como, por exemplo, na Itália.

As comunas e as províncias podem constituir, ainda, um Consórcio para gestão associada de um ou mais serviços. Trata-se de uma estrutura organizativa e autônoma, que tem a sua própria personalidade jurídica para desenvolver de modo associado um ou mais serviços, enquanto na titularidade dos entes locais particulares restam as funções administrativas (JUSTEN FILHO, 2005, p. 18).


4 DELINEAMENTOS DO REGIME JURÍDICO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS

Ultrapassada a questão da necessidade de personificação do consórcio público, passa-se à análise de ponto relevante da presente abordagem. Os delineamentos do regime jurídico a ser adotado por este novo ente, suas características e peculiaridades.

É sabido que o regime jurídico administrativo se sustenta sob dois pilares de igual importância.

A indisponibilidade do interesse público traduz-se na noção da finalidade pública da administração, constituindo-se numa clara limitação das faculdades e poderes reconhecidos ao administrador. A indisponibilidade do interesse público subtrai do administrador as capacidades próprias de quem titulariza o domínio. Assim, um dos corolários mais expressivos dessa limitação resume-se à inarredabilidade, na indeclinabilidade, na inadmissibilidade de o administrador deliberadamente negar-se em cuidar daquilo que constitui sua razão e finalidade.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

A indisponibilidade do interesse público significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 43-44).

A supremacia do interesse público sobre o interesse particular, também pedra de toque do regime jurídico administrativo, hoje mitigado por alguns (ÁVILA, 2001, p. 29), sustenta a ideia da renúncia individual de pretensões particulares projetadas sobre bens que afetam a coletividade. A invocação desse princípio é devida quando torna viável produção de benefícios a serem gozados por todos aqueles que integram a comunidade. A Supremacia do interesse público sobre o particular é o fundamento das prerrogativas outorgadas à Administração para a realização do interesses da coletividade (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 45).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro resume bem a ideia dos Princípios basilares do regime jurídico administrativo:

De um lado a proteção aos direitos individuais frente ao Estado, que serve de fundamento ao princípio da legalidade, um dos esteios do Estado de Direito; de outro lado, a de necessidade de satisfação de interesses coletivos, que conduz a outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública, quer para limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do bem – estar coletivo (poder de polícia),quer para a prestação de serviços públicos (DI PIETRO, 2001, p. 65).

A Lei 11.107/05 prevê que os consórcios públicos poderão adotar personalidade de direito público, ou de direito privado sem fins lucrativos (art. 6º). No primeiro caso constituir-se-iam Associações Públicas, espécie de autarquia (art. 6º, I). No segundo, seriam associações civis (art. 6º, II).

Quando se opta pela adoção da natureza jurídica de direito público, com a consequente criação das Associações Públicas, espécie de autarquia, há autores que defendem uma nova nomenclatura para tais entes: seriam Autarquias Interfederativas, denominação muito coerente e feliz por retratar de forma exímia a realidade fática. Leciona Marçal Justen Filho, com muita clareza:

Portanto o Consórcio Público é uma figura muito mais próxima à autarquia do que as demais entidades integrantes da Administração Indireta (no esquema clássico do Dec-lei nº 200). Talvez até se pudesse afirmar que o consórcio público se configura como uma modalidade especial de autarquia.

A Constituição poderia ter denominado a figura como autarquia interfederativa. Mas é evidente que a variação terminológica, nesse ponto, é irrelevante (JUSTEN FILHO, 2005, p. 22).

Poderia cogitar-se, em casos de opção pela personalidade jurídica de direito privado, a adoção da forma de fundação pública. Entretanto, quando se analisa o art. 15 da aludida Lei, verifica-se o estabelecimento de aplicação subsidiária, nesses casos, à legislação que rege as associações civis. Neste ponto, conclui-se que não há possibilidade de criação de consórcio público com natureza jurídica de fundação pública.

Verifica-se, assim, que a Lei 11.107/05 deixou no campo da discricionariedade das entidades participantes de cada Consórcio a opção acerca da natureza jurídica do ente que nasce com o ajuste. A norma regente dos Consórcios Públicos, de forma inovadora, autoriza uma faculdade para as entidades federativas interessadas, a criação de uma pessoa jurídica de direito público, ou o advento de nova pessoa jurídica de direito privado.

No momento em que se constatou a faculdade, através do texto da Lei 11.107/05, uma parte da doutrina criticou veementemente a opção no sentido se adotar a natureza jurídica de direito privado.

Nesse sentido Alice Gonzalez Borges sustenta:

Não nos parece que a personalidade de direito privado seja adequada para reger as relações a serem travadas exclusivamente entre pessoas de direito público interno. Ainda mais quando a lei em comento traçou uma série de competências para os consórcios públicos em geral (...) sem distinguir-lhes a espécie de regime jurídico. Ora, o desempenho de algumas dessas competências efetivamente não se coaduna com um regime de direito privado (BORGES, 2005, p. 10).

A opinião de Odete Medauar e Gustavo Justino de Oliveira não é distinta:

Tratando-se da reunião de pessoas jurídicas de direito público, tal modelagem causa estranheza, podendo suscitar inúmeros questionamentos (MEDAUAR; OLIVEIRA, 2005, p. 27).

Entretanto, esta não parece ser a posição mais adequada.

É que se deve ter em mente que o regime de direito privado é híbrido ou mitigado. Tal figura não nos causa estranheza pelo fato dd a própria Constituição de 1988 elencar figuras semelhantes. Cite-se como exemplo as sociedades de economia mista e empresas públicas que exercem serviço público. Referidas entidades, na maioria das vezes, revestem-se de natureza privatística, e ainda assim exercem serviço público. O fenômeno só é possível em razão das mitigações e influências das normas de direito público que a CR/88 determina em tais casos.

Comentando a mitigação constitucional às pessoas de direito privado que integram a Administração Pública Indireta, José dos Santos Carvalho Filho aduz que:

Em nível constitucional, sempre é relevante observar que os princípios se impõem a todas as esferas federativas, abrangendo a administração direta e a indireta. Não há, portanto, qualquer restrição quanto à esfera de aplicação nos princípios administrativos constitucionais básicos – a legalidade, a moralidade, a impessoalidade, a publicidade e a eficiência (art. 37, caput da CF, com redação que lhe deu a EC nº 19/98). A Constituição proclama, além desses, outros princípios específicos, que se aplicam a situações particulares no cumprimento, pelo Estado, de sua função administrativa, como é o caso do concurso público, da prestação de contas, da responsabilidade civil e outros do gênero (CARVALHO FILHO, 2004, p. 366).

Nos Consórcios Públicos que optem por criar pessoa jurídica de direito privado, a situação não é distinta. Não bastassem as determinações da própria CR/88 para que nesses casos o regime seja privado, porém com características híbridas, a Lei 11.107/05 também trouxe dispositivos nesse sentido. De acordo com o art. 6º, parágrafo 2º da lei em comento, o consórcio com natureza de direito privado observará as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal. Observará, também, as normas de direito financeiro aplicáveis às entidades públicas na execução de suas receitas e despesas (art. 9º da Lei 11.107/05).

Como bem destaca Leni Santos:

A subordinação às regras e aos princípios da administração pública vincula-se sempre à origem dos recursos administrados e ao exercício de função pública. Se são públicos os recursos e a função executada também é pública, não se deve perquirir a natureza jurídica da pessoa que administra os recursos. Seja pública ou privada, estará obrigada a respeitar o regime publicista: moralidade, publicidade, impessoalidade, licitação, concurso público, controle de contas (SANTOS, 2001, p. 12).

Neste ponto, relevante tecer críticas acerca da redação da Lei 11.107/05. É que tal instrumento normativo silenciou a respeito de tema que pode causar dúvidas. Uma vez determinado no próprio texto legislativo, que a pessoa jurídica resultante do Consórcio Público poderá ter natureza pública ou privada, deveria o legislador ter estipulado parâmetros acerca do tipo de vínculo possível a ser seguido no que diz respeito ao regime de pessoal.

Se a pessoa jurídica tiver natureza de direito privado, fica claro concluir que o seu regime de pessoal será regido pela CLT, vez se tratar da existência de empregados públicos (ressalvadas as mitigações já apontadas).

Porém, se os entes federativos optarem por criar pessoa jurídica de direito público, questiona-se, serão contratados empregados públicos ou servidores estatutários? A dúvida vai além quando se verifica a possibilidade fática de se misturarem os vínculos jurídicos, uma vez que há autores que defendem que, com a nova redação do art. 39 da CR/88 (Emenda Constitucional 19/98), afasta-se a obrigatoriedade do regime jurídico único. Ou será que a Lei nada disse por entender que o regime estatutário estaria implícito?

Certo é que ainda não há solução na doutrina para tal celeuma. Cristiana Fortini traduz bem referida desarmonia na seguinte passagem:

A ausência de disciplina pode gerar uma variedade de interpretações. Alguns poderão sustentar que, diante do silêncio da lei, os consórcios regidos pelo direito público poderão contratar empregados públicos ou servidores estatutários. Não podemos ignorar que há os que defendem (do que discordamos, com todo respeito, em face do Princípio da Isonomia) a possibilidade inclusive de se misturarem os vínculos jurídicos, depois que supostamente se afastou a obrigatoriedade do regime jurídico único. É certo, que, diante da recente manifestação do Supremo Tribunal Federal, tal raciocínio torna-se mais difícil.

Também seria admissível argumentar que o silêncio da Lei se justifica, na medida em que a utilização do regime estatutário estaria implícita, sob pena de não existir ponto de tal divergência entre o consórcio público regido pelo direito privado e o consórcio público regido pelo direito público, uma vez que a obrigatoriedade de licitar, realizar concurso público e prestar contas recairia sobre as duas figuras.

Não se pode descartar uma terceira linha de raciocínio: os consórcios de direito público poderão, no vazio da lei, contratar para a totalidade dos postos de trabalho, empregados públicos. Importa lembrar que no art. 4º, IX da lei em comento, menciona-se como cláusula do protocolo de intenções a relativa ao número e remuneração dos empregados públicos. Não há nenhuma referência a servidores estatutários. Tal previsão normativa poderia socorrer os adeptos desta corrente (FORTINI, 2007, p. 31-44).

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Sobre a autora
Ana Flávia Borsali

Advogada da União, especialista em Direito público pelo Instituto de Educação continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais(IEC-PUC-MINAS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORSALI, Ana Flávia. Os consórcios públicos na Lei nº 11.107/2005.: Aspectos jurídicos relevantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2541, 16 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15035. Acesso em: 22 dez. 2024.

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