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Os órgãos de julgamento administrativo do contencioso tributário no Brasil

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27/08/2010 às 07:13
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Mesmo sendo a função jurisdicional atributo do Judiciário, a Constituição possibilita que no âmbito do Executivo haja uma quase-jurisdição capaz de fazer coisa julgada formal nas decisões contrárias à Administração.

RESUMO

Os órgãos de julgamento do contencioso administrativo tributário são garantia adicional que o Estado oferece ao contribuinte na solução das lides tributárias e funcionam para autocontrole dos seus atos, com vantagens para as partes, diminuindo, por conseqüência, a litigiosidade tributária no âmbito do Poder Judiciário.

Mesmo sendo a função jurisdicional atributo do Judiciário, a Constituição ordena que o processo administrativo tributário se desenvolva dentro do devido processo legal e com as garantias que lhe são próprias, possibilitando que, no âmbito do Executivo ocorra uma quase-jurisdição capaz de fazer coisa julgada formal nas decisões contrárias à Administração. Do ponto de vista material, os órgãos de lançamento e de julgamento são imparciais órgãos de justiça em razão de o objetivo comum de atuação ser uma aplicação vinculada da lei, mas a imparcialidade se acentua no órgão judicante em virtude do estabelecimento da imparcialidade orgânica que o distancia, não vincula nem permite relação de hierarquia com o órgão de lançamento.

Citam-se expressivas causas de litigiosidade tributária, destacando que, no Brasil, a economia submergida e a sonegação fiscal são as mais importantes causas dos litígios tributários.

Destaca as vantagens da discussão tributária no âmbito administrativo e conclui que a credibilidade dos seus órgãos judicantes decorre da prática imparcial e isenta. Para tanto, ao menos duas condições se impõe: Primeiro: para desenvolver suas atribuições, o julgador deve ser consciente dos princípios que pautam a atividade judicante e esteja preparado para decidir pautado na livre formação do convencimento mediante estrita obediência à ordem legal. Segundo: a prática imparcial e isenta dos órgãos judicantes deve ser promovida pela Administração sob a égide dos princípios constitucionais, sem se permitir atuar com inapropriadas interferências no funcionamento objetivo desses órgãos.

Palavras chaves: Brasil – contencioso administrativo tributário – órgãos


ABSTRACT

The judgment agencies of the tax administrative litigation are additional assurance that the State gives the taxpayer in settlement of lawsuits and work for the self-control of their acts with advantages for the parties, reducing consequently the tax litigation in the Judicial Branch.

Even though it is an attribute of the Judicial Branch, the Constitution stipulate that the administrative tax process develops within the due legal process and with the guarantees of its own, allowing under the Executive the existence of a quasi-jurisdiction capable of res judicata formal in decisions against the Administration. From the material standpoint, the inspection and judgment agencies are impartial justice agencies because the common objective of an enforcement action is bound by law, but the fairness increases in the adjudicative body under the establishment of organic impartiality that distances it and does not bind nor permit hierarchy relation with the inspection agency.

Many causes of tax litigation could be mentioned noting that in Brazil the informal economy and tax evasion are the most important causes of tax litigation.

This article highlights the benefits of the tax discussion in the administrative and concludes that the credibility of their adjudicative agencies derives from impartial and unbiased practice. To do it so at least two conditions are imposed: First, in his role the judge should be mindful of the principles that guide the adjudicative activity and be prepared to rule guided by the free formation of persuasion through the strict obedience to lawful order. Secondly, the impartial practice of free and adjudicative agencies must be safeguarded and promoted by the Administration under the aegis of constitutional principles without allowing himself to act with inappropriate interference in the operation of these agencies.

Key words: Brazil - administrative litigation tax - agencies


I. A natureza dos órgãos de julgamento administrativo do contencioso tributário.

Em matéria tributária, a existência dos órgãos administrativos em que o contribuinte discute exigência fiscal, é um dos mais importantes avanços do Estado Democrático de Direito para defesa e garantia de seus direitos fundamentais. Isto porque vinculada como está ao princípio do Estado de Direito, e à regra da legalidade, a Administração Pública pode e deve rever seus próprios atos, sempre que estes estiverem maculados por erro ou ilegalidade, no exercício do que a doutrina chama de autocontrole da Administração Pública.

Este autocontrole é exercido através do processo administrativo que exprime a idéia de que os mecanismos de controle da legalidade dos atos administrativos devem obedecer a um princípio de jurisdicionalização tendo em vista que esse processo se desenvolve na mesma forma que nos tribunais, ressalvadas as especificidades decorrentes da natureza indispensável dos direitos em presença, seja da natureza não independente do órgão de julgamento por ser integrado na Administração, mas pressupondo a imparcialidade do órgão judicante.

No caso brasileiro, esta jurisdicionalização está albergada no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, ao dizer que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

O direito de defesa e contraditório processual são manifestações do princípio do "devido processo legal" cunhado na Constituição dos Estados Unidos, consagrado nos Estados Democráticos de Direito, inspirando o constituinte brasileiro para registrar que, no Brasil atual, ninguém poderá ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CF, inciso LIV do art. 5º).

Por sua vez, o direito de ampla defesa hoje se reveste pela natureza de um direito de audiência, no sentido de que qualquer ato administrativo suscetível de produzir conseqüências desfavoráveis para o administrado não poderá ser praticado de modo definitivo sem que a este tenha sido dada a oportunidade de apresentar fatos e provas que achar convenientes à defesa de seus interesses.

À diferencia dos sistemas existentes em alguns países europeus em que a jurisdição plena não é exclusividade do Poder Judiciário, sendo esta compartilhada e caracterizada pelo fato de as questões relativas à Administração Pública, em especial, as tributárias, serem reservadas à apreciação do Poder Executivo [01], em nosso país vigora uma reserva absoluta de jurisdição dos órgãos do Poder Judiciário, uma vez que o Direito brasileiro é regido pelo "princípio da universalidade da jurisdição", "princípio da garantia jurisdicional" ou "sistema de jurisdição única", de cuja apreciação não pode ser excluída qualquer lesão ou ameaça de lesão de direito individual, ainda que tal lesão ou ameaça seja decorrente de ato da Administração (Inciso XXXVI do art. 5º, CF). Entretanto, isto não significa que a justiça, em especial a tributária, seja apenas concretada pelo Poder Judiciário, pois, ao abrigo da atual Constituição vigora um sistema de autocontrole optativo e não cumulativo segundo o qual o contribuinte pode livremente escolher entre a impugnação administrativa e a impugnação judicial do lançamento tributário visando a certeza do lançamento e garantia dos seus direitos, não o impedindo de, a qualquer tempo, esgotada ou não a instância administrativa, levar a demanda ao Judiciário.

Isto se aponta porque nos Estados modernos as fronteiras entre as funções típicas do Estado, da estrutura trifuncional de separação dos poderes, vem se estreitando em benefício do Poder Executivo, a quem têm sido confiadas funções materialmente legislativas e jurisdicionais, e isso, necessariamente, não deve ser visto negativamente desde que essa atuação se faça em obediência aos princípios e preceitos constitucionais do Estado Democrático de Direito. Neste caso, as funções jurisdicionais que o Poder Executivo assume não podem ser vistas como uma distorção, uma invasão de competência própria do Poder Judiciário, mas antes como uma garantia adicional que o Estado moderno oferece ao cidadão nas suas relações com a Administração Publica.

Modernamente, as funções do Estado não são divididas entre os "Três Poderes" de forma absoluta e estanque, mas de modo precípuo e não exclusivo. O Poder Judiciário tem por função preponderante julgar, mas também administra e edita normas. O Poder Legislativo preponderantemente edita normas, mas também administra, e também julga e o Poder Executivo que tem como função precípua a administração da coisa pública, também edita normas e também julga.

No caso dos julgamentos na esfera administrativa no Brasil, estes ocorrem no âmbito dos processos administrativos, por meio dos quais exerce de modo atípico a função julgadora. Como não se trata de um julgamento com todas as características do proferido no âmbito do Poder Judiciário detentor único da função jurisdicional propriamente dita, o Executivo assim exerce atividade que tem apenas uma "feição" jurisdicional, mas de grande mérito social para o equilíbrio das relações entre os cidadãos e o Estado, já que o processo administrativo embora obedeça a princípios específicos, se desenvolve à semelhança do processo judicial, ou seja, dentro de um núcleo comum de princípios constitucionais processuais. Convém destacar dentre os princípios específicos afetos ao processo administrativo, os da utilidade do processo administrativo, o da não-submissão do órgão julgador ao poder hierárquico, o da verdade material e o da oficialidade.

Analogamente ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional presente no âmbito do processo judicial, o princípio da utilidade do processo administrativo funciona dizendo que não se pode admitir que, antes de concluído o processo, uma das partes envolvida sofra dano de tal ordem que a decisão a ser proferida perca a sua finalidade.

O princípio da não-submissão do órgão julgador ao poder hierárquico garante que a autoridade julgadora administrativa esteja adstrita aos princípios constitucionais processuais e não aos ditames específicos que disciplinam as funções típicas da administração, como, por exemplo, os que obrigam a autoridade lançadora da exigência fiscal, que segue fielmente as instruções editadas por seus superiores hierárquicos, mas não obriga o órgão incumbido de apreciar a validade legal de um auto de infração, caso as considere contrárias à lei.

Mesmo estruturado no âmbito do Poder Executivo, os órgãos julgadores estão adstritos ao poder hierárquico somente no que diz respeito às suas funções administrativas típicas, tais como horário de funcionamento da repartição, critérios de nomeação, etc, mas não no que pertine ao mérito de suas decisões. [02]

Aliás, embora os membros do Poder Judiciário possuam as garantias constitucionais da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos para exercerem a função jurisdicional plenamente, por obvio, o princípio da não-submissão ao poder hierárquico também está presente no âmbito do Poder Judiciário. Um juiz não está vinculado ao entendimento do tribunal, nem pode ter suas decisões reformadas de ofício e a qualquer tempo em virtude do "poder hierárquico".

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O princípio da verdade material decorre do princípio da legalidade, porquanto para aplicar a lei – sem se importar a quem essa aplicação eventualmente favoreça – a Administração deve conhecer os fatos que reclamam a sua aplicação, fazendo-a evidenciar do processo com as provas necessárias de modo a não deixar dúvida da decisão nele proferida.

Alberto Xavier sustenta a tese de que, no exercício da sua atividade de lançamento, o Fisco é um órgão de justiça, inobstante ser parte na relação jurídica tributária, cuja função consiste na aplicação objetiva da lei. E ainda que o Fisco é uma parte imparcial, pois – apesar de ser parte em sentido substancial de relação tributária – no procedimento administrativo de lançamento, o "interesse formal" do Estado é irrelevante, devendo sempre prevalecer o "interesse substancial" de justiça, ou seja, a aplicação objetiva da lei. [03]

Neste aspecto, do ponto de vista material, tanto o órgão de lançamento, como os órgãos de julgamento, são órgãos de justiça imparciais, em razão de o objetivo comum de atuação ser uma aplicação objetiva e vinculada da lei, com total alheamento do "interesse formal" do Fisco, sendo que, evidentemente, a característica da imparcialidade se acentua no órgão judicante administrativo em virtude do estabelecimento da chamada imparcialidade orgânica [04] que o distancia, não vincula nem permite relação de hierarquia com o órgão de lançamento do tributo, e tem como atribuição um ato de apreciação da legalidade de ato de lançamento praticado por outrem cuja decisão deve ser fundamentada pela interpretação da lei e verdade dos fatos imponíveis.

Portanto, se a atividade da Administração ativa funciona de ofício objetivando efetivar o interesse público coativamente mediante a realização de uma função regrada nos termos e nos limites da lei, a Administração judicante funciona por iniciativa do administrado tendo por objeto solucionar conforme o direito as controvérsias decorrentes do funcionamento da Administração ativa sendo que nesta atividade o interesse objetivado é o interesse da ordem jurídica, consubstanciado na recomposição das situações em que essa ordem tenha sido lesada.

No âmbito administrativo tributário, o processo de impugnação tem por fim a verificação da verdade material relativa aos fatos tributários, onde os particulares nele intervêm na produção de provas, desenvolve-se como processo triangular de partes segundo um princípio contraditório conduzido por órgão de julgamento da Administração, independente da atividade de lançamento, possuidor de característica imparcial, e culmina com a prática de um ato estritamente vinculado, que produz um juízo subsuntivo de aplicação da lei, em muitos pontos semelhante à sentença judicial, atividade que a doutrina anglo-saxônica qualifica de quase-judicial.

Essa função de quase-jurisdição, como vimos, representa, no Estado moderno, uma garantia adicional para o exercício dos direitos individuais do cidadão e embora haja posicionamento doutrinário distinto neste aspecto [05], dado às suas peculiaridades e segundo a doutrina representada por Oscar Saraiva, Alfredo Buzaid, Lucio Bittencourt e Ruy Carlos de Barros Monteiro (a qual acompanho até porque comumente os Regulamentos de Processos Administrativos dos Entes tributante aos quais se vinculam as autoridades julgadoras administrativas expressam limitações [06]), ao praticar atos vinculados, o órgão julgador administrativo, por não ter plena jurisdição, subordina-se aos atos normativos que lhe estejam imediatamente mais próximos – em especial, os regulamentos e as leis - não podendo, portanto, por exemplo, apreciar matéria de inconstitucionalidade argüida pelo Impugnante. Ou seja, a imparcialidade do órgão judicante é limitada pela interpretação legislativa que faz os órgãos e autoridades próprios do Poder Executivo.

Neste particular, quando em julgamento o órgão judicante verificar matéria contida em lei ou em ato normativo considerado ilegal, geralmente os Regulamentos Administrativos Fiscais prevêem disciplinamento apropriado para superação do evento. No caso da Bahia, tal disciplina está contida no art. 168 do Regulamento do Processo Administrativo Fiscal-RPAF [07], implicando em sobrestamento do processo até que a matéria seja superada na forma que indica.

De todo modo, um dos principais aspectos que faz ressaltar a credibilidade dos órgãos judicantes da esfera administrativa é que na atividade atípica de julgamento, estes órgãos e, conseqüentemente seus membros, não devem obediência a nenhum outro órgão ou entidade, não incorrendo em desobediência se tomarem decisões diversas das desejadas ou pretensamente impostas de fora, de tal modo que os titulares desses órgãos não podem ser responsabilizados pelo fato de tomarem deliberações contrárias a quaisquer ordens ou diretrizes exteriores não normativas, desde que devida e legalmente fundamentadas.


II. As causas da litigiosidade tributária.

José Maria Lago Montero, Professor Diretor do Departamento de Direito Administrativo, Financeiro e Processual da Faculdade de Direito da Universidad de Salamanca, em substancioso trabalho com base no litígio tributário na Espanha e intitulado "De la Litigiosidad y la Justicia Tributária", afirma que a litigiosidade tributária possui "causas remotas", "causas mediatas" e "causas imediatas". Nesse trabalho, o insigne Professor estima que as "causas últimas ou remotas" se encontram na tensão intrínseca entre o dever de contribuir e o direito a fazê-lo da maneira mais vantajosa, sendo este o primeiro e principal fundamento do conflito tributário; causa remota, mas certa, à qual se une a desconfiança do cidadão em um sistema tributário muito oneroso somente para alguns, e pouco neutral no tratamento de operações análogas, tanto no plano normativo como no aplicativo, o que conduz a uma frágil consciência fiscal. Junto a estas causas, Lago Montero distingue as causas mediatas e imediatas da litigiosidade, normativas e aplicativas, respectivamente.

Lago Montero sinaliza como causas mediatas de caráter normativo: a) A complexidade do ordenamento tributário pelo galopante ritmo de modificações de leis e regulamentos que, por conseqüência, produz novas "gretas" para pratica de fraude tributária; b) A proliferação de regimes especiais e benefícios fiscais, que compromete a generalidade e igualdade do sistema tributário; c) A proliferação de conceitos jurídicos indeterminados, tais como o valor de mercado ou o valor real, de presunções e de cláusulas anti-abusivas de conteúdo normativo incerto, que produzem, em algumas ocasiões, mais insegurança jurídica que as que tratam de esclarecer e, por último; d) Também é causa de litígio tributário o peso desmedido dos deveres formais impostos aos contribuintes e de difícil cumprimento.

Por fim, no trabalho citado, Lago Montero aponta como sendo as causas imediatas, de caráter aplicativo, causadoras de litigiosidade tributária, as seguintes: a) Incapacidade das Administrações Tributárias para medir a capacidade econômica real de todos os contribuintes. Entende ele, que os meios de pessoal e material dos quais dispõe a Administração não guardam proporção com a complexidade do sistema que se preordena aplicar, o que produz uma deficiente motivação dos atos administrativos de toda classe e condição; b) Em conexão com a anterior causa, expressa a freqüente queixa de autores sobre a prepotência histórica da Administração, tributária ou não, desde a revolução francesa até nossos dias, na que detectam complacência no "ordeno e mando" em setores fundamentais da Administração Pública.

Não há lugar para duvidar que as causas arroladas pelo distinto Mestre da Universidade de Salamanca, são importantes causadores de litigiosidade tributária. Entretanto, entendo que sua lista não é taxativa, mas exemplificativa, pois que ainda existem outras grandes causas de litigiosidade tributária.

Tomando a realidade tributaria no Brasil, facilmente constatamos que a principal causa dos litígios são as ilicitudes tributárias praticadas volitivamente pelos contribuintes e que implicam no descumprimento das suas obrigações.

Dados recentes divulgados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostram que em 2009 as transações econômicas da economia informal ou submergida no país foram da ordem de 578 bilhões de reais, ou 340 bilhões de dólares, valor equivalente ao PIB da Argentina e que representa 18,4% do PIB do Brasil. Isto implica em uma perda de receita tributária da ordem de 200 bilhões de reais, em face da sonegação dos diversos tributos, ilicitude que, ao menos em nosso país, é a maior causa de litigiosidade entre o Estado e os seus contribuintes, já que quando flagrados iniciam as lides tributárias sejam no âmbito administrativo ou judicial na tentativa de minorar as penalidades.

Ainda em relação às causas mencionadas por Lago Montero, também entendo que, na atualidade, as causas imediatas de litigiosidade de caráter aplicativo estão bastante mitigadas, pois se no passado não muito longe eram incontestáveis, nos Estados modernos já não aparecem com tanta intensidade, isto porque vinculada como está ao princípio do Estado de Direito, e à regra da legalidade, a Administração Tributária atua mediante estrita vinculação à lei, tanto na atividade inspetora como na judicante com órgãos destinados ao autocontrole dos atos praticados pela Administração ativa, que funcionam no sentido de adicionalmente garantir os direitos do contribuinte e o comprimento de suas obrigações tributárias dentro das margens de legalidade, ou seja, corrigindo ainda no âmbito administrativo os eventuais excessos praticados por seus prepostos fiscais na atividade de lançamento dos tributos.

Quanto à mensuração da capacidade econômica ou contributiva real do contribuinte, entendo que, de fato, ela é distorcida no âmbito aplicativo da legislação tributária, mas se culpa há da Administração Tributária, será a menor dentre as instituições do Estado com direta influência na distorção do princípio na concreção do sistema tributário, senão vejamos.

É sabido que o Princípio de Capacidade Econômica ou Contributiva se interrelaciona com outros princípios democráticos fundamentais para conjuntamente atuarem na concreção de uma justiça fiscal como pressuposto de uma justiça social subordinada aos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito. Neste sentido algumas Constituições registram estes objetivos em cláusulas inalienáveis a exemplo do que o legislador formulou no 3º artigo da Constituição Federal do Brasil, [08] no art. 3º da Constituição italiana, [09] e na forma que expressa o preâmbulo da Lei Fundamental do Estado Espanhol [10]. Para tais objetivos se realizarem é imprescindível a efetiva atuação do Princípio de Capacidade Contributiva como principal centro de atenção do Direito Tributário.

Por outro lado, uma norma legal para ser um dever ser "que é", segundo Hans Nawiasky, há que ser formulada captando com perfeição a vontade da sociedade. Diz esse autor que:

"Todas las normas que quieran obligar efectivamente a sus destinatarios deben apoyarse sobre una voluntad real que se manifieste en exigencias de conducta..." [11].

Em seguida, o aclamado autor explicita que:

"A través de la autoridad, anclada en el mundo de los hechos, que está detrás de las normas jurídicas, entran éstas en contactos con la realidad de la vida social. Los portadores reales de la voluntad no se manifiestan, desde luego, indiferentes ante el Derecho, sino que ponen su empeño en determinar, con fundamento en sus concepciones, el contenido del Derecho, tanto en el plan de los intereses que promocionan como en el plan de los ideales que defienden. No solo porque el Derecho abstraído de un fin carecería de sentido, pero también porque su vigencia presupone unos portadores reales, que tratan de realizar determinados fines con el Derecho..." [12]

As leis que informam um sistema tributário não fogem a esta consideração. Expressam a vontade do grupo social que prepondera no "momento legislativo". Tal aspecto está presente nas instituições do Estado, na Administração Pública, na doutrina dos tribunais, em especial, dos tribunais constitucionais onde a interpretação de conceitos jurídicos - principalmente dos conceitos indeterminados - depende dos valores que em cada momento histórico aceitem os órgãos de controle da constitucionalidade das leis – e, pelo caso, da composição destes, como se verifica na doutrina constitucional norte-americana ou como se mostra na evolução da doutrina do Tribunal Constitucional alemão, o que se reflete até na atual composição do nosso Supremo Tribunal Federal, onde nada menos que oito de seus onze Ministros foram nomeados pelo atual Presidente da República - algo que, pelo resto, certamente ocorre em todos os Estados e acontece em todos os campos do Direito.

Assim, as abstrações jurídicas são indispensáveis para a realização prática do Direito. Já afirmou Aliomar Baleeiro, que muitas vezes o teórico concebe sistematizações que utilizando variados recursos, como o leito de Procusto, onde a instituição jurídica tem que ser estreitada ou alargada para caber sem folga nem excessos, com o que nem sempre os doutores convêm em que determinada técnica jurídica se tem que constituir adequada ao fim prático do Direito. [13]

A concreção dos fins que tem de cumprir uma estrutura fiscal não é tarefa fácil. Não há unanimidade na melhor configuração de um sistema tributário, pois varia ao longo da história da atividade financeira do setor público e sua delimitação depende da ideologia do grupo de poder que constitui o sistema tributário. Para Palao Taboada, a busca da ordenação mais justa, em nosso caso, do sistema tributário mais justo – ou, mais modesta e realisticamente, de um melhor sistema tributário – é missão da política, com ajuda da Ciência da Fazenda e, em seu âmbito, do Direito Tributário como disciplina científica. [14]

No Brasil, o constituinte de 88 não incluiu a capacidade contributiva na categoria das limitações, mas sim nos princípios gerais, ao lado das espécies tributárias e das normas gerais. Com isto, concebe ser a capacidade contributiva um dos elementos estruturais que compõem o sistema tributário, apresentando até maior importância (nessa estruturação) do que as decantadas "limitações do poder de tributar", pois estas representam o que não pode ser feito, mas nada dizem do que deve ser feito para ter um sistema tributário sintonizado com os valores básicos consagrados pelo Constituinte.

A relevância primaria do princípio de capacidade contributivase impõe no sistema tributário. Ou seja, se o Estado é necessário - bem como as suas prestações sociais, é sensato defender que os tributos que fomentam tais prestações e possibilitam a própria existência do Estado, devem ser implementados e graduados em correlação com a riqueza ou força econômica dos contribuintes e com o valor dos fatos, por mais indeterminados que estes sejam. A isto eu chamo de "relevância intrínseca do princípio de capacidade contributiva".

A questão é como determinar os fatos de maneira a construir, em concreto, um sistema tributário adequado aos critérios de equidade e justiça. O principio de capacidade contributiva à luz do Direito Tributário leva importância de base na construção de um sistema tributário democrático com a efetiva participação do contribuinte. É um instrumento que o legislador e os aplicadores do Direito usam para otimizar a carga fiscal de um sistema.

Portanto, na concepção da norma tributária o legislador deve observar, sem dúvida, o princípio da capacidade contributiva de seus destinatários, de modo que, também, por obvio, tal princípio deve apresentar-se em todo o sistema tributário.

O que ocorre é que, concebido (como se pudéssemos ter um instante de nascimento de um sistema tributário), o sistema tributário passa a sofrer alterações que formatam um processo de erosão que, em muitas circunstâncias origina litigiosidade e implica na variação da incidência concreta do princípio de capacidade contributiva no sistema de modo geral.

Essa erosão pode ocorrer em duas ordens: Primeiro, de modo legal, seja em conseqüência da pressão de interesses lobistas dos grupos sociais detentores do poder de fato na sociedade, em especial do poder econômico, ou em conseqüência de uma real necessidade de ajuste estrutural natural a qualquer sistema tributário, que pode causar uma diminuição ou aumento do volume potencial de recursos que o sistema pode produzir segundo a variação da capacidade contributiva dos sujeitos obrigados, em relação à inicialmente mensurada pelo legislador. Essa última variação decorre de ajustes estruturais legais nas espécies tributárias em razão da superveniência de conjunturas não previstas pelo legislador original. Uma redução pode ser causada, por exemplo, por desoneração tributária decorrente de normas de isenção, de redução de base ou de alíquota em legítimos interesses incentivadores de desenvolvimento econômico ou correção de efeitos econômicos de eventos da natureza; divergência quanto à interpretação e alcance das normas tributárias ou controvérsias quanto aos fatos geradores dos tributos etc., e um aumento, por exemplo, pode ter como causa, normas que ajustem as alíquotas dos tributos que servem para regular o mercado financeiro ou o comércio exterior.

Em outra ponta, de segundo, o processo de erosão do sistema tributária ocorre de forma danosa – cuja incidência é distinta nos países e, infelizmente, muito relevante no Brasil - e é exclusivamente negativa. Ela somente provoca diminuição no volume potencial de recursos tributários do sistema e é provocada por procedimentos ilícitos, também causando distorção na incidência concreta do princípio de capacidade contributiva no sistema tributário. Tem como causa principal a evasão tributária que é conseqüência da volitiva ilicitude do contribuinte que deixa de recolher ao Erário a parte que é direito do Estado, indispensável para que este cumpra suas funções no interesse da sociedade.

A sonegação fiscal faz com que o volume do recurso tributário arrecadado seja menor que o recurso tributário potencial do sistema e compromete a sua capacidade contributiva possível. Portanto, ocorre antes da entrada do tributo nos cofres públicos e significa a retenção indevida pelo contribuinte de direitos do Estado. [15]

Para monitorar o ingresso tributário, geri-lo enquanto no seu poder e recuperar a necessária contribuição do cidadão sonegada aos cofres públicos, o Estado possui pessoal especializado cuja função institucional é vinculada à lei e se direciona no sentido de fazer com que a incidência concreta do princípio de capacidade contributiva no sistema tributário se aproxime o máximo possível da capacidade contributiva estimada pelo legislador na concepção das normas tributárias.

Ora, considerando que a maior força motriz das alterações legislativas que distorcem a incidência do princípio da capacidade contributiva no sistema tributário concreto é a prevalência dos interesses dos grupos que detêm o poder de fato no Estado em função da pressão ou influência que exercem junto ao legislador e que cabe apenas Administração Tributária praticar seus atos observando estritamente a legislação vigente, por obvio, se há de convir que o Fisco seja o menos culpado pela distorção do princípio de capacidade contributiva na concreção de do sistema tributário. Por outro lado, se pode até considerar a insuficiência de pessoal e material para mensurar tal princípio no sistema como menciona Lago Montero, mas também há que observar que a crescente incorporação das novas tecnologias no âmbito fiscal mitiga essa dificuldade de mensuração real, e, por conseqüência, reduz a participação dessas causas imediatas de caráter aplicativo na litigiosidade tributária.

Ademais, em matéria tributária, o autocontrole administrativo dos atos de exigência fiscal é exercido através do processo administrativo que exprime a idéia de que os mecanismos de controle da legalidade de tais atos devem obedecer a um princípio de jurisdicionalização tendo em vista que o processo se desenvolve na mesma forma que nos tribunais, ressalvadas as especificidades decorrentes da natureza indispensável dos direitos em presença, seja da natureza não independente do órgão de julgamento por ser integrado na Administração, mas pressupondo a imparcialidade dos órgãos judicantes.

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Sobre o autor
Jorge Inácio de Aquino

Doutorando em Direito Tributário pela Universidad de Salamanca. Auditor Fiscal membro do Conselho de Contribuintes do Estado da Bahia. Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do Instituto dos Auditores Fiscais da Bahia – IAF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Jorge Inácio. Os órgãos de julgamento administrativo do contencioso tributário no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2613, 27 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17265. Acesso em: 19 abr. 2024.

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