1. Introdução
Como de costume, reservei algumas – ou muitas, diria alguém – horas de um final de semana para pôr em dia algumas leituras pendentes. Debrucei-me quase que por acaso sobre estudos acerca da questão central de que me ocupo nestas linhas: o chamado "processo sincrético".
Deleitava-me com aquelas interessantíssimas informações quando fui interrompido pelo toque do telefone: "Você está pronto?" – perguntou-me a doce, porém decidida, voz do outro lado da linha, ao que respondi, mentindo: "Quase. Mais alguns minutos e chego aí".
Banho rápido, vesti-me de forma estabanada. Consegui buscá-la com poucos minutos de atraso e chegamos a tempo ao teatro, programa que fora planejado com bastante antecedência.
A escolha da peça foi muito feliz. Entre tantas que já assisti, com certeza foi das melhores. E, assim como nas demais, sempre me encantou a rapidez com que a equipe de produção muda os cenários. Uma cena se passa no quarto do casal; poucos instantes de escuridão, e estamos diante de uma formosa sala; mais algum tempo e vemos um belo jardim à frente e assim sucessivamente. Sem sair do lugar, no conforto de nossas poltronas, viajamos de uma situação a outra. Muita competência de quem trabalha nos bastidores, decerto.
Ainda embriagado com os estudos que fazia poucas horas antes, ocorreu-me de como seria bom para o processo se tal dinamismo lhe fosse emprestado. No teatro, o palco se adapta à cena e seus atores com impressionante velocidade, proporcionando ao público um espetáculo digno dos aplausos que vêm ao final. Já pensou se no processo também pudéssemos aplaudir com tamanha intensidade?
Seria mesmo ilógico que para cada nova cena todo público e todos os atores fossem obrigados a se deslocar a uma nova sala, diante de um novo palco. Ninguém, estou certo disso, se aventuraria neste programa. O teatro, então, se adapta para proporcionar bem-estar ao seu consumidor.
Pois bem. Não levou mais do que alguns segundos e eu já havia "ligado os pontos". Sim, o processo pode ser tão dinâmico quanto se é no teatro, com a diferença de que lá, no processo, as cenas são da vida real, algumas das quais tão dramáticas que poderiam ser reproduzidas aqui, no teatro.
Filtrando o que mais importa para o tema posto em análise, minha proposta central é a de abordar a questão da aglutinação de atividades processuais cognitivas e executivas, tema que está longe de ser uma novidade, mas que ganhou muito fôlego com o advento da Lei 11.232/2005.
Em resumo, dita lei teve o inegável objetivo de tornar a satisfação do credor, quanto às obrigações de pagar quantia em dinheiro, uma fase a mais dentro de uma relação processual preexistente.
Numa realidade anterior, dava-se início a um processo voltado à prática de atos de pesquisa da situação jurídica posta em discussão (processo de conhecimento). Posteriormente, novo processo era instaurado, agora com o objetivo de praticar atos para satisfazer o direito reconhecido (processo de execução). Em outros termos, havia dois palcos, cada qual com seus cenários. Para mudar de cena, mudava-se de palco. E lá iam público e atores.
Rompeu-se, após longo desenvolvimento da ciência processual, a clássica bipartição entre cognição e execução para aquelas hipóteses em que a pretensão é o cumprimento de sentença de pagar quantia certa. Aproximou-se, de outro lado, a execução de quantia das execuções específicas, conforme o modelo instituído desde 1994 nos arts. 461 e 461-A do CPC, entre outras experiências.
Figurativamente, então, posso afirmar que o "palco processual" será único – sincrético, preferem alguns – e nele serão montados dinamicamente os cenários das atividades cognitivas ou executivas. Tecnicamente, prescinde-se da instauração de um processo autônomo para cada uma das tutelas desejadas. [01]
Insisto, todavia, que a questão de se aglutinarem tais atividades num único processo não é nova. Muito pelo contrário, são longevos os debates na doutrina, no que destaco a preciosa contribuição de ENRICO TULLIO LIEBMAN, jurista italiano que teve forte influência num modelo processual brasileiro do qual o legislador vem, aos poucos e constantemente, buscando se afastar.
A propósito, se sancionado o novo Código de Processo Civil na forma como originalmente redigido – e ressalvo que escrevo estas linhas poucos dias após a entrega do respectivo anteprojeto ao Senado Federal –, teremos definitivamente alcançado aquilo que denomino de "Processo Civil do século XXI", ao mesmo tempo em que abandonaremos, neste particular, premissas construídas por este brilhante processualista.
Bem por isso, minha trajetória começa pela análise resumida da opinião de LIEBMAN sobre a autonomia dos processos (conhecimento e execução), expondo o contexto histórico de sua construção intelectual. A partir de então, traçando as linhas de uma nova realidade, procuro explicar os porquês do abandono de um modelo construído sob bases tão sólidas e da opção por uma nova técnica processual mais simples.
Não tenho a pretensão de que estas breves linhas recebam os aplausos merecidos aos atores de uma peça de teatro. Dou-me por satisfeito se conseguir contribuir minimamente não apenas para a compreensão do tema, que já é bem tratado por competente doutrina, mas especialmente para o desenvolvimento e para compreensão do fenômeno processual. Este sim, ao final, é que queremos poder aplaudir.
2. A visão de Enrico Tullio Liebman [02]. Autonomia do processo de execução
Inicia LIEBMAN seu trabalho de forma direta, já confessando sua posição: "A faculdade de promover a execução, que a sentença condenatória confere ao credor, é uma ação, porque ela consiste também no direito (ou poder) subjetivo de provocar o exercício da atividade jurisdicional a favor de um interesse próprio." [03]
O Código de Processo Civil de 1973, por sua vez, foi fortemente influenciado pela doutrina de Liebman. Não custa lembrar que ele veio da Itália para se estabelecer no Brasil em 1939, ano de edição do primeiro Código de Processo Civil brasileiro. Começou a lecionar e pôde cultivar ideias até então revolucionárias. De suas mãos, formaram-se notáveis processualistas, como Alfredo Buzaid. Este último, na qualidade de Ministro da Justiça, encabeçou o movimento inspirado na obra e pensamento de seu mestre para reformular institutos mal disciplinados no Código de 1939. Daí nasce o diploma de 1973. [04]
Assim, na concepção original do Código Buzaid – assim que me refiro ao CPC de 1973 doravante –, a execução é ação autônoma, manejada em processo autônomo, distinto de seu antecedente processo de conhecimento. Exige petição inicial, citação do executado e, grosso modo, se submete a toda formalidade imanente a tal atividade processual.
No contexto de suas justificativas, assinala LIEBMAN que desde a Idade Média se adotava a execução não como ação autônoma, mas sim como mera fase do processo de conhecimento. Durante o século XIX, com a formação de um novo processo (influência de codificações francesa, italiana, germânica, austríaca, portuguesa etc.), a doutrina européia acabou reconhecendo a separação das respectivas atividades (e correspondentes ações) de conhecimento e execução.
Alguns fatores foram decisivos para a adoção dessa posição.
O primeiro deles é a admissão das ações declaratórias. Estas se exaurem com a sentença transitada em julgado, de modo que prescindem de execução. [05] Pôs-se, destarte, em relevo a autonomia do processo de conhecimento, destacando que sua função é "decisória". Conseqüentemente, a sentença condenatória deixou de ser vista como "preparatória de execução", passando a ser considerada verdadeiramente como "resultado concreto do processo de conhecimento". Logo, a execução não seria mais apenas uma fase, mas sim um verdadeiro novo processo (e/ou ação).
Em segundo lugar, dizia LIEBMAN que a adoção dos títulos executivos extrajudiciais – e eles estão presentes entre nós, como se vê no art. 585 do CPC – reforça a autonomia do processo de execução, pois autorizam o manejo imediato da ação de execução, prescindindo de prévia atividade cognitiva.
Em terceiro lugar, ressaltou a natureza distinta das respectivas atividades jurisdicionais. É que na execução na cognição o juiz desempenha uma atividade lógica de conhecimento do caso submetido ao seu exame. Na execução, ao contrário, a atividade do magistrado é prática e material, cujo escopo é realizar a vontade estatal manifestada no processo de conhecimento.
Em quarto lugar, o papel das partes se altera significativamente a depender do "processo" em que atuam. Se na atividade de cognição elas estão em pé de igualdade e há rigorosa observância do contraditório, na execução, ao contrário, o equilíbrio entre ambas desaparece, assim como desaparece o contraditório [06]. Ao invés de ambas cooperarem na investigação do juiz, na execução uma parte exige e a outra suporta. Falar-se em contraditório e controvérsia na execução só é possível com a instauração de um novo processo de conhecimento (embargos do devedor).
Adiante, LIEBMAN ainda aduz que o cumprimento espontâneo da sentença, caso a execução seja considerada mera fase da cognição, implicaria na cessação de um processo pendente, o que criaria problemas inclusive à formação da coisa julgada.
Daí, então, que reafirma sua posição, expondo que execução e cognição não são "fases" de um mesmo processo, mas dois processos separados e distintos.
A promoção de uma execução é, assim, o exercício de um novo direito de ação distinto do anterior (exercido no processo de conhecimento), manejado em processo autônomo, cujo único ponto em comum é o direito material ao qual se coordenam e que ambas tutelam com formas, meios e resultados diversos.
Como consequência da adoção do princípio da autonomia, diz-se que os processos de conhecimento e execução são "puros", de modo que não se realizam atividades executivas no processo de conhecimento, assim como não há cognição no processo de execução. Sendo atividades tão distintas, seria mesmo aconselhável que se realizassem em processos diversos. [07]
2.1. Contexto histórico da doutrina de Liebman
Minha apreciação crítica da teoria de LIEBMAN não procurará seus erros ou imprecisões, até mesmo porque não as identifico, mas sim abordará as circunstâncias que o cercaram ao desenvolver suas ideias, comparando-as com as atuais e, por fim, com a opção do legislador moderno (notadamente pós-2005), ao instituir o "novo" "processo" de execução.
Como destaca JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, "o princípio da autonomia do processo de execução surgiu e se desenvolveu principalmente por razões históricas, o que não impediu, entretanto, que se buscassem, na doutrina, fundamentos científicos para sua adoção, bem como que se defendesse a superioridade de tal esquema sobre outro em que se cumulassem cognição e execução – tais atividades, como se afirmou na doutrina, seriam funcionalmente incompatíveis." [08]
Dito em outras palavras, o momento histórico vivido em determinada época conduz a concepção científica do Direito para um ou outro lado. O que fazem os cientistas – ou a doutrina, como preferem se referir os juristas – é buscar no ordenamento fundamentos de validade de uma opção que pareça mais adequada àquele contexto. [09]
Assim, retomando em parte aquilo que já expus anteriormente, recordo que LIEBMAN veio ao Brasil quando eclodia a Segunda Guerra Mundial no Velho Continente e aqui produziu ou lapidou grande parte de sua produção.
É dizer, então, que sua teoria decerto sofreu influência decisiva do Estado Liberal, que se caracterizava pela exacerbada proteção ao valor "segurança jurídica", preservando a "liberdade" e a "propriedade privada".
Parece que esses valores, guardadas as proporções de épocas distintas, também foram decisivos na elaboração de nosso antigo Código Civil (Código Bevilácqua, de 1916), de elevada inspiração germânica e principalmente francesa, que por sua vez foram resultados de "ideais burgueses", todos evidentemente preocupados com questões individuais, como natural reação à então recém-conquistada liberdade do Estado.
Tanto isso é verdade que nosso antigo Código Civil destacava-se pela forma como tratava o direito de propriedade e especialmente a liberdade de contratar.
Até mesmo por essas razões, é compreensível que o Código de Processo Civil, como bom instrumento que deve ser do direito material, também se preocupasse e se alinhasse a tal inspiração.
Conseqüentemente, os meios executivos previstos na lei processual deveriam todos ser tipificados, a dar guarida aos valores "certeza" e "segurança", evitando todas as formas uma expropriação indevida. Daí o porquê do antigo Livro II do CPC ser tão extenso. Fica explicada, também, a razão pela qual não se falava de execução específica, afinal de contas a intangibilidade do Estado sobre a vontade dos particulares era um dogma do Estado Liberal [10].
Em síntese, o Estado Liberal tinha como uma de suas características a proteção extrema da liberdade e da propriedade privada, de tal sorte que é natural que o processo de execução, como forma de expropriação do patrimônio do devedor, fosse visto como um processo e uma ação totalmente autônomos, e não como fases diversas do mesmo procedimento.
Pode-se ainda dizer que toda teoria executiva trazida pelo Código de Processo Civil de 1973 é herança da fase autonomista do processo, quando esta ciência, notadamente por influência de OSKAR VON BÜLOW, obteve a sua "declaração de independência" do direito material. Toda construção científica do processo neste momento histórico se caracteriza pela supervalorização da técnica, às vezes em detrimento dos próprios objetivos visados. Natural, portanto, que a execução fosse concebida como processo autônomo.
Eis o contexto histórico que justificava a simpatia pela adoção de um processo de execução autônomo em relação ao processo de conhecimento. Foi inspirado nesses valores que LIEBMAN desenvolveu sua teoria. Seus argumentos técnicos nada mais são do que o retrato deste sentimento. A mudança do diapasão faz com que as objeções a tais alegações sejam tarefa mais simples. É do que me ocupo adiante.
3. Para um novo contexto histórico, uma nova execução. Rumo ao Processo Civil do século XXI
As circunstâncias históricas que culminaram na doutrina de LIEBMAN mudaram nos tempos mais recentes, como consequência natural da passagem do tempo. Houve a substituição do Estado Liberal pelo Estado Social, marcado por uma maior intervenção estatal, consentida e até certo ponto apreciada, pelos particulares.
Nota-se a transição do modelo estatal, sob o ponto de vista jurídico, ao se verificar a importância que vem ganhando a tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, desde a década de 80 e especialmente na década de 90.
Seria inoportuno olvidar, ademais, do novo Código Civil (o Código Reale, de 2002), que confessadamente abandona o individualismo e se aproxima da socialidade, com a prevalência de valores coletivos sobre os individuais [11], assim como assume o princípio da concretude, que rompe com a abstração quase absoluta da norma para que esta possa ser útil ao cidadão comum. Este princípio material é, sem espaço para dúvida, o de maior influência no legislador processual. [12]
Este é o momento histórico vivido hoje. Quer-se, acima de tudo, uma tutela jurisdicional mais efetiva. Repito aqui o que disse anteriormente: o CPC, como bom instrumento que deve ser do direito material, também se preocupa com esses "novos" valores, em detrimento de outros. A execução segue, pois, o mesmo rumo, onde se observa, consequentemente, o agrupamento das tutelas processuais num só processo. [13]
Antes tarde do que nunca, friso que a aglutinação das tutelas não significa qualquer forma de redução da importância da atividade executiva. Uma leitura mais apressada pode concluir que a execução perdeu autonomia, o que é um engano, porque, nesta perspectiva, todas as modalidades de processo também a perderam. Com efeito, se o processo é sincrético, também não há que se falar na autonomia do processo de conhecimento. O que existe é um palco único, no qual, tanto quanto no teatro, mudam-se os cenários a depender da próxima cena.
Neste sentido, é de todo oportuna a colocação de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, segundo o qual a busca de um processo de execução adequado e célere para o cumprimento de sentenças impõe o afastamento do "formalismo demorado e sofisticado" do sistema de execução por ação autônoma, adotados por BUZAID na redação original do Código de Processo Civil, incompreensíveis aos jurisdicionados, sendo premente a necessidade de retorno à simplicidade do processo sincrético [14]- [15].
A evolução da ciência também conduziu o processo da fase autonomista, à qual me referi linhas atrás, à sua fase instrumentalista, que tem em CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO [16] seu maior expoente, colocando o processo na posição de instrumento de efetivação do direito material. Daí justificar-se a expressão que repeti mais de uma vez neste escrito, enxergando no processo um instrumento do direito material. A instrumentalidade pressupõe um processo que traga resultados e este objetivo se alcança com muito mais facilidade ao se simplificar o procedimento.
Desta forma, aquilo que antes era um "processo de execução de título executivo judicial" passou a ser o "cumprimento de sentença". Mais do que mera alteração na terminologia, arquitetou-se um sistema em que as atividades satisfativas referentes aos documentos hoje descritos no art. 475-N do CPC se dão sem intervalo, dentro da relação processual preexistente [17], na forma do art. 475-J: "Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação."
Com toda honestidade, ainda para aqueles que veem o cumprimento de sentença como ação ou processo autônomo, é irrecusável que a "transição" entre cognição e execução se tornou um caminho muito menos complexo.
Assim sendo, e numa visão mais prospectiva, é possível dizer-se que o processo atinge agora uma nova fase, chamada por GLAUCO GUMERATO RAMOS de utilitarista, na qual o processo caminha com mais velocidade à descomplicação de seu sistema. Em resumo: simples no manejo e útil nos seus resultados. [18]
Meu nobre colega de docência, processualista à frente de seu tempo, não estava enganado. Quatro anos depois de seu escrito, eis que surge o Anteprojeto do novo Código de Processo Civil, inspirado justamente na ideia de simplificação num documento legal mais claro e de fácil aplicação. Como se lê na exposição de motivos apresentada pelos autores de seu anteprojeto, "A simplificação do sistema, além de proporcionar-lhe coesão mais visível, permite ao juiz centrar sua atenção, de modo mais intenso, no mérito da causa."
Eis o Processo Civil do século XXI. Uma ciência madura, segura de sua autonomia, ciente de sua função instrumental e dotada de técnicas suficientes à consecução de seus objetivos em todas as suas etapas.