A PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS SOBRE ATOS PRETÉRITOS EM FACE DE LEI MAIS BENÉFICA PARA O CONTRIBUINTE
O inciso II do art. 106 do Código Tributário Nacional versa acerca das possibilidades de consecução pretérita de efeitos jurídicos em face de uma lei mais benéfica para o contribuinte, conforme depreendemos de sua leitura, a qual traz o seguinte comando: "A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: (...) II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática."
O referido inciso não tem o escopo de se referir ao tributo em si mesmo, mas às infrações e penalidades decorrentes do comando legal. São situações elencadas de forma taxativa, isto é, aplicam-se apenas aos fatos relacionados nas alíneas do supracitado inciso II, do art. 106 do CTN.
Assim preleciona Eduardo Sabbag acerca das três hipóteses mencionadas:
a)se a conduta não mais for tida como infração: (...) nesse sentido, segue Luciano Amaro, para quem, ‘se a lei nova não mais pune certo ato, que deixou de ser considerado infração, ela retroage em benefício do acusado, eximindo-o de pena’;
b)se a conduta não mais se opuser a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulenta e não tenha implicado falta de pagamento do tributo;
c)se tiver havido a inflição de penalidade menos severa do que a que foi imposta pela lei vigente ao tempo da prática da conduta antijurídica – e só neste caso, próprio da benignidade: observe que a temática envolve a multa menos gravosa. Caso a lei posterior traga uma sanção mais rígida, não haverá que se falar em retroatividade. [26]
Ressalte-se que as hipóteses contidas nas alíneas ‘a’ e ‘b’ são redundantes, não havendo, portanto, como fugir de sua incidência, ou seja, restando qualquer tipo de dúvida acerca da aplicabilidade da alínea ‘b’, prevalecerá o comando constante da alínea ‘a’, esta mais ampla e abrangente que aquela. Assim, explana o professor Paulo de Barros Carvalho, in verbis
"Toda a exigência de ação ou de omissão consubstancia um dever, e todo o descumprimento de dever é uma infração, de modo que foi redundante o legislador ao separar as duas hipóteses." [27]
Entrementes, Ricardo Alexandre, contrariamente entende que há sim diferenças entre o comando contido na alínea ‘b’ em face do que dispõe a alínea ‘a’, pois segundo seu raciocínio
"(...) o fato de a alíenea ‘b’ exigir que o ato não seja fraudulento e não tinha implicado falta de pagamento de tributo aponta no sentido de que o dispositivo se refere exclusivamente às obrigações ditas acessórias (que não têm conteúdo pecuniário), de forma que a alínea ‘a’ seria aplicável às infrações relativas às obrigações principais (com conteúdo pecuniário)." [28]
No tocante à alínea ‘c’ do referido inciso II do art. 106 do CTN, Eduardo Sabbag entende estar nele contido o Princípio da Benignidade, ou seja, a edição de
"(...) uma lei contemporânea do lançamento poderá elidir os efeitos da lei vigente na época do fato gerador, caso esta, em tempos remotos, houvesse estabelecido um percentual de multa superior ao previsto naquela, em tempos recentes. (...)." [29]
Todavia, deve-se ter em mente a existência de um limite lógico à retroação da referida alínea ‘c’, ou seja, somente quando não tenha sido recolhida a multa é que poderá se falar em retroação da norma. Grosso modo, tendo o fato deixado de ser considerado como infração tributária a multa anteriormente aplicada, não poderá mais ser cobrada. No entanto, se já tiver sido recolhida, não será restituída, pois já se exauriu.
Outro ponto importante que deve ser observado é que, para a aplicação dos efeitos pretéritos contidos no inciso II do art. 106 do CTN, é imprescindível que o ato não tenha sido julgado definitivamente.
Julgado definitivamente, seja no âmbito administrativo, seja na seara judicial? Não se trata de entendimento pacífico.
Zelmo Denari, referenciado por Eduardo Sabbag, entende que
"(...) o ato não definitivamente julgado é aquele que não possui decisão final prolatada pelo Poder Judiciário. Assim, (...) se a decisão administrativa ainda pode ser submetida ao crivo do Judiciário, e para este houve recurso do contribuinte, não há de ser ter o ato administrativo ainda como definitivamente julgado." [30]
Em sentido oposto, conforme se pode aferir da jurisprudência emanada do STJ em sede de REsp nº. 187.051/SP, sob a lavra do Ministro Ari Pargendler, julgado em 15.10.1998, transcrito in verbis
EMENTA: TRIBUTÁRIO. MULTA. REDUÇÃO. LEI MAIS BENIGNA. A expressão "ato não definitivamente julgado", constante do artigo 106, II, ‘c’, alcança o âmbito administrativo e também o judicial; constitui portanto, ato não definitivamente julgado o lançamento fiscal impugnado por meio de embargos do devedor em execução fiscal. (...).
Corroborando o exposto, Aliomar Baleeiro, referenciado por Leandro Paulsen, assevera que "a disposição não o diz, mas, pela própria natureza dela há-se entender-se como compreensiva do julgamento tanto administrativo quanto judicial." [31]
Assim, transitando em julgado uma decisão judicial, a retroação não se operará, ainda que haja a edição superveniente de lei que preveja multa mais benéfica.
Também se deve ressaltar que o Estado não é detentor de garantia constitucional da irretroatividade das leis, só se operando esta em favor da proteção do particular contra o Estado. Tal situação se dá em razão de, conforme preleciona Hugo de Brito Machado, o Estado não poder "valer-se de seu poder de legislar para alterar, em seu benefício, relações jurídicas já existentes." [32]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
DA ROSA JR, Luiz Emygdio F. Direito Financeiro & Direito Tributário – Jurisprudência atualizada. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
LIMA, Thiago Figueiredo de. Retroatividade da lei tributária interpretativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1608, 26 nov. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10698>. Acesso em: 24 abr. 2010.
GUSMÃO, Camila Uliana de. Aplicação e vigência da Legislação Tributária. FGV – Direito Rio. Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/Vig%C3%AAncia_e_Aplica%C3%A7%C3%A3o_da_Lei_Tribut%C3%A1ria>. Acesso em: 24 abr. 2010.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
____. Repertório de Jurisprudência de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Premier Máxima, 2008.
SÁVIO, Camila Gomes. Breves comentários sobre os princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 260, 24 mar. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4989>. Acesso em: 24 abr. 2010.
Notas
Em que pese, o ordenamento jurídico pátrio desconhecer uma definição acerca da expressão "direito adquirido", podemos trazer a baila o entendimento esposado pelo professor Alexandre de Moraes, que citando o eminente Celso Bastos, preleciona ser este um "dos recursos de que se vale a Constituição para limitar a retroatividade da lei. (...) esta (...) em constante mutação; o Estado cumpre o seu papel na medida em que atualiza as suas leis. (...) entretanto, a utilização da lei em caráter retroativo, em muitos casos, repugna porque fere situações jurídicas que já tinham por consolidadas no tempo (...)." (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 75).
- Art. 3º da CF/88: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
- Art. 5º da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVI- a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
- "A segurança jurídica pode ser representada a partir de duas perspectivas: I- o cidadão deve saber antecipadamente qual norma é vigente, o que sinaliza a lógica precedência da norma perante o fato por ela regulamentado, no contexto da irretroatividade, e o antecipado conhecimento do plano eficacial da lei, no bojo da anterioridade. Assim, a segurança jurídica toma a irretroatividade e a anterioridade como seus planos dimensionais, primando pela possibilidade de o destinatário da norma se valer de um prévio cálculo, independentemente, pelo menos, de início, do conteúdo da lei; II- o cidadão deve, em um segundo momento, compreender o conteúdo da norma, no que tange à sua clareza, calculabilidade e controlabilidade." (SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 184).
- CARRAZZA, Roque Antonio. In: SÁVIO, Camila Gomes. Breves comentários sobre os princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária. p. 1.
- AMARO, Luciano. In: SABBAG, Eduardo. Manuel de Direito Tributário. p. 182.
- CARRAZZA, Roque Antonio. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 183.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 183.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 184.
- COELHO, Sacha Calmon Navarro. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 185.
- PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. p. 210.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 186.
- ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. p. 236.
- PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 847.
- "Os estudiosos da hermenêutica jurídica classificam a interpretação quanto à fonte em administrativa (feita pelas autoridades administrativas na aplicação da norma aos casos concretos), doutrinária (feita pelos estudiosos do direito), jurisprudencial (adotada reiteradamente pelos órgãos judiciários, nos processos que lhe são submetidos) e a autêntica (emanada do mesmo órgão responsável pela elaboração da norma interpretada)." (ALEXANDRE, Ricardo. Op. Cit. p. 236.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 189.
- DA ROSA JR, Luiz Emygdio F. Direito Financeiro & Direito Tributário. p. 436.
- CARRAZZA, Roque Antonio. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 187.
- VELLOSO, Carlos Mário da Silva. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 187-188.
- AMARO, Luciano. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 188.
- NOGUEIRA, Ruy Barbosa. In: PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 848.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 189.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 191.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. p. 94.
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. p. 100.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 192.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 198.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p. 95.
- ALEXANDRE, Ricardo. Op. Cit. p. 242.
- SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 198.
- DENARI, Zelmo. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 202.
- BALEEIRO, Aliomar. In: PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 849.
- MACHADO, Hugo de Brito. Op. Cit. p. 101.