Há cerca de 10 (dez) anos, ainda nos bancos da faculdade de direito e tendo acabado de cursar a disciplina "Estatuto da Criança e do Adolescente", fui instado por meu professor a escrever sobre o tema em questão. Aceitando o desafio, escrevi breve artigo que acabou por ser publicado, cerca de um ano depois (em junho de 2001), na Revista Jurídica Consulex, no espaço denominado "Voz Universitária". O artigo foi intitulado, ingenuamente, diga-se de passagem: "Adoção por homossexuais: permissão ou proibição?"
Tendo como mote o questionamento acima, aduzimos no nosso primeiro ensaio, verbis:
"Tal indagação traz em seu âmago não somente uma carga jurídico-legal, mas também um conteúdo valorativo imenso que vai de encontro aos costumes enraizados e conservados em nossa cultura. Antes de adentrarmos no mérito deste questionamento, mister se faz lembrar que o Direito caminha paralelamente com a sociedade: o fato gerador da norma nada mais é do que um fato social de onde se deduz que, para se mudar um ordenamento jurídico em determinados aspectos, tem de haver, a priori, uma mudança nos valores sociais, efeito que não acontece da noite para o dia, sobretudo no que se volve ao ângulo de aceitação da pessoal homossexual, tendo em vista o nosso meio sociocultural paternalista e preponderantemente machista." [01]
Nesta nova incursão, 10 (dez) anos depois, pretendemos, também de forma breve, revisitar o problema proposto e investigar as mudanças legislativas acerca do tema, bem como verificar a posição mais recente da nossa jurisprudência sobre a matéria.
Com efeito, quando, há 10 (dez) anos, nos propusemos a escrever sobre o tema, ainda vigia o Código Civil de 1916 e foi sobre ele, lido em conjunto com a Lei nº 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e com a Constituição Federal, que nos debruçamos à época.
De início, pode-se afirmar que não houve mudanças legislativas relevantes sobre a temática investigada. Na verdade, não há nada específico em nossa legislação sobre a viabilidade ou não de um cidadão ou uma cidadã homossexual vir a adotar uma criança ou adolescente. Contudo, da leitura das normas existentes sobre a matéria "adoção" nos é apontado um norte a seguir.
Em 1916 o nosso legislador civil asseverou em seu artigo 370 que "Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher." (grifo nosso)
Percebe-se claramente, pela leitura desse dispositivo, que a adoção, como, aliás, não poderia deixar de ser, está umbilicalmente ligada ao conceito de família; e a família vista sob a ótica do legislador do início do século passado era uma entidade formada pelo homem – marido, pela mulher - esposa e pelos filhos que adviessem dessa união. De modo a se afastar quaisquer dúvidas sobre a última afirmação, suficiente é a leitura de três dispositivos do Código Civil de 1916, abaixo transcritos:
Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos (arts. 352 a 354).Art. 229.
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251).
Art. 240. A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta.
O artigo 229 afirma que o casamento cria a família legítima. Como só podem casar pessoas de sexos diferentes, a família legítima para o legislador de 1916 era necessariamente formada pelo marido (v. art. 233) e pela mulher (v. art. 240).
Por sua vez, nossa Constituição asseverou no artigo 226 §§ 3º e 4º que a família, base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado, é formada pelo casamento ou pela união estável entre o homem e a mulher. Até aqui houve uma evolução (ou, caso prefiram, uma quebra de paradigma, como diria Khun) [02], pois deixou de haver a vetusta distinção entre família "legítima" e "ilegítima"; entretanto o padrão homem e mulher restou mantido. Todavia, outra alteração foi introduzida em nosso ordenamento, a família mono ou uniparental, ou seja, aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Ou seja, além da família, digamos "tradicional", formada pelo marido, pela esposa e, caso existente(s), pelo(s) filho(s), passou a existir juridicamente, significa dizer: tutelada e protegida pelo Estado, a família formada pelo pai ou pela mãe e seu(s) filho(s).
O atual Código Civil, Lei nº 10.406 de 2002 praticamente repetiu a norma do artigo 370 do antigo Código Material em seu artigo 1.622, apenas albergando a união estável, prevista constitucionalmente, a qual não restara tutelada pela codificação anterior. Assim dispõe o artigo 1.622: "Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável." (grifo nosso)
Passados 86 (oitenta e seis) anos entre um Código e o outro, ainda assim manteve-se a regra de que para que duas pessoas possam adotar devem ser casadas ou viverem em união estável. Embora se haja evoluído muito no tocante ao que se denominavam famílias "ilegítimas", extrai-se clara a dicção de que pessoas do mesmo sexo não poderão adotar conjuntamente.
É de se frisar, contudo, que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, ainda na vigência do Código de 1916, previu a possibilidade da adoção singular, quando em seu artigo 42 asseverou que "Podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente de estado civil". (grifo nosso).
Foi basicamente este dispositivo, há 10 (dez) anos atrás, que nos conduziu à conclusão acerca da possibilidade, ante a inexistência de vedação expressa, de que qualquer pessoa solteira (independentemente do sexo ou da orientação sexual) poderia vir a adotar [03]. Ressalte-se, por óbvio, que se houvesse vedação expressa no referido artigo 42 do ECA, ou em qualquer outro dispositivo de lei, ressalvando a hipótese de adoção em razão da orientação sexual do adotante, tal norma seria flagrantemente inconstitucional por ofensa direta ao artigo 1º, III, artigo 3º, IV e artigo 5º, caput [04].
Nessa esteira, o atual Código Civil parece caminhar na mesma trilha do ECA, já que em seu artigo 1.618 também permite a adoção singular, senão vejamos: "Só a pessoa maior de dezoito anos pode adotar." (grifo nosso)
Observe-se que o dispositivo está versado no singular – "pessoa" –, portanto, uma única pessoa pode candidatar-se a um processo de adoção. Robustece ainda mais essa conclusão, a dicção do parágrafo único do mesmo dispositivo legal, ao dispor que "A adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado dezoito anos de idade, comprovada a estabilidade da família".
Ora, qual a razão para se tratar da adoção conjunta (pelo casal) no parágrafo único se não fosse para informar que o caput do artigo se reporta (ou de igual modo abarca) à adoção perfectibilizada por apenas uma pessoa, homem ou mulher? Entendemos que nenhuma. É regra comezinha de hermenêutica que a lei não possui palavras inúteis, deste modo, para se dar significado à existência do parágrafo único do artigo 1.618 forçosa é a conclusão de que a cabeça do dispositivo também alcança a adoção tida por singular, ou seja, por uma única pessoa.
A única diferença, pois, nos dispositivos em questão (art. 1.618 do CC e art. 42 do ECA) é a idade mínima do adotante: neste é de 21 (vinte e um), naquele 18 (dezoito) anos. Sobre essa peculiaridade, Regina Beatriz Tavares da Silva [05] esclarece:
"A emenda senatorial havia reduzido a idade do adotante de trinta anos, prevista no texto original, para vinte e cinco anos, bem como abolido a exigência de cinco anos de casamento para os adotantes casados. No entanto, este dispositivo ainda não estava compatibilizado com a legislação superveniente (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8.069/90). Observe-se que o caput do art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente já permitia a adoção a partir dos vinte e um anos, mas, tendo o novo Código Civil instituído a capacidade civil plena aos dezoito anos, no art. 5º, era necessário estabelecer o mesmo limite de idade com referência todos os atos da vida civil, incluindo a adoção."
Outro ponto do primeiro artigo que reputo merecer menção é a passagem em que questionei: "Poder-se-ia ainda perguntar se o fato de ser proibida a adoção de uma criança por um casal de homossexuais ofenderia o disposto no art. 3º, IV, bem como o caput do art. 5º e seu inciso XLI, todos da Constituição Federal (...)" [06]. A esse questionamento demos resposta negativa, não haveria ofensa aos referidos dispositivos. Ainda mantemos essa posição.
Explico: Primeiramente, devemos sublinhar que essa resposta em nada contradita a conclusão acima externada quanto à inconstitucionalidade de dispositivo infraconstitucional que vedasse a adoção em razão da orientação sexual do adotante. Lembre-se que ao tratarmos daquele ponto estávamos a nos referir ao contexto do artigo 42 do ECA e, atualmente, ao mesmo contexto do caput do artigo 1.618 do Código Civil, qual seja, a adoção singular, por uma única pessoa. Nesse sentido, se o texto legal prevê essa possibilidade para um heterossexual, deve prevê-la, de igual modo, a um homossexual.
O caso ora discutido é outro. Estamos a falar da adoção por um casal com orientação homoafetiva. Então, qual a diferença ontológica das situações? É que a tônica da nossa legislação não é vedar a adoção por casais homossexuais, mesmo porque tal união, embora exista no mundo fatos, não existe enquanto instituto consagrado por nossa legislação. Com efeito, a tônica da nossa legislação quando trata da adoção, ao nosso sentir, é a de permiti-la por uma entidade familiar ou para formar uma entidade familiar. Como antes demonstrado, entidade familiar é a formada ou pelo casamento entre homem e mulher (e seus filhos, se houver), pela união estável entre homem e mulher (e seus filhos, se houver), ou por quaisquer dos pais (homem ou mulher singularmente enxergados) e seus filhos.
Destarte, vê-se que todas as entidades familiares, a priori, estão aptas a adotar, bem como um homem ou uma mulher (singularmente, independentemente do seu estado civil) também. Em todos esses casos, ou participam do processo de adoção entidades familiares já constituídas, ou um único homem ou uma única mulher que, a partir da adoção, constituirá com seu descendente (criança ou adolescente adotado) uma nova entidade familiar, nos termos do artigo 226, § 4º da Constituição.
Assim, conclui-se, como se fez há uma década, que a vedação existente no nosso ordenamento (vedação esta que ainda persiste) é quanto à adoção conjunta por pessoas do mesmo sexo, independentemente da sua orientação sexual. Quer dizer que, do mesmo modo que um casal homossexual masculino ou feminino não pode conjuntamente adotar a mesma criança, dois irmãos ou amigos, ou duas irmãs ou amigas também não podem fazê-lo, sejam heterossexuais ou não, deste modo, independentemente da sua orientação sexual.
Tais conclusões, ao que parece, foram adotadas recentemente pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial 889.852/RS, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão [07], in litteris:
"Cuida-se da possibilidade de pessoa que mantém união homoafetiva adotar duas crianças (irmãos biológicos) já perfilhadas por sua companheira. É certo que o art. 1º da Lei n. 12.010/2009 e o art. 43 do ECA deixam claro que todas as crianças e adolescentes têm a garantia do direito à convivência familiar e que a adoção fundada em motivos legítimos pode ser deferida somente quando presentes reais vantagens a eles. Anote-se, então, ser imprescindível, na adoção, a prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque se discute o próprio direito de filiação, com consequências que se estendem por toda a vida. Decorre daí que, também no campo da adoção na união homoafetiva, a qual, como realidade fenomênica, o Judiciário não pode desprezar, há que se verificar qual a melhor solução a privilegiar a proteção aos direitos da criança. Frise-se inexistir aqui expressa previsão legal a permitir também a inclusão, como adotante, do nome da companheira de igual sexo nos registros de nascimento das crianças, o que já é aceito em vários países, tais como a Inglaterra, País de Gales, Países Baixos, e em algumas províncias da Espanha, lacuna que não se mostra como óbice à proteção proporcionada pelo Estado aos direitos dos infantes. Contudo, estudos científicos de respeitadas instituições (a Academia Americana de Pediatria e as universidades de Virgínia e Valência) apontam não haver qualquer inconveniente na adoção por companheiros em união homoafetiva, pois o que realmente importa é a qualidade do vínculo e do afeto presente no meio familiar que ligam as crianças a seus cuidadores. Na específica hipótese, há consistente relatório social lavrado por assistente social favorável à adoção e conclusivo da estabilidade da família, pois é incontroverso existirem fortes vínculos afetivos entre a requerente e as crianças. Assim, impõe-se deferir a adoção lastreada nos estudos científicos que afastam a possibilidade de prejuízo de qualquer natureza às crianças, visto que criadas com amor, quanto mais se verificado cuidar de situação fática consolidada, de dupla maternidade desde os nascimentos, e se ambas as companheiras são responsáveis pela criação e educação dos menores, a elas competindo, solidariamente, a responsabilidade. Mediante o deferimento da adoção, ficam consolidados os direitos relativos a alimentos, sucessão, convívio com a requerente em caso de separação ou falecimento da companheira e a inclusão dos menores em convênios de saúde, no ensino básico e superior, em razão da qualificação da requerente, professora universitária. Frise-se, por último, que, segundo estatística do CNJ, ao consultar-se o Cadastro Nacional de Adoção, poucos são os casos de perfiliação de dois irmãos biológicos, pois há preferência por adotar apenas uma criança. Assim, por qualquer ângulo que se analise a questão, chega-se à conclusão de que, na hipótese, a adoção proporciona mais do que vantagens aos menores (art. 43 do ECA) e seu indeferimento resultaria verdadeiro prejuízo a eles." (grifos nossos)
Percebe-se que o julgado do STJ, como não poderia deixar de ser, trilha o caminho da busca do interesse dos menores que serão adotados, nos termos do art. 43 do ECA, alicerçado também em estudos de renomadas instituições que concluem pela inexistência de qualquer inconveniente na adoção por companheiros em união homoafetiva, pois o que realmente importa é a qualidade do vínculo e do afeto presente no meio familiar que ligam as crianças a seus pais (adotantes).
De igual modo, é de se destacar que a decisão também registra que não há na nossa legislação a possibilidade de constar no registro de nascimento dos adotados a inclusão, como adotantes, do nome de pessoas de igual sexo. Isto tão somente corrobora a tese de que a impossibilidade de adoção conjunta por pessoas do mesmo sexo não se dá em razão de discriminação em face da sua possível opção sexual, como já havíamos sustentado no primeiro artigo [08] e voltamos a fazê-lo no presente estudo.
Não obstante a legislação não ter sido alterada de modo substancial nesses últimos 10 (dez) anos, o fato é que temos uma evolução de entendimento (quebra de paradigma [09]) marcante por parte do judiciário, que ao decidir demandas na verdade cria normas individuais para os casos concretos [10]: partimos de nenhuma decisão a favor e algumas decisões contra a possibilidade de um cidadão ou cidadã assumidamente homossexual adotar uma criança, para a existência de uma decisão, oriunda de uma Corte Superior, albergando dita possibilidade.
Neste sentido, cremos ainda ser atual a conclusão esposada no nosso primeiro artigo [11], razão pela qual a reproduziremos abaixo:
"Destarte a interpretação dos dispositivos legais, de forma a fazer com que os mesmos reflitam os anseios sociais predominantes, não pode ser taxada como sendo uma forma de burlar o ordenamento. Alguns podem até dizer que a lei não tem vida, e que não passava de letra fria... Entendemos que a lei pode realmente ser fria e morta se observada apenas como fruto de um trabalho puramente burocrático-legislativo. No entanto, cabe a nós, atuais e futuros operadores do Direito, darmos calor e vida à lei. E como fazê-lo? De uma forma bastante simples: interpretando-a de modo que a mesma reflita a imagem da sociedade para a qual foi elaborada, e, destarte, tornando-a verdadeira fonte de direito, como aprendemos nas nossas lições introdutórias ao ingressarmos na Universidade.
Quanto à nossa opinião, e totalmente coerente com o que aqui foi exposto, somos, sim, favoráveis a que homossexuais possam adotar, desde que separadamente, isto é, no nome de apenas um deles, embora vivendo juntos, pois não é a opção sexual do indivíduo que vai determinar o seu caráter ou a capacidade que tem de prover, criar e educar uma criança.
Com o que não concordamos, talvez, por influências simplesmente culturais, é que duas pessoas do mesmo sexo adotem a mesma criança ou adolescente, vez que a existência de um registro em que conste o nome de duas mulheres ou de dois homens como pais de uma determinada pessoa se opõe radicalmente (pelo menos ainda...) ao nosso ‘ordenamento consuetudinário.’"
Fazendo uma pequena alteração na conclusão anterior, diríamos hoje que somos simpáticos à possibilidade de pessoas do mesmo sexo, independentemente da sua orientação sexual, virem a adotar conjuntamente uma criança ou adolescente. Tal qual afirmado na decisão do Superior Tribunal de Justiça, o que se deve ter em mente é o bem estar do adotando e as reais vantagens do processo de adoção para essa criança ou adolescente.
Todavia, para isso ocorrer, cremos ser necessária uma alteração legislativa específica de modo a que tal possibilidade possa efetivamente ser abraçada pelo nosso ordenamento. Além disso, registre-se, haveríamos de elastecer o conceito de unidade familiar para os fins da adoção, caso contrário ter-se-ia uma dificuldade de adequação constitucional na situação pretendida.
Com efeito, o tempo é que vai ditar o caminhar da nossa sociedade: ontem só havia discursos; hoje há um forte precedente judicial e uma maior aceitação social da situação; amanhã, quem sabe, já não serão mais necessárias doutrina ou jurisprudência sobre o tema, as quais passarão a ser citadas tão somente como passagens históricas, caminhos outrora trilhados, necessários a mudanças sociais – alteração de paradigmas.