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Discussão em torno do cabimento da liberdade provisória em crimes de tráfico ilícito de entorpecentes

21/08/2010 às 07:37
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RESUMO

O presente estudo aborda aspectos controvertidos sobre o instituto da liberdade provisória, versando sobre questões da sua aplicabilidade no crime de tráfico ilícito de entorpecentes, suas hipóteses de aplicação e, sobretudo, sua legitimidade constitucional. Serão apresentados um breve conceito e as características principais que envolvem o cabimento do instituto no tipo penal.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade provisória; fiança; tráfico ilícito entorpecentes; vedação de concessão, cabimento.

SUMÁRIO: 1 – Considerações iniciais; 2- Cabimento da Liberdade Provisória; 3- Cabimento no Tráfico Ilícito de Entorpecentes; 4 – Considerações Finais; Referências Bibliográficas.


1- Considerações Iniciais

No presente artigo, pretendemos fixar o verdadeiro sentido e a real possibilidade do instituto da liberdade provisória em tráfico ilícito de entorpecentes. Com este propósito, pesquisamos o fundamento, o conceito, os pressupostos e a natureza jurídica da liberdade provisória, bem como sua incompatibilidade com determinadas prisões e providências cautelares.

Trabalhar com a soltura do preso cautelar é dos temas mais ricos, porque se de um lado temos, historicamente, a legislação trazendo um vasto "cardápio" de prisões cautelares, como o flagrante, a prisão preventiva, a prisão temporária, que é de duvidosa constitucionalidade, do outro lado, numa verdadeira dicotomia, precisávamos ter uma expressão de atuação em prol da defesa, acima de tudo, para buscar na legislação as ferramentas para combater aridamente as prisões cautelares. É neste sentido que trata a liberdade provisória.

A liberdade provisória encontra-se prevista na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 5º, LXVI, da Constituição Federal – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Art. 310, do Código de Processo Penal – Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único – Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).

É, em verdade, uma contra-cautela, que substitui a prisão provisória com ou sem fiança. Diz-se contra-cautela, pois a cautela é a prisão, logo, a liberdade provisória é uma contraposição, cujo antecedente lógico é a prisão cautelar.

Antes de se adentrar nos aspectos próprios do tema em pauta, importante destacar que não se confundem os institutos da liberdade provisória, revogação de prisão preventiva e o relaxamento da prisão em flagrante.

Para FREDERICO MARQUES, a liberdade provisória é disciplinada pelo Código de Processo Penal como "...medida de caráter cautelar em prol da liberdade pessoal do réu ou do indiciado, no curso do procedimento, (...) para fazer cessar prisão legal do acusado ou para impedir a detenção deste em casos em que o cacer ad custodiam é permitido" [01]·.

Já TORNAGHI apresenta um conceito bem peculiar:

A liberdade provisória é uma situação do acusado; situação paradoxal em que ele é, ao mesmo tempo, livre e vinculado. Livre de locomover-se, mas vinculado a certas obrigações que o prendem ao processo, ao juízo e, eventualmente, a um lugar predeterminado pelo juiz.


2. Cabimento da Liberdade Provisória

A Constituição Federal de 1988 vedou em seu artigo 5º, inciso XLII, apenas a concessão de liberdade com fiança, silenciando no que se refere à modalidade sub cogitatione. Não vedou, portanto, a liberdade provisória sem a prestação da fiança, no entanto, quem tratou desta vedação foi a Lei Ordinária 8.072/90, que trata dos Crimes Hediondos.

Em 1995, foi promulgada a Lei 9.455 que inovou na matéria, ao não vedar a liberdade provisória no crime de tortura, o qual, como é cediço, é crime equiparado aos hediondos, portanto inafiançável, iniciando a controvérsia.

Devido aos crimes hediondos e assemelhados não comportarem nenhum tipo de liberdade provisória, tivemos no meio da década de 90 uma situação de perplexidade; não comportavam a fiança porque a Constituição Federal já a vedava, e, do mesmo modo, não comportavam a liberdade provisória sem fiança pelo texto da Lei de Crimes Hediondos.

Como se não bastasse, contraditoriamente, a tortura, e somente ela, passou a comportar a liberdade provisória sem fiança, pois a lei especial 9.455/95 não a vedou, limitou-se apenas a reproduzir o texto da Constituição Federal dizendo ser crime inafiançável.

Isso foi tão contundente que a jurisprudência teve que se manifestar para dizer que o privilégio da tortura não era extensíveis aos demais crimes hediondos e assemelhados, o que é uma falta de proporcionalidade manifesta. Tortura comportaria liberdade provisória sem fiança, mas um estupro, um atentado violento ao pudor, um homicídio qualificado não a comportariam.

Essa discussão teria chegado ao seu fim no ano de 2007, quando a Lei de Crimes Hediondos foi alterada com a revogação de seu artigo 2º, que dispunha sobre a vedação à liberdade provisória sem fiança, de modo que os crimes hediondos e equiparados, todos eles passaram a comportar liberdade provisória sem fiança, a despeito da vedação constitucional já mencionada.

Ao que se infere, foi o desejo do nosso legislador, movido pelo precedente criado pelo Supremo Tribunal Federal, em que admitia liberdade provisória sem fiança para estes crimes, possibilitar a efetivação de tal benesse. Consequentemente, a lei foi alterada com a supressão da vedação da liberdade provisória sem fiança para os crimes hediondos.


3. Cabimento no crime de tráfico ilícito de entorpecentes

Dito isso, o Crime de Tráfico de Drogas comporta liberdade provisória sem fiança?

O crime de tráfico de drogas é previsto em Lei Especial (Lei 11.343/2006), sendo que a alteração dos crimes hediondos é do ano de 2007, restando a dúvida se a Lei Geral revogou a Lei Especial, ou todos os crimes hediondos e assemelhados comportariam a liberdade provisória sem fiança, sendo o tráfico o único que não se enquadraria neste item.

Conforme posicionamento do Ilustre Professor Nestor Távora, esta discussão era totalmente infrutífera, pois o que se precisa levantar nesta situação é a questão da razoabilidade: "precisamos interpretar o direito à luz da razoabilidade necessária, e se todos os crimes hediondos e assemelhados comportam liberdade provisória sem fiança não é admissível que só o tráfico de drogas não comporte" [02]. Se o estupro e o homicídio qualificado comportavam a liberdade provisória sem fiança o tráfico também tem que comportar.

Se analisarmos o desejo da Lei 11.343/06, ela trouxe para os traficantes de droga um tratamento pior, aumentando a pena, e para o usuário de substância entorpecente, praticamente descriminalizou a conduta, tipificando a conduta do usuário como prática de crime de menor potencial ofensivo, indo se submeter a admoestação verbal, a prestação de serviços comunitários ou a tratamento médico visando sua recuperação.

Pondo um fim à questão, o Superior Tribunal de Justiça, apesar de não haver pacificidade jurisprudencial, construiu a decisão dizendo que quanto ao tráfico de drogas esta discussão é inglória porque a vedação da liberdade provisória para este crime decorre da própria Constituição Federal, já que ela afirma ser o trafico crime inafiançável; indiretamente, o crime não comportaria liberdade provisória sem fiança, o que deixou as razões do acórdão extensíveis para os demais crimes hediondos.

Com esta jurisprudência consideramos que a alteração legislativa não obteve resultado algum. Ora, o Congresso Nacional retira da Lei dos crimes hediondos a vedação a liberdade provisória sem fiança e depois vem o STJ e diz que esta vedação é decorrente da Constituição Federal; estará então afirmando que os crimes hediondos e assemelhados, todos eles, não comportam nenhum tipo de liberdade provisória. Logo depois, o Supremo Tribunal Federal decidiu no mesmo sentido, porém, há de se destacar que os Tribunais Superiores têm sido vacilantes nesta matéria, ora admitindo, ora negando a liberdade provisória aos crimes hediondos e assemelhados.

Queremos crer que a liberdade provisória sem fiança é cabível a todos os crimes hediondos e a todos os crimes assemelhados, inclusive ao tráfico de drogas, em uma interpretação literal, invocando para isso o princípio da proporcionalidade. Senão, teria o Congresso Nacional simplesmente efetivado uma alteração legislativa desarrazoada.

No entanto, na sessão do dia 13 de março de 2009, o Ministro Celso de Mello ordenou, em caráter liminar, a soltura de uma mulher acusada de tráfico ilícito de drogas. A decisão foi dada no Habeas Corpus nº. 97976.

O fundamento da prisão de M.C.P.R., ordenada pelo juiz da Segunda Vara Criminal da comarca, havia sido exatamente o art. 44 da Lei nº. 11.343/06. Segundo o Ministro, ao obrigar a prisão do traficante, a Lei nº. 11.343/06 ofende a razoabilidade, que seria uma condição necessária no momento da elaboração das leis. "Como se sabe, a exigência da razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo", comentou. "O poder público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade", frisou o Ministro na decisão. Por fim, salientou que "o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal", o que, em outras palavras, significa dizer, que compete ao Judiciário verificar as circunstâncias peculiares de cada caso e decidir pela prisão preventiva ou não do acusado (Fonte: STF).

Neste mesmo sentido, em julgamento recente:

HC 100745 / SC - SANTA CATARINA

HABEAS CORPUS

Relator (a): Min. EROS GRAU

Julgamento: 09/03/2010

Órgão Julgador: Segunda Turma

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL, PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. SEGREGAÇÃO CAUTELAR. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA. LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDA COM FUNDAMENTO NO ART. 44 DA LEI N. 11.343. INCONSTITUCIONALIDADE: NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DESSE PRECEITO AOS ARTIGOS 1º, INCISO III, E 5º, INCISOS LIV E LVII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. EXCEÇÃO À SÚMULA N. 691/STF.

1.(omissis)

2. Entendimento respaldado na inafiançabilidade do crime de tráfico de entorpecentes, estabelecida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana.

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3. (omissis)

4. A inafiançabilidade não pode e não deve --- considerados os princípios da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa e do devido processo legal --- constituir causa impeditiva da liberdade provisória.

5. Não se nega a acentuada nocividade da conduta do traficante de entorpecentes. Nocividade aferível pelos malefícios provocados no que concerne à saúde pública, exposta a sociedade a danos concretos e a riscos iminentes. Não obstante, a regra consagrada no ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade; a prisão, a exceção. A regra cede a ela em situações marcadas pela demonstração cabal da necessidade da segregação ante tempus. Impõe-se, porém ao Juiz o dever de explicitar as razões pelas quais alguém deva ser preso ou mantido preso cautelarmente.

6. Situação de flagrante constrangimento ilegal a ensejar exceção à Súmula n. 691/STF. Ordem concedida a fim de que o paciente seja posto em liberdade, se por al não estiver preso.(grifos nossos)

A matéria ainda não esta pacificada no Supremo Tribunal Federal, porém, entendemos absolutamente acertada esta última decisão e esperamos que, no mérito, seja mantida e passe a ser um importante precedente na própria Suprema Corte.

Finalizando, trazemos à baila a lição de Renato Flávio Marcão:

"É indiscutível o cabimento, em tese, de liberdade provisória, sem fiança, em se tratando de crime de tráfico de drogas e delitos equiparados, previstos na Nova Lei de Tóxicos. A opção legislativa neste sentido restou clara."

Neste sentido:

"Presumir que o crime, por ser inafiançável, tem prisão processual autorizada até prova em contrário, é vilipendiar o princípio da presunção de inocência, mesmo para aqueles que encaram tal axioma apenas como princípio da não-culpabilidade. É inverter o sistema. Destaque-se que, nos termos do parágrafo único do art. 310, só se mantém a prisão em flagrante, negando-se a liberdade provisória, naqueles casos em que, se o preso estivesse solto, seria decretada sua preventiva. Este dispositivo, com essa interpretação, em tudo e por tudo, respeita as normas constitucionais referentes à liberdade." [03]

Manter a prisão em flagrante pelo simples fato de o crime ser inafiançável agride também os artigos 5º, LXI e 93, IX, da Carta Magna, que condicionam as decisões que retirem a liberdade dos indivíduos à estrita fundamentação.

Veja-se, com relação à prisão, a Constituição Federal não se satisfez com a regra geral de que as decisões judiciais têm que ser motivadas, mas ascendeu à categoria de direito individual a necessidade de fundamentação das decisões constritivas da liberdade. Daí deriva que a decisão mantendo a prisão em flagrante não pode simplesmente adotar como fundamentação, como entende alguns Tribunais, o fato de não ter o preso comprovado à desnecessidade da prisão ou a presunção da necessidade dela. Isso seria por vias transversas, não fundamentar.

Neste sentido, ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ob. cit., p. 81 e também, do mesmo autor, "A Motivação das Decisões Penais", São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 226 e ss.


4. Considerações finais

A Constituição Federal consagra o princípio da presunção da inocência, dispondo em seu artigo 5º que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Por conseguinte, enquanto não transitar em julgado a sentença que condenou o réu, será presumido inocente.

É imperioso que se possa diferenciar a moralidade subjetiva da objetiva; esta, que se respalda e se ampara nos ditames da lei, enquanto aquela em preceitos sociais individuais. É certo que para leigos, a moral subjetiva condena não só o traficante como também o Advogado que o defende, porém, há de se elencar que a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório é direito de qualquer cidadão, mesmo tendo cometido uma infração penal.

O que se tentou no presente artigo não foi abrandar ou proteger o crime de tráfico ilícito de entorpecentes ou o traficante em si; é certo que tal crime não atinge uma única vítima, mas sim a sociedade como um todo, entretanto, o que esperamos, é que se possa chegar a um verdadeiro e concreto Estado Democrático e Social de Direito onde a teoria e a prática se coadunem para trazer à realidade o que a Constituição fez questão de assegurar.


Referências Bibliográficas

ARANHA, Alberto José. Da Prova no Direito Penal, 5ª edição – 2006- Saraiva.

CARVALHO, Lívia. Apostila de Processo Penal II - 2007

FREITAS, Jayme Walmer de. Crimes hediondos: uma visão global e atual a partir da Lei 11.464/07. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 06.09.2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado – 9 ª edição 2008-Editora RT- Revista dos Tribunais.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal - 26ª Edição - Vol. 3 - Editora: Saraiva Jur. Cursos - 2009

TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 2009- 1ª edição, Ed. Jus Podivm

FIRMINO, Nelson Flávio, em Prisão em Flagrante – Aspectos Constitucionais Relevantes. Disponível na internet no sítio:

http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&coddou=3626

www.aulaseprovas.org

http://www.tvjustica.gov.br

www.stf.gov.br

www.stj.gov.br


Notas

  1. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, p. 119.
  2. TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. p.78
  3. FIRMINO, Nelson Flávio, em Prisão em Flagrante – Aspectos Constitucionais Relevantes, http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&coddou=3626
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Sobre o autor
Paulo Ricardo da Silva Gomes

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Paulo Ricardo Silva. Discussão em torno do cabimento da liberdade provisória em crimes de tráfico ilícito de entorpecentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2607, 21 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17239. Acesso em: 18 dez. 2024.

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