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A legitimidade do Estado regulador brasileiro.

Uma análise democrática

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16/09/2010 às 15:48
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3. A reforma do Estado brasileiro e a Constituição Federal de 1988

No Brasil, a reforma do Estado, no intuito de fazer a transição do Estado Social para o Estado Regulador, foi marcada com a edição da Lei n.8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Plano Nacional de Desestatização (PND), reformulado pela Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997 (com as alterações da Medida Provisória 2.161-35, de 23 de agosto de 2001).

Essa percepção é clara ao se observar os objetivos fundamentais do PND, contidos em seu art. 1°:

I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público;

II - contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;

III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada;

IV - contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito;

V - permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;

VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa. (grifo nosso)

A nível constitucional foram editadas diversas Emendas Constitucionais [50] que afetaram especificamente os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 e a Emenda n° 6/2005, suprimindo o art. 171 daquela Carta, que trazia a proteção e benefícios especiais à empresa brasileira de capital nacional, desfazendo o conceito de empresa nacional. Observa-se que todas essas Emendas são do mesmo dia (15.8.95). As alterações que vieram a alterar os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 são: a Emenda Constitucional n° 5/95 que afetou especificamente o monopólio da exploração de serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado; a Emenda Constitucional 8/95, que privatizou o setor de telecomunicação e radiodifusão e a Emenda Constitucional 9/95, o setor petrolífero. Mais recentemente, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 36, de 28.5.2002, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

Dessa forma, a partir de 1990, o Estado brasileiro muda sua forma de atuação no domínio econômico, iniciando um processo de privatizações de empresas estatais e aumentando a concessão de serviços públicos aos particulares. Nesse contexto, o ente político começa a criar entidades descentralizadas com autonomia decisória em relação à administração direta, autonomia gerencial, financeira e orçamentária, (teoricamente) imune a ingerências político partidárias e investidas em funções técnicas e poderes normativos para atender a sua nova forma de atuação como agente regulador da atividade econômica [51], "embasado no interesse público pela prestação eficiente das atividades econômicas" [52]. Esses entes são as agências Reguladoras.

O Presidente Fernando Henrique Cardoso esclarece, seguindo a orientação do Conselho de Reforma do Estado, o sentido da criação das agências como novo modelo de regulação de setores por parte do Estado:

No caso das ações do governo relativas à infra-estrutura e aos serviços públicos, estão sendo constituídas agências reguladoras (ANATEL, para telecomunicações, ANEEL, para energia elétrica, e ANP, para o petróleo) que substituem as burocracias ministeriais – e os antigos lobbies nelas incrustados – por um grupo de pessoas indicadas pelo Executivo em bases de conhecimento técnico e competência administrativa e aprovadas pelo Senado. Esses "reguladores" têm mandato (para proteger-se de pressões políticas indevidas) e devem, em nome do interesse público e dos consumidores (os quais estão também presentes nos conselhos consultivos), controlar a seriedade, a eficiência e a universalização dos serviços – para atender a todos os setores da sociedade e não apenas os mais bem aquinhoados. Assim, ao privatizar e ao dar concessões de serviços públicos, o Estado, já não sob a forma burocrática, mas com novos personagens, continua presente em sua função social e reguladora. [53]

No esteio dessas mudanças foram criadas diversas agências reguladoras a partir da década de 90 do século XX, como: Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL -, criada pela Lei 9.427/1996; a Agência Nacional de Telecomunicação – ANATEL -, pela Lei 9.472/1997; a Agência Nacional de Petróleo – ANP -, Lei 9.478/1997; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA -, Lei 9.782/1999; a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS -, Lei 9.961/2000; a Agência Nacional de Águas – ANA -, Lei 9.984/2000; a Agência Nacional de Transportes Aquáticos – Antaq -, Lei 10.233/2001; a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT -, Lei 10.233/2001; e a Agência Nacional do Cinema – Ancine – Medida Provisória 2.228/2001.

Perceba-se que a alteração no modo de atuação no domínio econômico se deu por meio de lei (infraconstitucionalmente), o que gerou diversas discussões da doutrina. Muitos doutrinadores de renome no cenário nacional manifestaram-se pela inconstitucionalidade das reformas.

Para Eros Roberto Grau [54], apesar da reforma ser constitucional do ponto de vista formal, ela seria inconstitucional materialmente. A Carta Magna de 1988 teria estabelecido um modelo econômico de bem-estar, não podendo o legislador infraconstitucional alterar esse modelo. Para o autor, "os programas deste e daqueles presidentes da República é que devem ser adaptados à Constituição, e não o inverso" [55].

Destaca-se que, na época, Celso Antônio Bandeira de Melo ingressou com diversas ações populares alegando a inconstitucionalidade da reforma.

De outra forma, José dos Santos Carvalho Filho entende que, apesar da reforma não estar prevista nos moldes clássicos de atuação da administração pública, ela consiste no "mero resultado de uma evolução natural no processo cometido ao Estado de gestão dos interesses coletivos" [56]

Maria Sylvia Zanella [57] de Pietro e Celso Antonio Bandeira de Mello [58] defendem que é inconstitucional a criação de agências reguladoras nos moldes de autarquia especial (atuando como órgão regulador, dotado de competência normativa), salvo no caso Agência Nacional do Petróleo e da Agência Nacional de Telecomunicação, por expressa previsão constitucional, respectivamente nos artigos 177, §2°, III (redação dada pela EC n° 9/95) e 21, X (redação dada pela EC n° 8/95).

Marcos Juruena Villela Souto, por sua vez, entende que, no caso da ANP e ANATEL, a Constituição teria afastado a "discricionariedade legislativa para criar ou não um agente regulador, discricionariedade esta que existe para os demais setores" [59]. Ou seja, o legislador estaria vinculado pela Constituição a criar as Agências Reguladoras dos setores de petróleo e de telecomunicação; enquanto outros setores iriam depender da discricionariedade do legislador e do chefe do Executivo.

Não obstante o pertinente debate doutrinário, defendemos que as mudanças sociais positivadas no cenário nacional decorreram de alterações no cenário internacional: já está demonstrado a impossibilidade de se ter um Estado provedor de bem e serviços depois que ficou empiricamente claro a limitação dessa intervenção [60]. Dessa forma, devemos prezar por um Estado Regulador (atual forma no direito dogmático) forte, sem deixar que ideologias individualistas – ou melhor, neoliberais – alterem conquistas sociais conseguidas ao longo do tempo (princípio do não retrocesso social).

Não importa o regime assumido pelo Estado brasileiro, o seu fim será sempre o interesse público, a promoção da justiça social [61]. Os instrumentos necessários para tal fim é que poderão mudar; não importando se a atuação no domínio econômico se dará de forma direta ou indireta – lógico que tal assertiva só é constitucional se obedecer ao princípio da juridicidade. Ou melhor, qualquer que seja o modo de atuação no domínio econômico, o Estado tem de basear-se nos fundamentos constantes no art. 1° da CF/1988 [62], ter como objetivos aqueles delineados no art. 3° da CF/1988 [63] e obedecer aos princípios gerais da atividade econômica [64] positivados no art. 170 da própria Constituição.

Como bem salienta Jezè [65], o Estado

tem que andar lado a lado com a dinâmica da evolução social, de modo que, criadas novas realidades, deve o Estado adequar-se a elas, aparelhando-se de forma eficiente e completa para satisfazer o interesse da coletividade. Aqui o conservadorismo deve ceder lugar à inovação, dentro, é claro, dos paradigmas traçados na lei constitucional

Assim, buscam-se no fenômeno da mutação constitucional [66] os possíveis fundamentos legitimantes do atual regime. A "vontade da lei" decorre dos olhos do intérprete.


4.A legitimidade (da regulação) na Constituição Federal de 1988: Uma visão pela democracia participativa

Segundo a Constituição o Estado Democrático de Direito [67] está pautado em duas ordens de valores: à vontade definida pelo povo [68] (democraticamente) e à vontade juridicamente positivada [69]. Esta se refere ao campo da legalidade, ou melhor, à ordem jurídica, juridicidade [70].

Por sua vez, a vontade soberana do povo (princípio democrático) concentra-se no princípio da legitimidade, o que não necessariamente precisa estar positivado no ordenamento [71]. Este princípio é específico do Direito Público, que direciona, especificamente, o Direito Administrativo e Constitucional ao exporem suas manifestações discricionárias [72]. Diogo de Figueiredo [73] afirma que a legitimidade por ser, em essência, uma manifestação da vontade geral, ela deve ser captada a partir do embates políticos e pelos instrumentos de participação política dispostos pela ordem jurídica, e, a partir daí, impregnando toda a estrutura do Estado Democrático, passa a ser, necessariamente informativa, em maior ou menor grau, de toda a ação pública, conforme o grau de discricionariedade de decisão aberto pela Constituição e pelas leis do país, aos legisladores, administradores e juízes. É a vontade geral popular, em última análise, a definitória dos interesses públicos, que deverão ser atendidos pela ação do Estado, especialmente, pela sua ação administrativa.

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Nesse sentido, a legitimidade da regulação na Constituição Federal de 1988 é auferida pelo seu processo de produção normativa [74], que ocorre no âmbito do Poder Executivo por meio de autarquias especiais denominadas agências reguladoras. Como seus dirigentes são pessoas não eleitas pelo povo [75], faz mister que as decisões [76] a serem elaboradas passem pelo crivo procedimental dos cidadãos, como bem assevera Diogo de Figueiredo na nota supra citada, para adquirir a sua legitimidade democrática. E ainda: não é necessário que esteja previsto expressamente na Constituição a participação popular durante o processo de produção normativa [77]:

uma vez que qualquer instituto através do qual se devolva poder [78] ao povo, será sempre não só possível como desejável, salvo se a própria Constituição, de algum modo, não condicione o emprego da modalidade, para evitar uma aplicação abusiva ou inadequada (...) [79]

Primeiramente, constatam-se as razões pelas quais as normas passaram a decorrer do Poder Executivo, por suas entidades descentralizadas: a especialização inerente à regulação; o modelo de interesse público, no qual a autoridade executiva competente para emitir atos normativos atuaria sempre voltada para o interesse público, obedecendo aos parâmetros estabelecidos em lei e cujo excesso ou desvio de poder poderia ser revisto ou anulado pelo Judiciário, assim como a inobservância dos standards traçados pelo Legislativo; e, por último, o modelo pluralista [80].

O Estado, com o advento do seu modelo regulador e em virtude de imprimir eficácia à sua atuação, deixa de atuar centralizadamente – como fazia outrora (modelo renascentista que durou até a queda do Estado Social) – e passa a atuar em uma espécie de rede. Ou melhor, há um movimento de descentralização do Estado, tanto para responder os anseios locais e regionais quanto para encontrar formular mais ágeis e eficientes para dirimir a crise de legitimidade que houve no Estado Social decorrente da desconfiança dos cidadãos [81].

Essa forma de Estado (rede) se coaduna com o modelo regulatório pela sua agilidade em detectar, acolher, processar e atender demandas plurais, no qual há vários centros do poder agindo coordenadamente e que estão distribuídos em vários níveis decisionais [82]. Castells afirma que "esse tipo de Estado parece ser o mais adequado para processar a complexidade crescente de relações entre o global e o local, a economia, a sociedade e a política, na era da informação" [83]. Manuel Castells ainda afirma que essa complexa forma de organização estatal só é possível em razão de vivenciarmos a "era da informação" [84]. E é a troca de informação – o grau em que ela acontecerá – entre as diversas organizações participantes no processo decisório– tanto em um sentido vertical quanto horizontal – que irá assegurar a eficiência na administração.

O Estado rede tem como algumas de suas diretrizes a subsidiariedade, o pluralismo jurídico [85] e o princípio da participação popular [86][87], sem o qual o Estado não obterá a sua legitimação.

Em uma abordagem democrática, o princípio da subsidiariedade consiste em fazer com que a decisão seja tomada o mais próximo possível dos destinatários. Para Diogo de Figueiredo [88], o objetivo consiste em fazer com que a administração leve em consideração os anseios dos cidadãos, respeitando-os e fazendo com que a administração só haja quando indispensável a atender o interesse público e legitimamente definido.

O pluralismo pode ser entendido como a presença de subsistemas no interior de um mesmo sistema jurídico. Ou seja, cada grupo organizado é potencialmente um ordenamento jurídico. Para Marçal Justen [89], a democracia além de pressupor a garantia dos direitos e da liberdade e a participação política, ainda o deve quanto ao pluralismo.

Nas palavras de Sérgio Varella Bruna [90], o modelo pluralista

vê a atividade normativa fundamentalmente como a expressão de um fenômeno político. Os defensores desse modelo propugnam a participação dos interessados como forma de viabilizar a adoção de uma decisão coletiva. (...) o processo normativo deveria, então, ser dirigido de forma semelhante ao sistema que é peculiar ao funcionamento do mercado, no qual os diferentes interessados deveriam lutar por seus interesses individuais, num embate que emergiria a decisão adequada ao interesse coletivo. (...) no campo político é de extrema importância a atuação dos grupos de interesse, que devem ter voz, sem, contudo, se lhes permitir chegar ao controle dos processos decisórios, a fim de evitar a ocorrência do temido fenômeno da captura.

Dessa forma, o pluralismo como instrumento de regulação asseguraria no processo de elaboração da norma a presença de diversos setores da sociedade, como as organizações políticas, sociedade civil, consumidores, terceiro setor, mercado etc. Todos podendo atuar em conjunto ou separadamente no processo de elaboração normativa [91].

O princípio da participação pública consiste em uma concretização do pluralismo político e é expressão do direito de cidadania [92] – ambos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1°, inc. V e II, CF) - e de consciência social. Esse princípio auxilia, como princípio instrumental, a representação política, atingindo, pois, a realização plena da democracia: os detentores do poder, no gozo de sua cidadania, têm a faculdade de escolher não apenas "quem os governará, mas como querem ser governados" [93]. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto [94], "essa ampliação juspolítica do conteúdo da cidadania faz do princípio da participação (...) um instrumento indispensável para valorizar o princípio substantivo da legitimidade e dar-lhe efetividade no Direito Contemporâneo". O autor afirma que tal legitimação pode se dar em todas as formas de ação do Estado: legislativa, executiva e judiciais.

Dessa forma, o poder democrático legítimo no Estado de Direito não é mais necessariamente auferido pela pura e simples representação (eletividade), mas pode ser pela própria participação do povo (detentor do poder), direta e pessoal, no processo pelo qual as decisões são proferidas [95].

Tal princípio caracteriza-se, ainda, por ser uma evolução no conceito de democracia quanto à participação da sociedade na gestão da res publica [96]. O cidadão sai da função de mero eleitor, e passa a participar da gestão da administração pública, inclusive quando da tomada da decisão administrativa [97]; o que, em última análise, caracteriza-se por ser própria essência do princípio republicano, isto é, governo (ou coisa) do povo e para o povo.

O princípio da participação pública, vertente do princípio democrático [98], foi erigido, com a Constituição Federal de 1988, no seu art. 1°, parágrafo único, à matéria constitucional, como um dos princípios constitucionais que modelam o Estado Brasileiro [99]. O art. 1°, em seu parágrafo único, afirma que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". É bem verdade que, no caso das agências reguladoras, se na criação das mesmas não há nenhuma inconstitucionalidade, mas alude-se quanto ao seu déficit de legitimidade democrática em razão de o poder normativo não ser exercido pelos representantes do povo; a norma contida naquele parágrafo deixa claro que o poder é exercido pelos representantes do povo ou por estes diretamente, ocorrendo esta através da chamada democracia participativa. Se há déficit democrático quando não há representantes do povo na elaboração das normas, não o há quando o próprio povo participa do seu processo; pelo contrário, o processo normativo sairá fortalecido democraticamente.

Ora, como bem assevera Alexandre Santos Aragão, se o poder decorre do próprio povo, e há uma decisão em que a discricionariedade de um órgão em elaborá-la possa atingi-los, "nada mais justo e natural que os seus titulares e defensores possam manifestar as suas posições perante a administração" [100].

Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva [101] nota que

a participação dos privados no procedimento, ao permitir a ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses de que são portadores, não só se traduz numa melhoria de qualidade das decisões administrativas, possibilitando à Administração uma mais correta configuração dos problemas e das diferentes perspectivas de sua resolução, como também torna as decisões administrativas mais facilmente aceites pelos seus destinatários.

Nesse conspecto, as agências não podem se abster de reconhecer a participação dos particulares no processo decisório [102] e nem de dar condições efetivas de participação na esfera pública [103]. A participação do particular nos procedimentos consiste na própria legitimidade do poder normativo das agências. A não observância a este princípio consiste em causa invalidadora do ato normativo expedido [104] e pode levar ao desfazimento da norma pelo exercício do controle judicial [105]. Sérgio Varella Bruna afirma que o ato normativo só terá validade quando se mostrar que a participação dos interessados "tenha sido provada de significado prático" [106].

Sob outro ponto de vista, uma agência tende a perder a sua legitimidade no momento em que não se submete ao controle democrático na produção de suas normas, baseando-se apenas em critério técnico-científico [107]. O agente tende ao abuso com a ausência de democracia, neste caso consagrado pela participação dos cidadãos no processo de produção normativa. Esta é a própria essência do princípio da separação dos poderes: limitar o abuso do poder [108]. Dessa forma, configura-se entre os deveres da agência provocar a participação da parcela da sociedade interessada [109].

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, §3° [110] (incluído pela Emenda Constitucional 19/98) prevê, expressamente, que devem ser disciplinadas em lei as formas de participação do usuário na administração pública, que não mais são do que uma "concretização do regime democrático e pluralista imposto pelo constituinte brasileiro" [111]. A participação da sociedade no controle da administração pública é uma garantia constitucional. André Luiz dos Santos e Gilson Caraçato afirmam que "o princípio da participação popular na gestão e no controle da Administração Pública é inerente à idéia de Estado Democrático de Direito" [112].

Isso porque as normas expedidas por esses entes são atos administrativos, e, por isso, a lei que define o espaço normativo em que a legitimidade será auferida [113]: a lei confere "ao administrador uma capacidade de expedir normas que, não ofensivas à ordem jurídica, instruam e executem os atos da administração pública" [114]. Ou seja, antes será auferida a legalidade do ato para posteriormente ser avaliada a sua legitimidade [115]. Porém, a lei apenas cria as agências e as confere a capacidade de expedir regulamentos dentro dos standards traçados pela mesma. Mas esses entes, para se legitimarem, não estão adstritos apenas à lei, e sim a um conceito mais amplo: o de juridicidade. Este é um princípio no qual entende-se que "a vinculação da administração não se circunscreve, portanto, à lei formal, mas a esse bloco de legalidade (o ordenamento jurídico como um todo sistêmico)" [116].

Por conseguinte, para a realização de uma democracia material [117] é necessário que haja procedimentos com regras do jogo bem definidas. É através dos procedimentos bem definidos que os interessados poderão participar da tomada de decisões na esfera administrativa [118]. Diogo de Figueiredo Moreira Neto [119] ensina que os procedimentos [120] passam "a ser, por via de regra, a nova e dinâmica forma de conferir legitimidade democrática imediata à ação administrativa, sem intermediação política ou com um mínimo indispensável de atuação dos órgãos legislativos".

Marçal Justen Filho leciona que toda e qualquer ampliação na autonomia normativa das agências reguladoras deve ser acompanhada da realização do devido processo com a participação de todos os interessados. A inobservância dessa regra caracteriza a inadmissão do processo decisório por quebra a postulados fundamentais e do devido processo administrativo [121].

As regras do jogo consistem na obediência à própria Constituição, ou melhor, ao próprio ordenamento jurídico (princípio da juridicidade) [122], no qual há uma vontade democrática (consenso) juridicamente positivada, no qual os conflitos já foram institucionalizados e absorvidos. Fará parte do consenso procedimental a conformidade com o processo elaborado para a audiência e consulta pública. Dessa forma, a processualidade participativa envolve uma reafirmação do sentido formal do princípio do devido processo legal [123] (due processo of law), consubstanciado no art. 5°, LIV, CF [124].

Para Habermas, o direito exteriorizado e uma moral interiorizada completam-se reciprocamente. Ademais, no sistema brasileiro, especificamente no âmbito do Direito Administrativo, a relação entre a moral e o direito tem um peso significativo, em razão da positivação, no caput do art. 37, do princípio da moralidade, além da relação quanto às questões de probidade e improbidade administrativas (art. 37, §4°, CF) [125]. Dessa forma, é imprescindível que seja observado esse princípio no processo de produção normativa das agências reguladoras.

Em resumo, o processo normativo das agências reguladoras legitima-se pelo procedimento participativo consensual, que tem como principais mecanismos a participação dos titulares de interesses individuais, coletivos e difusos através de audiências e consultas públicas prévias à edição dos atos normativos que possam afetar os seus interesses.

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Sobre o autor
Ricardo Duarte Jr.

Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Professor Substituto da UFRN, Advogado e sócio no Duarte & Almeida Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JR., Ricardo. A legitimidade do Estado regulador brasileiro.: Uma análise democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2633, 16 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17416. Acesso em: 22 nov. 2024.

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