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Aspectos históricos da Comissão de Valores Mobiliários

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A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foi criada em 1976 pela Lei 6.385, que também dispõe sobre o mercado de valores mobiliários. Para melhor enterdemos essa criação é necessário voltarmos um pouco no tempo, uma vez que o estudo da origem desta autarquia nos remete à década de 1960 e à história recente do mercado de capitais no Brasil.

Até meados de 1960, em um contexto de inflação crescente e de limitação legal da taxa de juros anual em 12%, os brasileiros relutavam em investir em aplicações na forma de títulos privados ou públicos. Tal realidade começou a mudar a partir da nova política de desenvolvimento econômico implementada pelo Governo Militar, que assumiu o poder em 1964, e que incluía uma série de reformas do sistema financeiro nacional.

Entre aquelas que tiveram maior importância para o mercado de capitais, podemos citar a Lei 4.537/64, que instituiu a correção monetária, através da criação das ORTN, a Lei 4.595/64, denominada lei da reforma bancária, que reformulou todo o sistema nacional de intermediação financeira e criou o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central e, principalmente, a Lei 4.728, de 14.04.65, primeira Lei de Mercado de Capitais, que disciplinou esse mercado e estabeleceu medidas para seu desenvolvimento. Nas palavras de Rubens Requião:

"No bojo dessa lei encontrava-se parcial reforma da lei das sociedade por ações, de 1940, pelo acréscimo de novos institutos, tais como a sociedade de capital aberto e o capital autorizado, as ações nominativas endossáveis e muitos outros aperfeiçoamentos necessários ao desenvolvimento do mercado. A fim de modernizar a empresa brasileira, o Conselho Monetário Nacional insituiu um sistema de incentivos fiscais para a democratização do capital, consubstanciado na Resolução 106, do Banco Central do Brasil, que disciplinou a sociedade anônima de capital aberto". [01]

Derivou ainda dessa lei a função do Banco Central de fiscalizar o mercado de valores mobiliários, as Bolsa de Valores, os intermediários financeiros e as companhias de capital aberto. Em razão da nova função do Banco, foi criada a Diretoria de Mercado de Capitais.

Motivados pelos incentivos fiscais criados pelo Governo Federal e pela modernização do sitema financeiro, a demanda por ações cresceu de forma acelerada, sem que houvesse aumento simultâneo de novas emissões. Iniciou-se, então, em dezembro de 1970, uma forte onda especulativa na bolsa do Rio de Janeiro que durou até julho de 1971, mas que teve como consequência anos de "mercado deprimido". Deve-se comentar que o acúmulo de funções do Banco Central impediu que este organismo governamental desincumbisse satisfatioriamente a fiscalização do mercado de capitais.

Na mesma época, discutia-se a reforma da lei de sociedade por ações. Em 1970 foi realizado um Simpósio, promovido pela Federação das Indústrias de São Paulo e pelo Instituto de Direito Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, entre juristas e empresários com esse intuito. Buscava-se uma forma de modificar a estrutura societária brasileira com o objetivo de modernizá-la e torná-la mais eficiênte, dar mais estabilidade ao mercado, mais segurança e participação efetiva aos investidores. Além disso, ansiava-se em acabar com o costumeiro uso da sociedade anônima como "lastimável instrumento de evasão e sonegação fiscal". [02] Durante os anos que se seguiram, as disucssões acerca do tema continuaram e foram elaborados projeto e anteprojeto para a nova lei de sociedade por ações.

O mercado acionário foi, aos poucos, se recuperando do "boom de 1971". A partir de 1975, foram realizados maiores investimentos pelos Fundos de Pensão e as cotações passaram a se recuperar. Outros incentivos foram adotados visando incentivar o crescimento do mercado, como a isenção fiscal dos ganhos obtidos em bolsa de valores e programas de financiamento a juros subsidiados efetuados pelo BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) aos subscritores de ações distribuídas publicamente.

Com o intuito de adequar as organizações societárias ao "neocapitalismo brasileiro" [03]- que se consubstanciava na concentração de capitais nas mãos dos empresários nacionais-, e com o objetivo de se criar um efetivo instrumento da grande empresa brasileira, foi promulgada em 1976 a Lei 6.404 (Lei da S.A.), de autoria de Alfredo Lamy e José Luiz Bulhões Pedreira.

Poucos dias antes, foi promulgada a Lei 6.385 de 1976, que criou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão responsável pelo policiamento e saneamento do mercado e das companhias abertas. Justifica-se tal criação em razão da adoção, pelo Poder Público, do fundamento institucionalista para sociedades anônimas, organizando-as para a captação de recursos financeiros no mercado de capitais, o que monstrou ser necessária a implementação de uma forma eficiênte de fiscalizá-las. A nova entidade reguladora autônoma foi inspirada na Securities and Exchange Comission (SEC) norte-americana, criada em 1934 por Roosevelt, após a grande depressão de 1929.

A CVM foi criada como autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda e enfrentou as mazelas decorrentes de um direito administrativo que, historicamente, desconhecia tal tipo de comissão independente. É de se falar ainda, que por mais que tenha se mostrado inovadora a criação dessa entidade no Brasil, a CVM tinha poderes de intervenção limitados, não tendo independência de fato em relação aos demais órgãos da administração, principalmente frente às sociedades de economia mista.

Segundo Arnoldo Wald:

" Podemos, pois, afirmar que, numa primeira fase, a CVM exerceu um comando de caráter programático, sem ter os meios efetivos de fazer aplicar as suas determinações. Acresce que inexistia, no Brasil, uma tradição auto-regulatória das Bolsas, que ainda estavam imbuídas, naquela época, de espírito corporativo. Havia, outrossim, em determinados casos, um conflito de interesses decorrente das várias funções da CVM, ora como entidade incumbida do desenvolvimento do mercado, ora como órgão fiscalizador do mesmo, pois, em determinados casos a política construtiva e liberal do desenvolvimento não se coadunava com a atuação disciplinar e de policiamento do xerife". [04]

A necessidade de autonomia da Comissão de Valores Mobiliários foi sentida pela primeira vez por ocasião do chamado "caso Vale", ocorrido em 1980, no qual o Governo Federal realizou a venda de grande lote de ações da Companhia Vale do Rio Doce em violação à Lei 6.385 de 1976. [05] O caso suscitou intenso debate acerca da efetivade do controle exercido pela CVM sobre o acionista controlador das Sociedades de Economia Mista Federais, ou seja, a União, por ser um órgão subordinado ao Conselho Monetário Nacional e ao Ministério da Fazenda.

Em 1986, a própria CVM apresentou um anteprojeto objetivando a reforma integral da Lei 6.385 de 1976, com o intuito de promover maior autonomia da Autarquia, sistematizar a disciplina do mercado, estabelecer o regime dos processos administrativos sancionadores, aumentar o valor das multas pecuniárias, introduzir o instituto do "termo de compromisso" e disciplinar os crimes contra o mercado de valores mobiliários. A mudança radical proposta, entretanto, não ocorreu, uma vez que os poderes constituídos preferiram implementar a reforma por etapas, editando as Leis 9.457, em 1997, a Lei 10.303, além da Medida Provisória 8 e do Decreto 9.535, todos de 2001.

A introdução de artigos dando nova redação a alguns dispositivos da Lei 6.385 de 1976 somente ocorreu quando da apresentação do "Projeto Kandir", já que até então se cogitava apenas da reformulação da Lei da S.A. O Deputado Antônio Kandir assim jusitificou seu projeto:

" Todo o esforço empreendido pelo Poder Legislativo na edição de normas legais tecnicamente perfeitas pode resultar infrutífero, caso não se verifique, na estrutura da Administração Pública, uma entidade capaz de compelir os destinatários de tais normas ao seu mais fiel e estrito cumprimento. Desse modo, torna-se imperativo aduzir dispositivos que restaurem e modernizem o aparato jurídico da Comissão de Valores Mobiliários – entidade reguladora do mercado de capitais brasileiro criada em 1976 –de forma a dotar-lhe da autonomia necessária para o desemprenho eficaz de sua missão". [06]

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As reformas discutidas se mostravam necessárias, pois a CVM, por não gozar de real autonomia, não poderia exercer com eficiência suas funções. A concreta independência não existia pois os membros da direção da Comissão (um presidente e quatro diretores) eram nomeados pelo Presidente da República e poderiam ser substituídos, em suas faltas, na forma regimental, e demitidos ad nutum.

Em 2001, com as mudanças realizadas pela legislação citada, a CVM passou à condição de Autarquia em regime especial. No ano seguinte, com a Lei 10.411, a entidade passou a gozar também de autonomia financeira e orçamentária. Assim, o art. 5 da Lei 6.385 de 1976 passou a conter a seguinte redação:

"Art. 5º - É instituida a Comissão de Valores Mobiliários, entidade autárquica, em regime especial, vinculada ao Ministério da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária" (grifo nosso).

A supracitada Lei 10.411 também modificou a forma de composição da diretoria da CVM, exigindo aprovação do Senado Federal, antes da nomeção realizada pelo Presidente da República.

Atualmente, as atribuições da Comissão abrangem qualquer pessoa ou entidade que opere, de forma suspeita, no mercado, e aquelas que participam naturalmente dessas operações. "Além disso, pode: intimar todas essas pessoas a prestar informações ou esclarecimentos, sob pena de multa; requisitar informações de qualquer órgão público, autarquia ou empresa pública; determinar às companhias abertas que republiquem, com correções ou aditamentos, demonstrações financeiras, relatórios ou informações divulgadas, ouvido previamente, no caso de instituição financeira, o Banco Central do Brasil; apurar mediante inquérito administrativo, atos ilegais e práticas não-equitativas de administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado". [07] É também responsabilidade da CVM organizar e fiscalizar o mercado, além de corrigir as situções anormais nele presentes (conceituadas pelo Conselho Monetário Nacional).

Deve-se mencionar que a globalização fomentou o desenvolvimento da Autarquia a partir da inserção de companhias brasileiras em mercados de capitais estrangeiros e da vinda de sociedades empresariais para o mercado nacional. Em 1988, foi celebrado o primeiro acordo de colaboração entre a CVM e outra entidade reguladora internacional, tratava-se da SEC (EUA). Existem, no presente momento, dezenas de acordos internacionais, na foma de Memorandos de Entendimentos (MOUs – acordos bilaterias) e declarações de cooperação multilaterais.

Pode-se perceber que cabe à CVM agir para manter a eficiência e a credibilidade do mercado em relação às sociedades empresarias e aos acionistas nacionais e internacionais, e para tal possui autoridade e poderes. Cabe neste momento relembrar a lição de Arnoldo Wald, presente no volutme da Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais dedicado à celebração dos 30 anos da CVM:

" A internacionalização da economia já trouxe e, no futuro, trará, ainda mais, além de importantes recursos financeiros, novas técnicas e imporá a adoção dos padrões internacionais nos mais diversos aspectos do mercado de capitais, inclusive no plano ético e teórico". [08]


Notas

  1. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial 2º vol., 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.10.
  2. Idem, p. 17.
  3. Idem, p.19.
  4. WALD, Arnoldo. Trinta Anos da Lei do Mercado de Valores Mobiliários no Brasil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 34. São Paulo: RT, outubro-dezembro 2006, pp. 5-6.
  5. GONTIJO, Maurício Barbosa. O Poder Regulamentar do Conselho Monetário Nacional e da Comissão de Valores Mobiliários. Belo Horizonte: UFMG, 2005. P. 27. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
  6. CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. A Nova ei da S.A. São Paulo: Saraiva, 2002,p. 437
  7. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial 2º vol., 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 23.
  8. WALD, Arnoldo. Trinta Anos da Lei do Mercado de Valores Mobiliários no Brasil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 34. São Paulo: RT, outubro-dezembro 2006, p. 9.
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Sobre a autora
Junia Castro Bernardes de Rezende

Bacharelanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Junia Castro Bernardes. Aspectos históricos da Comissão de Valores Mobiliários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2629, 12 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17374. Acesso em: 23 dez. 2024.

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