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A administração pública e a terceirização da atividade-fim

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30/09/2010 às 11:38
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4. Uso da ação popular para combate às terceirizações irregulares

A contratação ilegal de advogados é ato lesivo ao patrimônio e à moralidade administrativa, passível de ação popular, até pelo fato de, virtualmente, haver violação aos princípios do art. 37, "caput" da CRFB.

A margem dos tradicionais instrumentos de controle jurisdicional da Administração Pública, a ação popular tem a vontade de permitir que um único cidadão, sem depender da iniciativa de ente público, como no caso da ação civil pública, obtenha tutela jurisdicional coletiva, com efeitos erga omnes.

A ação popular representa uma das primeiras manifestações do processo civil coletivo no Brasil. Trata-se de singelo instrumento de democracia direta, em que o eleitor interfere, via judicial, nos atos da Administração. Longe de tutelar direito individual, o particular atua como substituto processual na busca pela probidade administrativa, no sentido lato. No ensinamento de Hely Lopes Meirelles, "o beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga" [09]. Nessa toada, o simples fato de, eventualmente, terceiros serem beneficiados com o desate da causa em nada afeta a legitimidade ativa, pois tal efeito colateral não converte o feito de natureza coletiva em individual.

Beneficiários da ação são todos os cidadãos brasileiros, conforme o próprio conceito de ação popular, não sendo possível amesquinhar o alcance da citada ação constitucional, como querem os demandados.

Quanto ao binômio ilegalidade + lesividade, esta não se restringe à seara pecuniária. Novamente, nas palavras de Hely Lopes Meirelles,

Embora os casos mais freqüentes de lesão se refiram ao dano pecuniário, a lesividade a que alude o texto constitucional tanto abrange o patrimônio material quanto o moral, o estético, o espiritual, o histórico. Na verdade, tanto é lesiva ao patrimônio público a alienação de um imóvel por preço vil, realizada por favoritismo, quanto a destruição de um recanto ou de objetos sem valor econômico, mas de alto valor histórico, cultural, ecológico ou artístico para a coletividade local. Por igual, tanto lesa o patrimônio publico o ato de uma autoridade que abre mão de um privilégio do Estado, ou deixa perecer um direito por incúria administrativa, como o daquela que, sem vantagem para a Administração, contrai empréstimos ilegais e onerosos para a Fazenda Pública. Tais exemplos estão a evidenciar que a ação popular é o meio idôneo para o cidadão pleitear a invalidação desses atos, em defesa do patrimônio público, desde que ilegais e lesivos de bens corpóreos ou dos valores éticos das entidades estatais, autárquicas e paraestatais, ou a ela equiparadas.

Desse entender não dissente Bielsa, ao sustentar, em, em substancioso estudo, que a ação popular protege interesses não só de ordem patrimonial como, também, de ordem moral e cívica.

[...]

Entender, restritamente, que a ação popular só protege o patrimônio público material é relegar os valores espirituais a plano secundário e admitir que a nossa Constituição os desconhece ou os julga indignos da tutela jurídica, quando, na realidade, ela própria os coloca sob sua égide (CF, arts. 23, VI, 24, VI, 170, VI e 225) [10].

Sobre o tema, eis precedente do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: AÇÃO POPULAR. ABERTURA DE CONTA EM NOME DE PARTICULAR PARA MOVIMENTAR RECURSOS PÚBLICOS. PATRIMÔNIO MATERIAL DO PODER PÚBLICO. MORALIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 5º, INC. LXXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O entendimento sufragado pelo acórdão recorrido no sentido de que, para o cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se desviar dos princípios que norteiam a Administração Pública, dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inc. LXXIII do art. 5º da Constituição Federal, norma esta que abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o cultural e o histórico. As premissas fáticas assentadas pelo acórdão recorrido não cabem ser apreciadas nesta instância extraordinária à vista dos limites do apelo, que não admite o exame de fatos e provas e nem, tampouco, o de legislação infraconstitucional. Recurso não conhecido.

[RE 170768, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 26/03/1999, DJ 13-08-1999 PP-00016 EMENT VOL-01958-03 PP-00445].

De toda a sorte, faz-se presente a lesividade presumida, vez que a contratação tem um objeto ilícito, que viola a exigência constitucional do concurso público, além de possuir uma justificativa [motivo] juridicamente inadequada, nos termos do art. 2º da Lei 4.717/65:

Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

[...]

c) ilegalidade do objeto;

d) inexistência dos motivos;

Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:

[...]

c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo;

d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;

[...]

Não se pode ignorar, também, o disposto no art. 4º, I da Lei 4.717/65:

Art. 4º São também nulos os seguintes atos ou contratos, praticados ou celebrados por quaisquer das pessoas ou entidades referidas no art. 1º.

I - A admissão ao serviço público remunerado, com desobediência, quanto às condições de habilitação, das normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais.

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Advirta-se que a "admissão ao serviço público, sem observância dos preceitos legais de habilitação, corresponde à presunção legal de ilegitimidade e lesividade, de acordo com o art. 4º, da Lei 4.717/65" [RE 105520, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/05/1986, DJ 01-08-1986 PP-12891 EMENT VOL-01426-02 PP-00311] [11] e, num precedente mais atual também da Suprema Corte, que além de tocar no mérito, avalia a adequação da ação popular para tal fim:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO POPULAR. SERVIDOR PÚBLICO. CONTRATAÇÃO SEM CONCURSO PÚBLICO: NULIDADE. C.F., art. 37, II e IX.

I. - A investidura no serviço público, seja como estatutário, seja como celetista, depende de aprovação em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. C.F., art. 37,

II. A contratação por tempo determinado, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, tem como pressuposto lei que estabeleça os casos de contratação. C.F., art. 37, IX. Inexistindo essa lei, não há falar em tal contratação.

III. - R.E. conhecido e provido.

[Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº 168566/RS].


Conclusão

A eficiência é um princípio e objetivo da Administração, mas sua consecução deve obedecer aos demais preceitos constitucionais, notadamente, a exigência de concurso público. A terceirização é um importante instrumento de gestão administrativa e concentração. Contudo, só pode ser utilizada para atividades de apoio, distintas da atividade-fim, sob pena importar em burla à exigência constitucional do concurso público, o que pode ser questionado, inclusive, via ação popular, face à presumida lesividade de tal proceder.


Notas

  1. Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
  2. § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

    I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;

    II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

    III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

    [...]

  3. Art. 25. Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2° e sem restrições infundadas:
  4. [...]

    c) de ter acesso em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

  5. GRUPO I - CLASSE VII – PLENÁRIO. TC-020.784/2005-7. Natureza: Representação. Órgão: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Responsável: Paulo Bernardo Silva (Ministro). Interessada: Segecex.
  6. Sumário: REPRESENTAÇÃO. PROPOSTA APRESENTADA PELO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO PARA SUBSTITUIÇÃO DE TERCEIRIZADOS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL DIRETA AUTÁRQUICA E FUNDACIONAL POR SERVIDORES CONCURSADOS. CONHECIMENTO. PRORROGAÇÃO DOS PRAZOS ANTERIORMENTE CONCEDIDOS PELO TRIBUNAL SOBRE A QUESTÃO. DETERMINAÇÕES.

  7. Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada.
  8. [...]

    § 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

  9. MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 13ª ed., 2002, p. 114.
  10. Tribunal de Contas da União. Voto vencedor do Relator Lincon Magalhães da Rocha , no Processo TC-575.395/92-3, j. em 05.10.1994.
  11. Art. 114.  O sistema instituído nesta Lei não impede a pré-qualificação de licitantes nas concorrências, a ser procedida sempre que o objeto da licitação recomende análise mais detida da qualificação técnica dos interessados.
  12. § 1º  A adoção do procedimento de pré-qualificação será feita mediante proposta da autoridade competente, aprovada pela imediatamente superior.

    § 2º  Na pré-qualificação serão observadas as exigências desta Lei relativas à concorrência, à convocação dos interessados, ao procedimento e à analise da documentação.

  13. Tribunal de Contas da União. TC. 005.852/94-3. No mesmo sentido: TCU, decisão nº. 161/95 – 1ª Câmara, 11 jul. 1995. Relator: Ministro Carlos Átila Álvares da Silva, DOU 24.07.95.
  14. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança: ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, "habeas data", ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 126.
  15. Op. cit., p. 123-130.
  16. Em igual sentido: "O entendimento de que, para o cabimento da ação popular, basta a demonstração da nulidade do ato administrativo não viola o disposto no artigo 153, parágrafo 31, da constituição, nem nega vigência aos arts. 1. E 2. Da lei 4717/65, como já decidiu esta corte ao julgar caso análogo ( re 105520). - dissídio de jurisprudência não demonstrado. Recursos extraordinários não conhecidos". [RE 113729, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/03/1989, DJ 25-08-1989 PP-13558 EMENT VOL-01552-02 PP-00272].
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Sobre o autor
Rafael Soares Souza

Juiz Federal Substituto - Especialista em Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Rafael Soares. A administração pública e a terceirização da atividade-fim. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2647, 30 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17523. Acesso em: 26 abr. 2024.

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