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O princípio da presunção de inocência e a inconstitucionalidade de sua mitigação para fins de registro de candidaturas políticas ("Ficha Limpa")

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23/08/2010 às 06:01
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Resta saber se o princípio da presunção de inocência se mitiga, somente sendo aplicado para fins penais, sem projeção para as demais esferas do direito.

I - CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há muitos anos que toda sociedade brasileira clama por regras jurídicas mais sólidas e eficazes, voltadas para o combate à falta de moralidade com a coisa pública e também com a ética que deve prevalecer entre os homens que compõem o poder político.

Não resta dúvida de que o Brasil mudou, e o curso dos anos tem demonstrado um grande avanço no combate da corrupção. Medidas legislativas foram estabelecidas com essa finalidade.

A Lei nº 8.429/92, apesar de possuir comandos bem abertos, possibilitando o seu manejo de forma indevida e demasiada, foi uma das grandes conquistas para a tentativa de manutenção do princípio da probidade do agente público, pois visa punir o ímprobo, aquele que, dolosamente, sem nenhum pudor, lesa o princípio da moralidade administrativa, bem como sangra o erário.

A Lei de Improbidade Administrativa, substituindo a Lei Bilac Pinto, trouxe novas fórmulas para o poder público combater o agente público devasso e imoral, que busca uma oportunidade de enriquecer ilicitamente às custas de toda a coletividade.

Por outro lado, ratificando o que sempre deixamos registrado sobre a matéria sub oculis, [01] a Lei nº 8.429/92, que regula os casos da prática de improbidade administrativa, por não estabelecer nuclearmente o tipo do ato ímprobo, favorece o seu uso indevido para inúmeras situações jurídicas, trazendo a dor de uma chaga de grave injustiça. Seu uso deve ser responsável e sério, e não vulgarizado, capaz alcançar todos os casos imaginados como ilegais pelo seu intérprete.

Esse é o principal equívoco da lei, que confunde o ato tido como ilegal com o ímprobo, sem exigir pesquisa sobre o elemento subjetivo da conduta do agente público ou do particular.

Deixando de lado esse equívoco legislativo, é de se registrar também um efetivo controle por parte do Ministério Público, com apoio dos Tribunais de Contas, dos atos públicos, em especial no combate a corrupção e a probidade administrativa.

Não resta dúvida que as ações responsáveis do Ministério Público sem holofotes ou fins promocionais, efetuadas em consonância com os princípios mais lídimos de direito e de justiça, em prol da moralidade administrativa, possuem o condão de inibir a sangria desatada do erário, promovida por agentes públicos e políticos devassos e imorais.

Contudo, não se podem generalizar todos os agentes públicos ou políticos que, mesmo acusados de graves delitos, ainda não foram condenados em instância final pelo Poder Judiciário, pois ninguém desconhece que existe a possibilidade do erro da acusação e do próprio julgamento colegiado do Judiciário.

Por essa razão, o Estado Democrático de Direito, vigente em nosso sistema jurídico, estabeleceu, na presunção de inocência, a garantia de que ninguém será tido como culpado (condenado), sem que haja o trânsito em julgado da sentença condenatória.

O princípio da presunção de inocência foi gerado na Revolução Francesa (1789), com a finalidade especial de manter eficaz e permanente outro princípio fundamental, da dignidade da pessoa humana, porquanto qualquer cidadão, ao tempo em que pode sofrer uma injusta e indevida acusação, fruto da criação intelectual do representante do órgão público acusador, encontra-se exposto ao erro judiciário.

A partir desse histórico marco, o direito constitucional centrou-se, principalmente, na construção de um sistema eminente garantista frente à Administração Pública, para quem o cidadão passou a ser o centro das atenções, através de projeção de direitos fundamentais e de garantias.

E, com a instituição em nosso país, de uma ordem plenamente democrática, assim consagrada pela atual Constituição, intensificou-se o círculo de proteção em torno dos direitos fundamentais, que, segundo o Ministro Celso de Mello [02] possui perspectiva mais abrangente, que engloba "todos os blocos normativos concernentes aos direitos individuais e coletivos, aos direitos sociais e aos direitos políticos, em ordem a conferir-lhes real eficácia, seja impondo ao Estado deveres de abstenção (liberdades clássicas ou negativas), seja dele exigindo deveres de prestação (liberdades positivas ou concretas), seja, ainda, assegurando, ao cidadão, o acesso aos mecanismos institucionalizados de exercício de seu poder político na esfera governamental (liberdade-participação)."

Na verdade, a atual Constituição brasileira seguiu a evolução dos direitos fundamentais, iniciada na carreira triunfal nos primórdios do século XVIII com as magnas Declarações de Direitos Humanos, a Bill of Rights nos Estados Unidos da América e nas Declarações Francesas de 1789 e 1795, a fim de limitar o Estado, para que ele não fosse mais totalitário e aniquilador de direitos e de garantias individuais de seus cidadãos.

Tem-se, pois, que os direitos fundamentais asseguram a liberdade e a dignidade humana e devem ser respeitados pelo ordenamento jurídico, como forma de inibir o poder outrora incontrolado do Estado.

Nesse sentido, o princípio da presunção de inocência, seguindo as demais Constituições Democráticas de Direito, foi inserido no art. 5º, LVII, da nossa Constituição, como uma forma de preservação do ser humano, para que ele não se torne objeto de perseguição estatal, ou vítima de quem ostenta o poder persecutor.

Dito isto, é de se sublinhar que a título de combater a violação ao princípio da moralidade, com forte clamor popular, o Poder Legislativo aprovou a redação final do projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 58, de 2010, que altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º, do art. 14, da Constituição Federal, casos de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade do exercício do mandato político.

Por essa nova orientação legislativa, denominada de ficha limpa, promulgada pelo Presidente da República, foram estabelecidos os seguintes critérios de inelegibilidade, por período de 8 (oito) anos, para o cidadão que pretende se candidatar a um mandato parlamentar:

- o período de inelegibilidade passa para oito anos para todos os casos previstos, desde que a decisão judicial tenha transitado em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado;

- ficam inelegíveis os que praticaram crimes dolosos, contra e economia popular, a administração pública, o patrimônio privado e o meio ambiente;

- inelegibilidade para os que praticarem crimes eleitorais (compra de votos, fraude, falsificação de documento público) e forem condenados à prisão;

- inelegibilidade para quem praticar crime de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à proibição para o exercício da função pública;

- ficam inelegíveis os que praticarem os seguintes crimes: lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; tráfico de entorpecentes e drogas afins; racismo, tortura, terrorismo, crimes hediondos, prática de trabalho escravo; crimes contra a vida e a dignidade sexual; e delitos praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;

- inelegibilidade para os que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidades tipificadas como improbidade administrativa;

- ficam inelegíveis os detentores de cargo na administração pública direta, autárquica ou fundacional que praticarem abuso de poder econômico ou político e se beneficiarem com tal prática ou a terceiros. A inelegibilidade é para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos oito anos seguintes;

- ficam inelegíveis o Presidente da República, Governadores, Prefeitos e Parlamentares que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento da representação ou petição para a abertura de processo por infringência a dispositivo das Constituições Federal e Estadual e as leis orgânicas de estados, municípios e Distrito Federal para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subseqüentes ao término da legislatura;

- inexigibilidade para os que foram condenados por ato de improbidade administrativa que importe em enriquecimento ilícito (art. 9º, da Lei nº 8.429/92) e lesão ao patrimônio público (art. 10, da Lei nº 8.429/92);

- ficam inelegíveis os condenados pelo fato de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade;

- ficam inelegíveis os profissionais que tenham sido excluídos do exercício de suas profissões por decisão administrativa de seus órgãos de classe, em decorrência de infração ética e profissional;

- são inelegíveis os que tenham sido demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial;

- ficam inelegíveis pessoas e dirigentes de empresas responsáveis por doações eleitorais ilegais, e;

- inelegibilidade de magistrados e membros do Ministério Público aposentados compulsoriamente ou que tenham perdido o cargo devido à exoneração após o julgamento do processo administrativo disciplinar.

Como visto, o projeto de Lei nº 58/2010 mitiga o princípio da presunção de inocência para criar um juízo de valor negativo para os casos em que tenha havido a condenação a situações elencados em seus dispositivos legais, por órgão colegiado.


II - DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E SUA ORIGEM HISTÓRICA

O "Antigo Regime" (l’ancien regime) representava a monarquia e o Estado Absoluto, quando o povo era destinatário apenas de deveres, sem garantias ou direitos.

Nessa época da monarquia existiam três classes sociais diferenciadas, que eram a nobreza (classe privilegiada, formada por senhores feudais e rodeava que o rei); o clero (membros da igreja, que também ostentavam privilégios) e a chamada terceira classe (formada por burgueses e comerciantes).

O rei, por sua parte, era considerado o encarregado do governo por concepção divina, devendo seus súditos devotarem fidelidade, veneração e obediência irrestrita.

Dentro desse contexto, o rei como ser superior, poderia concentrar todas as funções estatais, tais como declarar guerra ou paz, enviar para a prisão qualquer pessoa sem processo algum, administrar e governar ("O Estado sou eu"), legislar e até abrandar os efeitos das leis, dentre outros poderes absolutos.

Sobre o tema escreveu Alex Tocqueville: [03] "el poder real ya se habia apoderado, directa o indirectamente, de la direción de todos los asuntos y no tenía en realidad más limites que los de su propria voluntad."

Por tanto, por não possuir direito e nem tampouco garantias individuais, a classe abastada, que formava o povo, era a escória da escória, e por mais que demonstrasse a prática de ato ilícito, prevalecia a vontade do soberano, pois o sistema não era acusatório e sim o da vontade do rei e das castas superiores.

A dominação do homem pelo homem era absoluta e a justiça era a palavra em desuso naquela época, o que gerou uma série de revoltas por parte dos menos afortunados (o povo), até culminar na Revolução Francesa em 1789.

E a Revolução Francesa representou uma mudança vertiginosa dos conceitos do antigo regime ("la loi c’est moi"), para o reino do império da lei (princípio da legalidade).

A soberania não reside mais com o rei e sim com a nação, através do povo. Este é o sentido categórico do artigo 3º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "El princípio de toda soberanía reside esencialmente em la Nación. Ningún cuerpo, ningún individuo puede ejercer autoridad alguna que no emane de ella expressamente."

Na mesma esteira, também é relevante o artigo 6º, do mesmo texto ao dispor que: "La ley es la expresión de la vontad general. Todos los ciudadanos tienen derecho a participar en su elaboración personalmente, o por medio de sus representantes."

Do mesmo modo, e afirmado com o novo ideal de justiça, a Constituição Francesa de 1791 dispõe expressamente que a soberania é uma, indivisível, inalienável e imprescritível; Pertence à nação: nenhuma parte do povo, nem nenhum indivíduo pode atribuir-se seu exercício. (art. 1, inciso III).

Essa vertiginosa alteração trouxe a nova concepção de direitos para o ser humano, que passou a ser dotado de garantias até então inexistentes.

Uma das mais importantes foi estabelecida pela presunção de inocência [04] que se tornou um princípio fundamental para os cidadãos, visto que colocou ponto final no processo penal inquisitivo do Antigo Regime, que então passou a ser acusatório.

Os princípios informadores da presunção de inocência também desde suas origens estão presentes na Constituição e na escrita dos ingleses e se traduzem na garantia de certeza para um veredito condenatório: beyond any reasonable doubt.

Pela Emenda V da Constituição dos Estados Unidos da América se reconheceu o direito a todo cidadão ao due process of law, que, segundo interpretação da Suprema Corte daquele país, pressupõe a presunção de inocência.

Essas influências foram suficientes para que o art. 9º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 se positivasse, de uma vez por todas, preconizado pela necessidade de se estabelecer a presunção de inocência nos seguintes termos: "Tout homme étant présumé innocent jusqu’á ce qu’il ait été déclaré coupable (...)" [05]

A referida Declaração resulta de um triunfo nas lições de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, (dentre outros) que havia afirmado em sua obra publicada em 1764, intitulada "Dei Delitti e delle Pene", a necessidade de se conferir aos acusados direitos e garantias.

Quanto à presunção de inocência, erigida a preceito fundamental do cidadão, assinala o Marquês de Beccaria: [06] "A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode negar-lhe a sua protecção pública, senão quando se decidir que violou os pactos com os quais se outorgou. Qual é, pois, o direito, senão o da força que dá potestas ao juiz para impor uma pena a um cidadão enquanto há dúvidas se é réu ou inocente? Não é novo esse dilema: ou o crime é certo ou incerto. Se certo, não convés que se lhe aplique outra pena diferente daquelas que se encontram previstas na lei, e é inútil a tortura porque inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois ele é, segundo a lei, um homem cujos direitos não estão provados."

Depois da Segunda Grande Guerra Mundial, se produz na Europa a constitucionalização dos direitos fundamentais da pessoa humana e a tutela de garantias mínimas que devem guarnecer todo o processo judicial e administrativo.

A nossa Constituição Federal positivou o princípio da presunção de inocência como elemento essencial em todo ordenamento jurídico, aí incluído o Direito Administrativo.

Dessa maneira, como o estado de inocência gera presunção juris tantum, após o título judicial que absolve o agente público ou político que fora acusado, inclusive pela falta/insuficiência de prova, a aludida presunção se torna um dogma, assumindo a posição de certeza (juris et de jure).

O princípio em questão atingiu o cenário mundial, após a "Declaração Universal dos Direitos do Homem", adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1948, que dispõe em seu artigo XI.1. que "toda persona acusada de un delito tine derecho a que se presuma su inocencia mientras que no pruebe su culpabilidad, conforme a la ley y em juicio publico en la ley en juicio publico em el que se hayan asegurado todas las garantias necesarias para su defesa."

Por sua vez, o "Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos", aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, de 16.l2.1966, estabelece em seu artigo 14.2, que "toda persona acusada de un delito tine derecho a que se presuma su inocência, mientras no se pruebe su culpabilidad conforme la ley."

No mesmo sentido, o "Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais", de 4 de novembro de 1950, dispõe o seu artigo 6.2. que "toda persona acusada de uma infración se presume inocente hasta que su culpabilidad haya sido legalmente declarada."

A presunção de inocência do agente político/cidadão é um elemento fundamental em todo o ordenamento jurídico. Ela somente poderá ser ilidida por robustas provas, produzidas legalmente, após o esgotamento do due process of law, pois do contrário não será lícita a imposição de restrição de direitos, antes do trânsito em julgado de decisão judicial.

Em outras palavras, a presunção de inocência pode ser considerada como uma ficção jurídica (verdade interina), desvendada ou alterada através de válidas provas produzidas em contrário, após o esgotamento do processo.

O ordenamento jurídico repele em absoluto o julgamento político e açodado, que a qualquer custo tenta elidir a presunção de inocência do investigado, pela força do poder e do arbítrio. Tal fato é totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito em que vivemos.

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Como visto, o princípio da presunção de inocência foi um dos atributos constituídos pela Revolução Francesa através do qual não se admite que se presuma a culpa do acusado sem que haja um regular e justo processo, após toda a sua tramitação.

Presta-se esse princípio como um limite à acusação penal ou administrativa, que deve ser provada através de elementos sérios de convicção pelo órgão público, não competindo ao acusado demonstrar a sua inocência, e sim o órgão julgador estatal.

O processo penal ou administrativo passou de inquisitivo para acusatório, erigindo a presunção de inocência em princípio fundamental da ciência do direito, como pressuposto de todas as garantias dos processos acusatórios, sendo vedado atribuir-se condenação parcial o efeito de execução provisória de um juízo negativo para quem quer que seja, antes do esgotamento dos recursos e das instâncias revisoras.

Somente após o esgotamento de todos os recursos é que a condenação provisória se transformará em definitiva, projetando-se seus efeitos jurídicos no título judicial transitado em julgado.

O princípio da presunção de inocência, seguindo Cartas Magnas dos Países Democráticos, vem estabelecido em nossa Constituição no art. 5º, LVII. Funciona esse princípio como uma garantia de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Resta saber se o princípio da presunção de inocência se mitiga, somente sendo aplicado para fins penais, sem projeção para as demais esferas do direito.

A seguir iremos dirimir tal indagação.


III - LEI FICHA LIMPA E O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NA VISÃO DO STF

A redação final do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 58/2010 (Lei Complementar nº 135/2010), sancionado pelo Presidente da República no dia 04.06.2010, alterou a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, e estabelece, de acordo com o § 9º, do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessão e determina outras providências para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

Eis o quadro comparativo da Legislação em vigor e a anterior, para uma melhor reflexão sobre a matéria sub oculis:

Legislação revogada

Lei Complementar 64/90

Projeto Ficha Limpa

Projeto de Lei Complementar 58/10 aprovado

O período de inelegibilidade varia de três a oito anos, dependendo do caso. Também varia a exigência de sentença transitada em julgado e de decisão colegiada.

O período de inelegibilidade é de oito anos para todos os casos previstos (desde que a decisão seja transitada em julgado ou proferida pelo órgão judicial colegiado)

São inelegíveis os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, por tráfico de entorpecentes e crimes eleitorais, pelo prazo de três anos, após o cumprimento da pena.

Ficam inelegíveis os que praticarem crimes dolosos contra a economia popular, a administração pública, o patrimônio privado e o meio ambiente.

 

Ficam inelegíveis os que praticarem crimes eleitorais (compra de votos, fraude, falsificação de documento público) e forem condenados à prisão.

 

Ficam inelegíveis os que praticarem crimes de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à proibição para o exercício da função pública.

 

Ficam inelegíveis os que praticarem os seguintes crimes: lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; tráfico de entorpecentes e drogas afins; racismo; tortura. Terrorismo; crimes hediondos; prática de trabalho escravo; crimes contra a vida e a dignidade sexual; e delitos praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

São inelegíveis os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, saldo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário.

Ficam inelegíveis os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidades configuradas como atos dolosos de improbidade administrativa.

São inelegíveis os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político apurado em processo, com sentença transitada em julgado, para as eleições que se realizarem nos três anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo.

Ficam inelegíveis os detentores de cargo na Administração pública direta, indireta ou fundacional, que praticarem abuso de poder econômico ou político e se beneficiarem com tal prática ou a terceiros. A inelegibilidade é para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos oito anos seguintes.

Como não consta tal proibição na lei, os políticos renunciam ao mandato antes de ser instaurado o processo de cassação evitando, com isso, a inelegiblidade.

Ficam inelegíveis o presidente da República, governadores, prefeitos e parlamentares que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição para abertura de processo pelo fato de infringirem a Constituição e as leis orgânicas de estados, municípios e Distrito Federal para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura.

 

Ficam inelegíveis os que forem condenados por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

De acordo com a lei em vigor, já são proibidas as candidaturas de cônjuges para os cargos de prefeitos, governador e presidente da República. Também são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, os parentes, consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, dos governadores e prefeitos ou de quem os tenha substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.

Ficam inelegíveis os condenados pelo fato de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade.

 

Ficam inelegíveis os que tenham sido excluídos do exercício da profissão por decisão de órgão profissional competente, em decorrência de infração ética e profissional.

 

São inelegíveis os que tenham sido demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial.

 

Ficam inelegíveis pessoas e dirigentes de empresas responsáveis por doações eleitorais ilegais.

 

Ficam inelegíveis magistrados e membros do Ministério Público aposentados compulsoriamente ou que tenham perdido o cargo devido à exoneração por processo administrativo disciplinar.

Como visto, a alteração da Lei Complementar nº 64/90 retirou o trânsito em julgado da condenação como fator de inelegibilidade por parte do candidato condenado por órgão colegiado na prática de ato de improbidade administrativa "dolosa", pelo período de 8 (oito) anos.

A nova redação da Lei Complementar nº 64/1990 retira a necessidade do trânsito em julgado para fins de tornar-se inelegível o candidato a cargo político, condenado por órgão colegiado.

Na prática, se o cidadão ou o agente político for condenado pela prática de ato de improbidade administrativa em primeira instância, e tiver a confirmação do tribunal ad quem estadual ou regional (órgão colegiado), mesmo que o recurso esteja em tramitação no Superior Tribunal de Justiça - STJ ou no Supremo Tribunal Federal - STF, perderá a presunção de inocência, e, dessa forma, será um "ficha suja", antes do trânsito em julgado do decisum.

Nesse sentido, o artigo 2º, da Lei Complementar nº 64, de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações, entre outras:

"(...) e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da penal, pelos crimes:

1.contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

2.contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;

3.contra o meio ambiente e a saúde pública;

4.eleitorais, para os quais a lei colime pena privativa de liberdade;

5.de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;

6.de lavagem ou ocultação de bens, direitos ou valores;

7.de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;

8.de redução à condição análoga à de escravo;

9.contra a vida e a dignidade sexual; e

10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;

f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa e, por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

.......................................................................................

j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

k) o Presidente da República, o Governador do Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subseqüentes ao término da legislatura;

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário;

n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude;

o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário;

p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;

.......................................................................................

§ 4º A inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos e àqueles definidos em lei como de menor potencial, ofensivo, nem aos crimes de ação penal privada."

Por essa nova orientação legislativa, muitas distorções são verificadas. A primeira e mais grave é o afastamento da presunção de inocência, que não se vincula mais ao trânsito em julgado da decisão judicial, bastando para tanto o julgamento de um órgão colegiado para efetivar a inelegibilidade do candidato a um mandato político, pelo período de 8 (oito) anos.

Esse órgão colegiado pode ser da esfera administrativa, caso específico do Tribunal de Contas e órgãos de classe, etc.

Outra situação jurídica gerada na instância administrativa, capaz de tornar inelegível o candidato/agente político pelo prazo de 8 (oito) anos, é quando ele for demitido do serviço público em decorrência de processo disciplinar.

Essa hipótese nos preocupa sobremaneira, pois a instância administrativa disciplinar não é dotada de verdadeira e necessária técnica jurídica, onde leigos (colegiado) julgam a prova, e a autoridade, agente público que ostenta hierarquia mais avançada, julga o caso concreto, adotando o Relatório da Comissão Disciplinar, ou rejeitando-o, em conformidade com a prova carreada ao processo.

A nossa preocupação se volta para uma apuração dos fatos obsoleta e incapaz, na grande maioria dos casos, de expressar a verdade real dos fatos investigados, pois a tramitação do processo e a sua conclusão nem sempre expressam os princípios mais lídimos de direito e de justiça.

As injustiças são tantas que o Poder Judiciário assaz de vezes tem reintegrado os injustiçados servidores condenados administrativamente, com a determinação dos pagamentos e das vantagens atrasadas, como se o mesmo não tivesse sido demitido, através de reintegração ao antigo cargo público.

Da mesma forma, o legislador não é feliz quando penaliza os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário.

Apesar de esses órgãos profissionais serem compostos por ilustres e destacados membros, eleitos diretamente por sua categoria, transformar os efeitos de suas decisões administrativas com o rigor de um julgamento proferido pelo Poder Judiciário, para fins de inelegibilidade, vai trazer muitas injustiças, pois é cediço que, em algumas situações, o julgamento não é técnico, podendo sofrer interesses políticos da hierarquia superior ou influência da opinião pública.

Os operadores do direito que atuam em processos administrativos disciplinares sabem do grande risco que é transformar os efeitos da decisão proferida no PAD numa das causas de inelegibilidade política, pois tal medida agravará em muito as situações jurídicas em que a condenação por si só já é uma grande injustiça.

Os agentes públicos não possuem, em sua grande maioria, o menor preparo jurídico para conduzir um imparcial e justo processo disciplinar.

Transformar sua decisão em uma das caracterizações da "ficha suja" é por demais perigoso para a própria sociedade.

Da mesma forma, assustam-nos os julgamentos que porventura determinem a condenação à suspensão dos direitos políticos, em decisão proferida por órgão colegiado judicial: "por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena."

A nossa flagrante divergência a essa hipótese contemplada pela alteração da Lei Complementar nº 64/1990 cinge-se na impossibilidade de se mitigar o princípio da presunção de inocência, visto que ele é também destinado para todas as pessoas que respondem a ação de improbidade, não se limitando somente à esfera penal.

Portanto, a condenação mantida ou estabelecida pelo órgão colegiado de Tribunal Estadual ou Regional não deve projetar seus efeitos imediatamente, por necessitar do trânsito em julgado para radiar a sua carga condenatória.

Não se defende no presente estudo o agente político ou o cidadão devasso, mas sim a ordem jurídica constitucional, influenciada pelo ideal da Revolução Francesa de que todo homem é inocente até que se prove ao contrário.

E a prova em contrário somente se efetiva quando o Poder Judiciário, em última instância, mantém o estado preliminar ou transitório de condenação.

Inverter-se esse princípio construído em 1789 é temeroso e criará muitas injustiças, através da possível "fabricação" de situações jurídicas, com a finalidade de barrar a candidatura de pessoas inocentes, que sequer deveriam responder aos termos da Lei nº 8.429/92.

Além do mais, em face do princípio Democrático de Direito, que assegura a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, ao acusado ficam garantidos todos os recursos e a utilização de meios capazes de demonstrar sua inocência. Não se afigura como razoável manter uma inelegibilidade antes da conclusão do processo judicial.

Agrava-se a situação quando se constata que os comandos da Lei nº 8.429/92 são demasiadamente abertos e permitem que o intérprete confunda uma pseudo ilegalidade com o ato ímprobo.

A condenação por ato de improbidade administrativa levada a efeito por órgão colegiado estadual ou federal não demonstra a certeza do título, haja vista que tanto o STJ quanto o STF não se cansam de reformar tais decisões, justamente pelo fato de a Lei nº 8.429/92 possibilitar o julgamento equivocado, tendo em vista que o ato ilegal para se transformar em ato ímprobo deve ser precedido de má-fé e de dolo.

Cabe registrar, ainda, por oportuno, que apesar de o art. 14, § 9º, da CF autorizar a Lei Complementar estabelecer situações de inelegibilidade e os prazos de cassação de mandato político, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, não confere poderes para o legislador infraconstitucional invadir os limites elencados na mesma Lei Maior.

O direito fundamental à presunção de inocência restringe-se, quanto à sua incidência, apenas ao domínio processual penal ou, ao contrário, alcança e abrange a atividade do Poder Público em qualquer esfera de sua atuação, impondo-lhe limites inultrapassáveis? Essa é a questão central a ser desvendada.

Para tanto, basta se verificar a evolução constitucional da matéria, para se ter a convicção de que o legislador constitucional sempre se preocupou com a defesa da probidade administrativa.

A CF de 1969, outorgada no auge da repressão militar, estabeleceu, no artigo 151, em sua redação embrionária, regra de manutenção a probidade administrativa (II) e a moralidade para o exercício do mandato levada em consideração a vida pregressa do candidato (IV).

Essa regra da Carta Política de 1969, por sua vez, foi alterada pela EC nº 08/77 que deu ao referido art. 151 a seguinte redação:

"Art. 151 - Lei Complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos nos quais cessará esta, com vista a preservar, considerada a vida pregressa do candidato:

I - o regime democrático;

II - a probidade administrativa;

III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e

IV - a moralidade para o exercício do mandato."

Para regulamentar o citado preceito constitucional (CF/69, artigo 151), foi editada a Lei Complementar nº 05/70, que, dentre as várias hipóteses de inelegibilidade, previu a perda da capacidade eleitoral passiva em decorrência da mera instauração de processo judicial contra qualquer potencial candidato, acusado da prática de determinadas infrações penais. [07]

Para se tornar inelegível, portanto, bastava que fosse recebida uma denúncia criminal, por alegado cometimento de determinados ilícitos penais, em detrimento do princípio da presunção de inocência.

Não resta dúvida que essa cláusula legal provocou, mesmo criada na época de um regime autoritário, amplo debate em torno de sua constitucionalidade.

Apesar de em um primeiro momento ter se dado validade a alteração já declinada, o Tribunal Superior Eleitoral, [08] sob a Relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque, dissentiu da validade dessa alteração legislativa, considerando-a inconstitucional.

Sucede que o Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE nº 86.297/SP, Rel. Min. Thompson Flores, vaticinou pela constitucionalidade da norma legal em questão.

Ainda no regime autoritário, dessa vez sob a égide do Governo do Presidente João Figueiredo, foi promulgada a Lei Complementar nº 42/82, cujo artigo inaugural [09] também violava a presunção de inocência, eis que aceitava a condenação singular contra crime que envolvesse segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública, a Administração Pública e o Patrimônio, dentre outros, "enquanto penalmente reabilitados."

Todavia, o Supremo Tribunal Federal - STF, em 1985, ao decidir o RE nº 99.069/BA, [10] Rel. Min. Oscar Dias Corrêa, rejeitou a validade da Lei Complementar nº 42/82, por entender que a perda da capacidade eleitoral passiva dependeria do trânsito em julgado da condenação, não sendo lícito entender que a mera prolação de uma sentença possuíra o efeito de afastar o estado provisório de inocência.

Em seu voto condutor, o eminente e saudoso Ministro Oscar Corrêa, em curtas porém sólidas palavras, assim averbou:

"Data venia do r. despacho, acolho a alegação do Recorrente e conheço o Recurso.

Não há como querer distinguir entre efeitos da sentença condenatória para fins comuns e para fins especiais, como seriam os da lei de inelegibilidade. Tal distinção - que não se encontra em nenhum texto e não nos cabe criar - não tem razão de ser, tanto mais excepcionada contra o Réu, para agravar-lhe a situação.

Na verdade, quando a lei - qualquer que seja - se refere a condenação, há que entender-se condenação definitiva, transitada em julgado, insuscetível de recurso que a possa desfazer.

Nem se alegue - como fez o r. despacho - que ‘essa interpretação era a que se coadunava com a moralidade do que o art. 151, IV, da Constituição visa preservar’, há que se preservar a moralidade sem que, sob pretexto de defendê-la e resguardá-la, se firam os direitos do cidadão à ampla defesa, à prestação jurisdicional até a decisão definitiva, que o julgue, e condene, ou absolva.

Não preserva a moralidade interpretação que considera condenado quem não o foi, em decisão final irrecorrível. Pelo contrário, a ela se opõe, porque põe em risco a reputação de alguém, que se não pode dizer sujeito a punição, pela prática de qualquer ilícito, senão depois de devida, regular e legalmente condenado, por sentença de que não possa, legalmente recorrer."

Note-se bem, o STF, em julgado histórico, contra os interesses do regime militar, através do RE nº 99069/BA, em 1985, contribuiu para uma melhor democratização do poder dominante.

Não resta dúvida de que com a instauração, em nosso país, de um Estado Democrático de Direito, assim consagrado pela atual Constituição, fortificou-se o círculo de proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, independentemente se são ou não futuros candidatos a um cargo político. Todos os blocos normativos concernentes aos direitos individuais, coletivos, sociais, políticos, e etc., estabelecidos na Constituição Federal, submete o poder, em todas as esferas, ao direito, a fim de que não se projete no texto normativo infraconstitucional, o arbítrio. [11]

Consciente dessa atual proteção dos direitos fundamentais, o ilustre e culto Ministro Eros Grau, em exercício no Tribunal Superior Eleitoral - TSE, na consulta nº 1.621/PB, considerou ilegal o Poder Judiciário, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade, contrário ao disposto no § 9º, do art. 14, da Constituição, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 4/94, se posicionou da seguinte forma:

"(...) A suposição de que o Poder Judiciário possa, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade importaria a substituição da ‘presunção de não-culpabilidade’ consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição (‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal, condenatória’) por uma ‘presunção de culpabilidade’ contemplada em lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser considerada culpada independentemente do transito em julgado de sentença penal condenatória)."

E o Ministro Celso de Mello, em sede jurisdicional, na ADPF 144/DF, [12] pode averbar que o princípio da presunção de inocência não se esvai quando a sentença condenatória criminal é confirmada por um tribunal de segunda instância, visto que a Constituição Federal exige o trânsito em julgado da mesma, verbis:

"Há, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento - insista-se -, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.

Mostra-se importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de Segunda Instância, ainda assim subsistirá em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que não deixa de prevalecer - repita-se - com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República."

Em seguida, no mesmo julgado, o Ministro Celso de Mello, na ADPF 144/DE, espanca qualquer dúvida, quando interpreta o direito fundamental da presunção de inocência como uma garantia que se projeta para todo o ordenamento jurídico, não se limitando apenas à esfera penal, visto que irradia seus efeitos no domínio civil, administrativo ou no âmbito político, litteris:

"Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afastem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral.

Nem se diga que a garantia fundamental da presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.

Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-se para esferas processuais não criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico - ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição -, que se formulam, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado."

Em julgado anterior ao citado, no RE nº 194872/RS, [13] o Ministro Marco Aurélio, em proeminência ao princípio da presunção de inocência, afastou a restrição da capacitação moral de candidato a determinado certame pelo fato do mesmo responder a processo penal.

Ainda em sede de projeção ao princípio da presunção de inocência no direito administrativo, pelo RE nº 482006/MG, [14] o Ministro Ricardo Lewandowski, afastou a incidência do artigo 2º, da Lei Estadual 2.364/61 do Estado de Minas Gerais, que autoriza a redução de vencimentos de servidores públicos processados criminalmente, como se verifica da presente ementa:

"Art. 2º da Lei Estadual 2.364/61 do estado de Minas Gerais, que deu nova redação à Lei Estadual 869/52, autorizando a redução de vencimentos de servidores públicos processados criminalmente. dispositivo não-recepcionado pela constituição de 1988. Afronta aos Princípios da Presunção de Inocência e da Irredutibilidade de vencimentos. Recurso Improvido. I - A redução de vencimentos de servidores públicos processados criminalmente colide com o disposto nos arts. 5º, LVII, e 37, XV, da Constituição, que abrigam, respectivamente, os princípios da presunção de inocência e da irredutibilidade de vencimentos. II - Norma estadual não-recepcionada pela atual Carta Magna, sendo irrelevante a previsão que nela se contém de devolução dos valores descontados em caso de absolvição. III - Impossibilidade de pronunciamento desta Corte sobre a retenção da Gratificação de Estímulo à Produção Individual - GEPI, cuja natureza não foi discutida pelo tribunal a quo, visto implicar vedado exame de normas infraconstitucionais em sede de RE. IV - Recurso extraordinário conhecido em parte e, na parte conhecida, improvido."

Em seu voto âncora, o Ministro Ricardo Lewandowski deixou consignado:

"No que se refere à previsão de redução dos vencimentos, pelo simples fato de os servidores terem sido denunciados e estarem respondendo a processo penal por crise funcional, sem que tenha havido ainda qualquer condenação, entendo que essa previsão legal implica flagrante violação ao princípio da presunção de inocência, consubstanciado no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal.

(...)

Não pode, à evidência, a lei infraconstitucional, excepcionar um princípio constitucional expresso, qual seja, de estatura de presunção de inocência que, ao lado do valor da dignidade humana, corresponde a um dos esteios básicos do capítulo relativo aos direitos e garantias do cidadão. Por essa razão, penso, não pode prevalecer a possibilidade de redução dos vencimentos dos servidores prevista na Lei Estadual 869/52, com a redação dada pela Lei Estadual 2.364/61."

Por outro lado, coube ao Ministro Celso de Mello, no citado RE nº 482.006/MG, rememorar um histórico julgamento do STF, no HC nº 45.232/GB, Rel. Min. Themistocles Cavalcanti em 1967, que também se pronunciara pelo princípio da não-culpabilidade, apesar de não ter cláusula expressa sobre a matéria, como se verifica de seu magistral voto:

"É preciso registrar, também, no plano histórico, que esta Suprema Corte, já sob a égide da Carta Federal de 1967 - que não continha a proclamação explícita da presunção de não-culpabilidade-, reconheceu, no entanto, com apoio no art. 150, § 35, desse mesmo estatuto fundamental, e ainda que por implicitude, a existência (que reputou imanente ao próprio sistema constitucional) dessa cláusula tutelar dos direitos e garantias individuais (HC 45.232/GB, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, RTJ 44/322), pronunciando-se no sentido da inconstitucionalidade de diploma legislativo (DL 314/67, art. 48) que permitia, ante da formulação de qualquer juízo condenatório definitivo e irrecorrível, a suspensão do exercício de profissão e do emprego em entidade privada."

Tem-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal mantém firme a garantia do efeito irradiante da presunção de inocência para todo o ordenamento jurídico, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, como resulta dos julgamentos que foram mencionados.

A preservação da integridade de um princípio fundamental é dever de todos os órgãos julgadores, incluídos nesse contexto os administrativos, visto que ele não pode ser transgredido por atos legislativos ou estatais, mormente quando eles, prematuramente, vinculem medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, tratando-as como se as mesmas fossem "fichas sujas" para fins de inscrição eleitoral, pelo fato de as mesmas terem sido condenadas interinamente por órgão colegiado, antes de que haja o trânsito em julgado de suas decisões.

Tratando-as, indevidamente como se culpadas fossem, o Poder Público arbitrariamente transforma o juízo de suspeita em culpabilidade, antecipando os efeitos de uma decisão que pode ser revista pela instância superior e, portanto, não projetará os efeitos jurídicos em coisa julgada no futuro.

Com a proclamação do art. 5º, LVII, como direito fundamental, não há como admitir-se que ocorra a inversão do princípio da presunção de inocência pela alteração da Lei Complementar nº 64/1990.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. O princípio da presunção de inocência e a inconstitucionalidade de sua mitigação para fins de registro de candidaturas políticas ("Ficha Limpa"). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2609, 23 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17233. Acesso em: 19 dez. 2024.

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