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Direito de propriedade: incorporação de rede elétrica particular pelas concessionárias e/ou permissionárias de energia elétrica

12/08/2010 às 17:23
Leia nesta página:

1.INTRODUÇÃO

A Resolução Normativa n° 229 de 08/08/2006 da ANEEL, em seu artigo 3°, estabeleceu que:

"As redes particulares que não dispuserem de ato autorizativo do Poder Concedente, na forma desta Resolução, deverão ser incorporadas ao patrimônio da respectiva concessionária ou permissionária de distribuição que, a partir da efetiva incorporação, se responsabilizará pelas despesas de operação e manutenção de tais redes."

Já aos proprietários de redes elétricas que dispuserem de ato autorizativo do Poder Concernente, ficou facultada a incorporação, dependendo de acordo entre as partes (proprietário da rede e concessionárias/permissionária).

Ocorre que restou uma lacuna da qual as concessionárias/permissionárias vêm se aproveitando, uma vez que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) limitou a manifestar-se sobre a incorporação das redes particulares às redes das concessionárias/permissionárias, não se referindo, em qualquer momento, à restituição dos valores despendidos na construção das redes.

A omissão da ANEEL contribuiu para as práticas abusivas das concessionárias/permissionárias de energia elétrica, que há anos vêm incorporando aos seus patrimônios redes elétricas particulares e NÃO ressarcindo os valores desembolsados nas construções de tais redes. Ou seja, o proprietário de rede elétrica deve entregar, sem grandes delongas, sua rede elétrica à concessionária/permissionária, sem que seja restituído o montante gasto na implantação da respectiva rede.


2.O DIREITO DE PROPRIEDADE NO NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO

O direito de propriedade é garantido constitucionalmente (artigo 5º, inciso XXII, da CF/88), inclusive é cláusula pétrea.

A legislação infraconstitucional também não deixou desamparado o direito de propriedade, conforme preconiza o art. 1228 caput do Código Civil de 2002:

"O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha."

Até mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. 7º dispõe sobre o tema:

I) Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

II) Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

O direito de propriedade foi também fonte de ensinamento bíblico, conforme preconizado pela Lei de Moisés:

"Não roubarás... Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu escravo nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo." (Ex 20, 15, 17).

Ademais, é cediço que o nosso ordenamento jurídico, como regra, estabelece todo um procedimento a ser observado (devido processo legal) para fins de desapropriação. É o que preceitua o artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal de 1988.


3.INCORPORAÇÕES DAS REDES ELÉTRICAS RURAIS

Atualmente, o maior número de redes elétricas particulares encontra-se nas zonas rurais, isto porque, nessas áreas, o acesso à eletricidade ainda é limitado, o que contribui para que os sitiantes, por meio de recursos próprios, construam suas redes elétricas e a estendam até a unidade distribuidora mais próxima, para assim ter acesso ao bem essencial que é a energia.

Malgrado o sitiante, muitas vezes cidadão de escassas rendas, tenha construído e implantado a rede elétrica, esta deverá ser incorporada às redes elétricas da respectiva concessionária ou permissionária, sem que para isso seja restituído ao proprietário da rede pelo menos o valor histórico gasto com a construção da mesma. Não obstante, o proprietário e usuários da rede deverão pagar perpetuamente as tarifas de energia elétrica cobradas mensalmente pela concessionária/permissionária.

Há décadas, com o advento das tecnologias modernas, a energia elétrica se tornou um bem de suma importância para o bem estar da população. A propósito, a Portaria nº 3/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça já tinha reconhecido como serviço essencial o fornecimento de energia elétrica.

Neste diapasão, conclui-se que, há considerável lapso temporal, energia elétrica é direito de todos e dever do Estado, que repassa esse dever às concessionárias e às permissionárias de energia elétrica, que de forma remunerada fornecem energia elétrica à população.

A incorporação de redes de energia elétrica particulares constitui um excelente negócio para as concessionárias/permissionárias, visto que esta se apropriam das redes, sem investir nenhum centavo, aproveitando tão somente do bônus. Por sua vez, o proprietário de rede elétrica, além de ter cumprido com o dever que caberia à concessionária/permissionária, ainda é compelido a entregar "de mãos beijadas" o fruto de seu esforço, que teve como objetivo o bem estar da população residente na localidade.

Os tribunais vêm reprovando essa prática corriqueira das concessionárias/permissionárias de energia elétrica, determinando que restituam aos ex-proprietários de redes elétricas os valores desembolsados na implantação da rede, inclusive com juros e atualizado monetariamente. Neste sentido, seguem transcritas as seguintes ementas:

DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE COBRANÇA. FINANCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO DE REDE DE ENERGIA ELÉTRICA. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE PASSIVA E DE AUSÊNCIA DE DOCUMENTO ESSENCIAL QUE SE CONFUNDEM COM O MÉRITO DA AÇÃO, DEVENDO SER APRECIADAS CONJUNTAMENTE COM ELE. PREJUDICIAIS DE PRESCRIÇÃO. REJEIÇÃO. MÉRITO. COMPROVAÇÃO DO DESEMBOLSO DE VALORES PELA PARTE AUTORA. OBRIGATORIEDADE DA DEVOLUÇÃO DOS VALORES APORTADOS,CORRIGIDOS MONETARIAMENTE PELO IGPM, DESDE O DESEMBOLSO, EACRESCIDOS DE JUROS LEGAIS DE 12% AO ANO, A CONTAR DACITAÇÃO. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - Nona Câmara Cível -Recurso de Apelação n. 70030343222 - Rel. Des.ª Marilene Bonzanini Bernardi –-Data de Julgamento: 19 de agosto de 2009 g. n).

RESPONSABILIDADE CIVIL - Dano material - Incorporação de rede elétrica particular por concessionária - Indenização - Admissibilidade - Despesas com construção da rede que devem ser Indenizadas por quem a incorpora e dela se beneficia - Sentença de improcedencia da ação de cobrança reformada - Apelação provida.(TJSP, Apelação n. 7.250.901-3, 14ª Câmera de Direito Privado, Des. Rel. José Tarciso Beraldo, J. 28/05/2008)

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O entendimento desses egrégios Tribunais visa a proporcionar aos cidadãos a mais pura justiça social.


4. INCORPORAÇÕES DAS REDES ELÉTRICAS DE LOTEAMENTOS

No que tange aos loteamentos, a incorporação das redes elétricas segue regras inusitadas: o proprietário do loteamento tem que implantar a rede elétrica com recursos próprios, sob a supervisão da respectiva concessionária/permissionária, seguindo o padrão por esta exigido, sob pena de negar-lhe o fornecimento de energia, e depois, assinar um contrato doando referida rede à empresa de energia elétrica.

É de bom alvitre aduzir que o custo com a implantação de uma rede elétrica, em um loteamento urbano, pode perfazer o percentual de 20% do valor total da obra. Por outro lado, à concessionária/permissionária de energia elétrica caberá a cobrança da tarifa de energia elétrica normalmente, sem ter investido "nenhum centavo".

Cumpre frisar que, in casu, a Justiça também vem agindo imparcialmente e compelindo as empresas de energia elétrica a ressarcir o valor despendido na construção das redes. Oportuno transcrever parte da brilhante sentença que o Juiz de Direito Luciano Brunetto Beltran,Titular da3ª Vara Judicial da Comarca de Penápolis/SP,proferiu em 07/01/2010:

"A concessionária ré além de - guardadas as devidas proporções - monopolizar o setor, ainda quer se aproveitar da situação, ou seja, quer apenas o bônus, não o ônus. O ordenamento jurídico em vigor, pelo que sei, não permite o enriquecimento ilícito sem causa, nos moldes do art. 884 do CC, o que, evidentemente, está a requerida a se esbaldar. A situação de abuso posta em juízo deveria afrontar a consciência do homem médio, enquadramento ao qual me filio. Interessante que a requerida fez vários raciocínios tentando levar este Julgador à conclusão "inconclusiva", data vênia. "Tateou" de um lado; "tateou" d’outro, mas no final não conseguiu explicar porque quer bem de outrem, sem efetuar o devido pagamento. Algo descabido, com todo o respeito. Ao que está a parecer é que a requerida mantém a resistência na esperança de que o Judiciário dê crédito ao calote que está a proporcionar aos que estão a trabalhar para o desenvolvimento do país. Desculpa, mas meu aval não terá! Estamos vivendo situações de mandos e desmandos explícitos. Mesmo juridicamente, parece que tudo pode. Entretanto, sob minha jurisdição, as coisas, se dependerem de mim, permanecerão em ordem. A resistência da ré é vergonhosa, pois certamente não aceita ficar em situação parecida com a da autora, induvidosamente. Pergunto: será que a requerida aceita fornecer energia gratuitamente? Sem dúvida que não. Então, porque pretende surrupiar bem de outrem? Enquanto a autora tenta providenciar algo de bom para a localidade, a requerida, que em tese representa o Poder Público, pois é concessionária, busca lucro fácil, nada mais, anotando que a obra citada é de evidente e claro interesse social, pois realizada em benefício dos necessitados.

[...]

Ainda, à inteligência, temos as seguintes normas que esclarecem a controvérsia, desde que analisada com imparcialidade: Arts. 136 a 138 do Decreto nº 41.019/57, com nova redação pelo Decreto nº 98.335; art. 8º da antiga Portaria nº 466/97 do DNAEE; Resolução 82/04, 250/07 da ANEEL; Art. 140 do Decreto nº 41.019/57, com nova redação pelo Decreto nº 98.335; art. 15, parágrafo único, da Lei nº 10.848/04; art. 71 e seus parágrafos do Decreto nº 5163/04 e Resolução Normativa nº 244/06, 229/06. Ora, nada mais é preciso dizer. Apenas ressalto que a previsão acima demonstra que o próprio poder público concedente está tendo dificuldade com a questão, pois a meu alvedrio a partir do momento do perfazimento do contrato de concessão tal incorporação deveria ser óbvia, e devidamente indenizada." (Processo n. 438.01.2009.006094-8)

Como se vislumbra, até mesmo os proprietários de loteamentos têm o direito de reaver o valor gasto na construção das redes elétricas.


CONCLUSÃO

Conclui-se que são extralegais e abusivas as incorporações de redes elétricas que vêm sendo feitas pelas concessionárias/permissionárias, haja vista que não restituem aos respectivos proprietários os valores desembolsados nas construções das redes, ferindo assim, bruscamente, o direito de propriedade, bem como caracterizando enriquecimento ilícito.

Frente a tamanha ilegalidade, só resta aos lesados recorrer às colunas da justiça, e requerer em juízo a restituição dos gastos suportados.

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Sobre o autor
Lucas Mello Rodrigues

Mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) com reconhecimento do título no Brasil pela Universidade de Marília (Unimar). Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Ji-Paraná (CEULJI/ULBRA). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual e Cível. Aprovado no Exame da OAB na primeira vez que o realizou, quando ainda cursava o 9º período do curso de Direito. Aprovado em 1º lugar para o cargo de Oficial de Diligências do Ministério Público do Estado de Rondônia (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, onde exerceu a função por 2 (dois) anos. Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Ministério Público Federal - MPF (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado em 1º lugar para Estagiário de Direito do Ministério Público do Trabalho - MPT (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado para o cargo de Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (nomeado, renunciou à vaga). Aprovado para o cargo de Agente de Sistema de Saneamento da Companhia de Águas e Esgoto de Rondônia - CAERD (nomeado, renunciou à vaga). Sócio-proprietário do escritório Lucas Mello Rodrigues Sociedade Unipessoal de Advocacia. Autor do livro "Projeção da Autonomia Privada no Processo Civil e sua contribuição para a prestação de uma tutela jurisdicional efetiva: autonomia privada e processo civil". Tem vários artigos publicados, inclusive em periódico de circulação nacional. É autor do anteprojeto da Lei 1.232, de 28 de julho de 2016, que "dispõe sobre o atendimento prioritário às pessoas idosas e demais pessoas que especifica nos estabelecimentos comerciais, de serviços e similares de Alto Paraíso [RO], e dá outras providências".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Lucas Mello. Direito de propriedade: incorporação de rede elétrica particular pelas concessionárias e/ou permissionárias de energia elétrica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17168. Acesso em: 2 nov. 2024.

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