1 - Com a edição da Lei 9.503/97, erigindo à categoria de crime dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano (art. 309), tornou-se imperioso nos meios jurídicos pátrios o questionamento acerca da incidência ou não do delito em tela, quando o condutor, embora habilitado, encontra-se com Carteira Nacional de Habilitação vencida, já tendo, a despeito disto, autor de reconhecida autoridade acenando positivamente pela verificação do crime ora em comento(1).
2 - Contudo, para lograr-se a adequada solução do problema versado, concluindo-se pela incidência ou não do art. 309 referido no caso do condutor com CNH vencida, é imperativo interpretar-se a norma contida no dispositivo em questão, indagando, pois, através da interpretação lógica, a vontade ou intenção objetivada pela lei, considerando-se que, na maioria dos casos, e certamente no presente, a simples perquirição gramatical não é suficiente para exteriorizar-se a extensão e compreensão da imposição legal, sendo necessária, destarte, pesquisa mais profunda, mais rica em subjetividade, que indique qual a real finalidade de sua elaboração, exsurgindo, assim, como prelecionava o insuperável ANÍBAL BRUNO(2), "a imperatividade de investigar os motivos determinantes do preceito, as necessidades e o princípio superior que lhe deram origem", porquanto, completemos as palavras do mestre, por mais clara que seja a letra da lei penal, como qualquer regra jurídica, não prescinde jamais do labor exegético, tendente a explicar-lhe o significado, o justo pensamento, a sua vontade real.
E, para o caso em tela, a interpretação lógica da norma contida no dispositivo em comento, a fim de dar-se-lhe justa solução, entendemos, deve valer-se dos elementos de exegese teleológica doutrinariamente denominados ratio legis e sistemático, conforme passamos a demonstrar doravante.
3 - Por esta linha de raciocínio, ensina DAMÁSIO DE JESUS(3) que a ratio legis trata do "escopo prático da norma, a sua razão finalística, que é alcançada pela consideração do bem ou interesse que visa a proteger".
Trata-se, assim, de buscar a razão da lei, seu sentido, ou, então, como preferia MAGALHÃES NORONHA(4), "a vontade da lei e não a do legislador, pois, na verdade, aquela pode até opor-se a esta".
Neste diapasão, portanto, qual seria a vis legis buscada pelo legislador pátrio ao prever o crime do art. 309 da Lei n. 9.503/97? Por certo garantir a incolumidade pública no que tange à segurança das pessoas no trânsito, coibindo, assim, que pessoas sem a devida autorização para conduzir automotores, estando, pois, presumidamente despreparadas para circular em vias públicas, coloquem em risco o objeto jurídico tutelado pela norma (vida, integridade corporal etc.) (5).
Ora, partindo-se deste pressuposto, não há como afirmar-se que o condutor habilitado, embora com a CNH vencida, seja despreparado para dirigir em via pública, colocando, com isso, a incolumidade de seus pares em risco.
E a conclusão acima se impõe à medida em que o motorista, nesta circunstância, já passou pelo exame necessário à obtenção da habilitação, saindo aprovado e, portanto, apto à condução. Além do mais, mor das vezes, conduz automotor de longa data, sendo motorista experiente e não havendo, por lógica, como aceitar-se a idéia de que a segurança do trânsito encontra-se ameaçada por sua inaptidão, ainda mais quando a renovação de CNH no Brasil, como sabemos, cinge-se a singelos exames de saúde, pouco interferindo, em verdade, na verificação da habilidade do condutor em si.
Infere-se, portanto, que se a ratio legis da norma estampada no art. 309 do CTB é, em linha gerais, a garantia da segurança no trânsito, o entendimento mais adequado, a nosso ver, vai no sentido de que dita segurança somente se encontra ameaçada quando o condutor não possui permissão para conduzir, não possui habilitação, ou encontra-se cassado seu direito de dirigir, não havendo, em tese, pelos motivos acima expostos, qualquer ameaça àquela segurança quando o motorista é tecnicamente habilitado, embora vencida sua CNH, afastando-se, deste modo, no caso presente, o escopo prático de punir a conduta praticada, o que já levara FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO (6) a concluir que o "comportamento humano, para ser típico, não só deve ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito, mas também ser materialmente lesivo a bens jurídicos, ou ética ou socialmente reprovável", motivo pelo qual, entendemos, remanesce in casu tão-somente o ilícito administrativo.
4 - Por outro lado, não fossem suficientes os argumentos até aqui coligidos para denotar-se a inviabilidade em punir-se penalmente a conduta praticada por aqueles que aventuram-se em conduzir automotores com CNH vencida, nos moldes do art. 309 tantas vezes referido, é imprescindível analisar a norma em epígrafe (e via de regra todas o são), ainda, partindo-se do elemento sistemático, eis que, por intermédio dele, coteja-se o preceito interpretado com os das outras normas que regulam o mesmo instituto, ou com o conjunto da legislação e mesmo com os princípios gerais do direito.
Por este prisma, é de observar-se que a norma penal incriminadora contida no art. 309 da Lei n. 9.503/97 prevê punição ao agente que conduzir veículo automotor inserindo-se em alguma das seguintes situações delitivas contidas no tipo: a) não possuir permissão para conduzir; b) não possuir habilitação; c) encontrar-se cassado seu direito de dirigir.
Ocorre, no entanto, que ao prever as infrações administrativas por motivos também relacionadas à habilitação do condutor, o legislador, no art. 162 do CTB, enfaticamente assim as relacionou, aferindo constituírem ilícitos administrativos dirigir veículo automotor em alguma das seguintes situações: I) sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir; II) com Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir cassada ou com suspensão do direito de dirigir; III) com Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir de categoria diferente da do veículo que esteja conduzindo; IV) (vetado); V) com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias (grifamos).
Cabe questionar, assim, o por que da existência de previsão legal expressa na infração administrativa (art. 162), referente à direção com habilitação vencida, e não na infração penal (art. 309)? Seria porquê o legislador pretendeu deixar ao alvedrio do aplicador a possibilidade de interpretar extensivamente o preceito contido no art. 309? Com todo respeito aos entendimentos em contrário, não nos parece nada provável tenha sido esta sua intenção.
Nos parece mais razoável inferir, deste modo, que a intenção foi realmente a de restringir ao ilícito administrativo a hipótese do condutor com documento de habilitação vencida, pois, caso contrário, teria feito previsão expressa quando elaborou o ilícito penal do art. 309, dispositivo este que, ademais, pela simples análise gramatical, denota-se ser cópia resumida do art. 162 do mesmo Diploma, porquanto tenha excluindo, entre outros, o caso do condutor com CNH vencida.
Por outro lado, a entender-se que a lei, quando previu as hipóteses de condução de veículo sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, também pretendeu abranger o condutor que encontra-se com a CNH vencida, casuística esta somente prevista para o ilícito administrativo, estar-se-ia, a nosso ver, aplicando procedimento analógico in malam parten em sede de Direito Penal, que possui tratamento particular em nosso ordenamento, encontrando-se, pois, proibido em relação às normas penais em sentido estrito, quais sejam, as que definem infrações e cominam penas (as denominadas normas penais incriminadoras), pois, como sabemos, à luz dos princípios informativos de nossa sistemática jurídico-penal, não pode a analogia criar figura delitiva não prevista expressamente, em face de contra ela viger a regra da reserva legal em relação ao preceito primário (também em relação ao secundário) das normas definidoras de condutas puníveis.
Destarte, o aplicador do direito não pode lançar mão do suplemento analógico para admitir infração que não esteja expressamente definida e, vale dizer - ressalvadas as hipóteses de normas penais em branco -, com todas as suas elementares (CR/88, art. 5, inc. XXXIX e CP, art. 1º), salvo se, ao assim proceder, incorrer em analogia in bonan partem, o que então será permitido.
A propósito, e para melhor fundamentação, vale salientar que, com base no mesmo princípio e propriedade reconhecida, têm entendido os tribunais pátrios pela inadmissibilidade de interpretação ampliativa em se tratando de norma penal material, como se observa no aresto abaixo colacionado do e. Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, aferindo que "em Direito Penal, o princípio da reserva legal exige que os textos legais sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo quando ´in bonam parte´. Ainda vige o aforismo ´poenalia sunt restringenda´, ou seja, interpretam-se estritamente as disposições cominadoras de pena" (RT 594/365).
5 - Daí resultar, portanto, à guisa de conclusão, que a conduta do motorista, ao dirigir veículo automotor com CNH vencida, não obstante inexista, de acordo com ratio legis estampada na norma, razão lógica para sua punição, também não encontra previsão legal no tipo penal do art. 309 do CTB (nem mesmo em qualquer outro do ordenamento jurídico-penal), sendo, ipso facto, carecedora de tipicidade objetiva (strictu sensu), desaparecendo, em última análise, a própria tipicidade do delito.
NOTAS
- Para Damásio E. de Jesus, desde que presentes as demais elementares do tipo, dirigir veículo automotor com CNH vencida há mais de trinta dias tipifica o delito do art. 309 da Lei n. 9.503/97 (Crimes de trânsito: anotação à parte criminal do Código de Trânsito, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 194).
- Aníbal Bruno, Direito penal, 1978, v. 1, t. 1, p. 216.
- Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, 1998, v. 1, p. 37.
- E. Magalhães Noronha, in Revista Interamericana do Ministério Público, São Paulo, n. 2:35, nov./1956.
- A propósito, apreciando a legislação anterior (LCP, art. 32) - mutatis mutandis também aplicável ao art. 309 do CTB -, firmaram entendimento os tribunais pátrios no sentido de que o interesse jurídico protegido com a punição de condutores inabilitados é a incolumidade pública, relacionada esta à preservação de um número indeterminado de pessoas. Nesta direção, a título exemplificativo: STF, HC 62.196; STJ, REsp 34.322 e 43.322; TACrimSP, ACrim 450.095 e JTACrimSP 92:292.
- Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal, 1986, p. 119.