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Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e agrobusiness.

Centralização administrativa em detrimento dos imperativos de precaução, publicidade e autonomia federativa no âmbito da política nacional de meio ambiente

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5. INCONSTITUCIONALIDADES OBSERVADAS NO ÂMBITO DA LEI 11.105/05

Ao final de nossa análise, chegamos à conclusão de que o art. 10, caput, e parágrafo único; bem como, o art. 14, incisos IV, VIII, e XX, e ainda, os parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, todos do Capítulo III, da Lei 11.105/05, são inconstitucionais, por violarem de forma expressa o art. 23, inciso VI da CF/88.

Desrespeitam a competência comum ali instituída em favor da União, dos Estados e do Distrito Federal, e dos Municípios, para protegerem o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, na medida em que concedem à CTNBio, a prerrogativa para decidir, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como, sobre a necessidade do licenciamento ambiental e a conseqüente realização de EPIA/RIMA, audiências públicas, e de outras providências cabíveis para a plena e efetiva proteção da comunidade.

Ainda, em nossa opinião, os mesmos dispositivos acima indicados, violam o art. 225, caput e inciso IV, da CF/88, ao delegarem à CTNBio a competência para deliberar se o OGM é potencialmente causador de significativo impacto ambiental, nos termos em que, passaremos a apresentar.

5.1 Afronta ao Princípio Federativo

Os dispositivos do Capítulo III, da Lei 11.105/05, acima assinalados, afrontam a competência comum dos entes federados para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.

Como se sabe, o Estado federal foi uma criação do constitucionalismo norte-americano, preocupado em instituir uma instância central, capaz de dar unidade e sentido ao plexo de interesses que permeava o conjunto das antigas colônias. Como se sabe, mesmo sob a autoridade da Coroa inglesa, as colônias experimentaram uma situação de grande autonomia, e, não obstante o fracasso inicial do modelo Confederativo, não estavam dispostas a abrir mão da maioria de suas prerrogativas políticas, em prol de um poder autocrático e centralizador que poderia resultar da União.

Chegou-se então a um modelo semelhante àquele proposto para o equilíbrio dos próprios poderes estatais (ou "competências", já que o poder é uno e indivisível, expresso pela soberania popular), e que se tornou conhecido pela expressão "freios e contra-pesos".

Ou seja, o federalismo implica fundamentalmente em uma técnica de distribuição do poder político em face de um critério territorial, pautado no reconhecimento da autonomia, singularidade e equiparação de todos os Estados que em seu conjunto contribuem para a formação da vontade da União. Isto se dá por meio de um espaço de representação legislativa específico - o Senado Federal -, e pela técnica de distribuição de competências instituída pelo constituinte originário.

Enfim, a existência de um órgão específico de representação legislativa dos Estados, e a distribuição constitucional de competências são as características essenciais do Estado federativo, cujo valor político-constitucional é tão elevado, que o nosso constituinte originário fez questão de instituí-lo como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, da CF/88).

Aliás, a Constituição brasileira foi um pouco além, instituindo uma condição especial também aos Municípios, dando-lhes uma posição de destaque em nosso federalismo, como se percebe da leitura do art. 1º da CF/88, quando se diz: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...".

Tal condição peculiar foi reafirmada no art. 23 (com referência explícita à proteção ambiental e combate à poluição), que trata da distribuição espacial de competências, por meio da chamada "competência comum", ao instituir-se que: "É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas".

Por meio desse dispositivo, claro está a atribuição de um verdadeiro "poder-dever", e não simplesmente uma recomendação ou uma faculdade.

Ao instituir competências em comum, quis o constituinte originário proteger um determinado conjunto de bens jurídicos de forma especial, exigindo que todas as instâncias político-administrativas estatais coordenassem seus esforços no sentido de atingir-se, da melhor forma possível, com o máximo de segurança, os objetivos ali estabelecidos.

Nesses termos, resta-nos claro a impossibilidade jurídico-constitucional de uma norma infra-constitucional condicionar ou limitar as competências instituídas em favor dos entes federados pela Constituição Federal.

Trata-se, na realidade, de um atributo concedido pelo poder constituinte originário em caráter irrevogável (protegido por cláusula pétrea por ser elemento estruturante do próprio Estado federal – I, § 4º, 60), e irrenunciável, até mesmo pelo poder constituinte decorrente ou por seu legislador ordinário - como de resto, já se manifestou a respeito, o próprio Supremo Tribunal Federal, em matéria envolvendo organismos geneticamente modificados. [29]

Neste sentido, a contrário senso, ressalta a toda evidência que, na medida em que diversos dispositivos da Lei 11.105/05 submetem a competência constitucional de Estados e Municípios à decisão prévia e vinculante da CTNBio, são flagrantemente inconstitucionais.

5.2. Prerrogativas do Estado Federal e Licenciamento Ambiental

Parece-nos que o objetivo do constituinte, ao estabelecer um sistema de competências em comum às diversas entidades que compõem a federação brasileira, foi o de estimular o surgimento e o desenvolvimento de um sistema de coordenação de esforços entre essas diversas instâncias, atribuindo-se, inclusive a Estados e Municípios, uma responsabilidade material administrativa mais incisiva, por estarem estes mais próximos do bem jurídico em favor do qual foi instituída proteção especial, concedendo aos órgãos da União uma função meramente supletiva.

Aliás, corroborando com este entendimento, não podemos nos esquecer que a chamada ordem jurídico-ambiental brasileira tem sido caracterizada por seu dinamismo e permanente aperfeiçoamento.

Começou a desenvolver suas características mais importantes ainda no âmbito da Carta Constitucional de 1967-69, ao editar-se a Lei 6938/81, tão avançada e adequada às nossas preocupações ambientais, que foi plenamente recepcionada pela CF/88.

O núcleo fundamental da Lei 6938/81 pode ser fixado em torno da instituição de uma Política Nacional de Meio Ambiente que teria por objetivo a preservação, a melhoria e a recuperação das condições ambientais plenamente adequadas à manutenção da vida, buscando assegurar as condições necessárias ao nosso desenvolvimento econômico, aos interesses de segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.

Dada a recepção da lei pela CF/88, tais princípios se conjugam com aqueles predispostos no art. 225 da Lei fundamental, que impõe a manutenção do equilíbrio ecológico e a proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas de nossa biodiversidade e o controle das atividades, potencial e efetivamente, poluidoras – dentre as quais se incluem, de maneira insofismável, a pesquisa, manipulação, produção, comercialização, transporte, liberação e descarte de OGM e derivados.

Neste sentido, nos parece evidente a opção do legislador ordinário de 1981, reafirmada pelo constituinte originário de 1988, pela instituição de um sistema nacional de meio ambiente, responsável pela coordenação das iniciativas dos diversos entes federados, em regime de cooperação, por meio dos seus órgãos e entidades, na realização de metas, princípios e valores ambientais, agora chancelados com status constitucional qualificado – visto que, a defesa do meio ambiente concretiza uma nova dimensão jurídica de natureza "intergeracional", na medida em que, o meio ambiente, deve ser defendido e preservado "para as presentes e futuras gerações".

Foi este o sentimento que, ainda no âmbito da Lei 6938/81, determinou a criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).

Em seu interior, fica claro o respeito às prerrogativas estaduais no que tange à função de fiscalização e controle das atividades, efetiva ou potencialmente, causadoras de degradação ambiental, cabendo aos órgãos estaduais competentes integrantes do SISNAMA, a importantíssima função de atuar no âmbito do licenciamento ambiental, cabendo ao órgão federal competente (IBAMA), atuação meramente supletiva – e ainda assim sem prejuízo de outras licenças exigíveis. [30]

Dessa forma, é absolutamente inconstitucional a previsão do § 2º do art. 16 da Lei 11.105/05 – que produz repercussões jurídicas diretamente sobre os dispositivos do seu capítulo III, nos artigos, parágrafos e incisos acima apontados – condicionando a realização de licenciamento ambiental por parte dos órgãos estaduais à prévia classificação, pela CTNBio, do OGM ou derivado como potencialmente capaz de provocar degradação ambiental. Este foi, por exemplo, o entendimento expresso pelo Procurador Geral da República ao interpor a ADI, n. 3526/05, contra diversos dispositivos da Lei 11.105/05:

"Por essas razões se extrai uma visão sistêmica de tais matérias ligadas por nexo causal a órgãos e entidades públicas vinculados à União, Estados e Municípios, em regime de cooperação permanente. Não é por outro motivo que há o Sistema Único de Saúde, o Sistema Nacional de Meio Ambiente, o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, o Sistema Nacional de Trânsito, entre tantos outros. Trata-se de estruturar os meios que possibilitem a mais completa cooperação dos integrantes da Federação na execução das políticas públicas. Com vistas a cooperação dos entes federados a Lei n. 6.938/81 dispõe que os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA [...] Pode-se afirmar que aos órgãos do SISNAMA atribui-se a responsabilidade pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, tendo em vista ter sido ele criado com o fim de operacionalizar, de dar efetividade e eficiência à proteção ambiental. Assim, face às disposições constitucionais, não cabe aos Municípios e aos Estados pedir autorização à União para exercerem o poder de polícia administrativa, para organizarem seus serviços administativo-ambientais ou para aplicarem os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, entre os quais se inclui o licenciamento ambiental. A atuação obrigatória de todos os entes federados para a proteção ambiental decorre diretamente da Constituição Federal [...] Se a todos os entes da Federação é exigida a proteção do meio ambiente, é inconstitucional o impedimento criado na lei de biossegurança para que os Estados e Municípios deliberem sobre a necessidade de licenciamento ambiental de produtos ou sementes oriundas de organismos geneticamente modificados. Afinal, todos os membros da federação têm o dever constitucional de zelar pelo meio ambiente e, por conseguinte, de avaliar os impactos ambientais de qualquer atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental". [31]

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Na mesma linha de raciocínio (competência comum para exercer funções de polícia administrativa em matéria ambiental) se coloca o art. 225 da CF/88, quando exige do Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

A menos que se queira entender por "Poder Público" exclusivamente os órgãos da União – hipótese implausível – não há como se deixar de conectar o dispositivo previsto no caput do art. 225 com o art. 23, ambos da CF/88.

Ademais, temos que reconhecer que, não obstante o caráter inovador e vanguardista da Lei 6938/81, para as circunstâncias políticas em que foi instituída (ditadura militar) e para a consciência social predominante em seu tempo (na medida em que as preocupações ambientais suscitadas pelo modelo industrial degradante a pouco tinham se iniciado nos países centrais, sendo na época, uma preocupação distante para o grosso das sociedades situadas na "periferia" do sistema capitalista), a CF/88 não apenas a recepcionou, mas teve a expressa intenção de ir muito além dela. Tanto que optou pela ampla constitucionalização dessa matéria, até então tratada sistematicamente apenas em nível infra-constitucional.

É por isso que, em nossa opinião, toda razão assiste ao Procurador Geral da República quando afirma que, em matéria de licenciamento ambiental, "competências constitucionais, outorgadas aos entes federados, não podem ser alteradas ou restringidas por norma infraconstitucional. Desta feita, estão eivados de inconstitucionalidade os incisos IV, VIII, XX e § 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, e 6º, do art. 14; o § 1º, inciso III e §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, do art. 16, art. 37, todos da Lei n. 11.105/05, que condicionam o exercício das competências constitucionais ambientais dos Estados e dos Municípios à decisão da Comissão Técnica de Biossegurança – CTNBio". [32]

Talvez mais sério ainda sejam os efeitos provocados por essa disposição da nova Lei de biossurança que, na prática, retira a competência do Sistema Nacional de Meio Ambiente para avaliar o impacto ambiental decorrente da liberação e descarte de OGM e derivados no meio ambiente - na medida em que, atribuí exclusivamente à CTNBio, a prerrogativa para decidir sobre a necessidade ou desnecessidade de se proceder o respectivo licenciamento ambiental.

Insinua-se, pois, um sério desequilíbrio no processo de tomada de decisões com relação aos OGMs, resultando no afastamento das precauções necessárias para avaliar-se, em nome de toda a sociedade, as conseqüências produzidas pela introdução de novas tecnologias fundadas na manipulação de material geneticamente modificado, no âmbito dos complexos e instáveis ecossistemas existentes em nosso país.

Acaba-se, dessa forma, por fragmentar-se o processo de licenciamento ambiental, atribuindo a competência para se decidir acerca de sua necessidade, a um órgão (CTNBio) que sequer compõe o SISNAMA, colocando na berlinda o instrumento do licenciamento ambiental - o mais importante dispositivo de biossegurança introduzido pelo Lei 6938/81.

Concluímos então que a nova Lei de biossegurança quis suspender a eficácia da lei que instituiu a política nacional de meio ambiente, com o intuito de esvaziar a competência normativa atribuída ao CONAMA - condicionando o futuro licenciamento de OGM e derivados, a juízo prévio vinculativo emitido pela CTNBio.

A realização do licenciamento deixa então de ser exigida em razão da atividade desenvolvida pelo requerente, sujeitando-se agora, a um juízo discricionário e opinativo (visto não possuir a Comissão os elementos técnicos e humanos para proceder tal avaliação de forma cientificamente exaustiva como já tivemos oportunidade de expor neste trabalho) de uma Comissão do Ministério da Ciência e Tecnologia que, em princípio, deveria possuir papel meramente normatizador e consultivo – papéis que de maneira nenhuma lhe atribuiriam o poder para decidir sobre a conveniência de se proceder o respectivo licenciamento ambiental.

Afastou-se a incidência do importantíssimo art. 10, da Lei 6938/81. Termos em que, novamente recorremos às sábias palavras do Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, para quem "não há dúvida de que os OGMs podem causar significativo impacto no meio ambiente pela simples razão de que toda semente geneticamente modificada é, em princípio e por natureza, potencialmente causador de significativo impacto ambiental. E exatamente por essa razão que o Congresso Nacional está aprovando uma lei de gerenciamento dos riscos associados a manipulação genética. Portanto, a sua exclusão do processo de licenciamento ambiental é um precedente perigoso para a manutenção do equilíbrio ecológico e dos princípios que norteiam o desenvolvimento sustentável, como o princípio da precaução e o da obrigatoriedade da exigência do Estudo Prévio de Impacto Ambiental como condição para a liberação de OGM no meio ambiente". [33]

5.3. Da Inobservância do Princípio da Precaução em Razão da Dispensa do Estudo Prévio de Impacto Ambiental

Não há possibilidade de afastarmos, em sede de liberação e descarte de OGM e derivados, a existência de um alto grau de incerteza científica com relação aos seus possíveis (e negativos) reflexos no meio ambiente - e para a saúde humana de uma maneira geral.

Por isso nos parece imprescindível para a autorização e liberação de atividades envolvendo OGM, a sua subsunção ao "princípio da precaução", verdadeira viga mestra do moderno Direito Internacional do Meio Ambiente, com reconhecimento pátrio em nível constitucional e ordinário – de conformidade com o próprio art. 1º caput, da Lei 11.105/05.

"O princípio da precaução está ligado aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras, como também de sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Este princípio é a tradução da busca da proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como pelo asseguramento da integridade da vida humana. A partir dessa premissa, deve-se também considerar os riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, os quais nossa compreensão e o atual estágio de desenvolvimento da ciência jamais conseguem captar em toda densidade". [34]

Em âmbito internacional, tal princípio foi instituído pela Declaração do Rio, quando da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e Desenvolvimento – Rio/92, que o elegeu como um princípio fundamental de direito ambiental internacional. [35]

Em razão do princípio da precaução, deduz-se que o ônus da prova em matéria ambiental dava ser, em determinados casos, em razão da atividade que se deseja empreender, necessariamente invertido.

Afinal de contas, não poderia ser diferente, visto que, caso a atividade venha posteriormente a causar efetivamente alguma forma de degradação ambiental, seria impossível retornar-se ao status quo ante. Ou seja, seria tarde demais para se impedir ou prevenir as suas perversas – e muitas vezes irreparáveis - conseqüências. [36]

Exatamente por isso, o Protocolo de Cartagena, que entrou em vigor em 11.09.2003, tendo o Brasil ratificado a convenção em 22.02.2004, prescreve em seu art. 11, n. 8, que "a ausência de certeza científica devida à insuficiência das informações e dos conhecimentos científicos relevantes sobre a dimensão dos efeitos adversos potenciais de um organismo vivo modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica na parte importadora, levando também em conta os riscos para a saúde humana, não impedirá esta parte, a fim de evitar ou minimizar esses efeitos adversos potenciais, de tomar uma decisão, conforme o caso, sobre a importação do organismo vivo modificado destinado ao uso direto como alimento humano ou animal ou ao beneficiamento".

O Protocolo de Cartagena foi especialmente focado nas questões sobre biossegurança, relativas ao movimento trans-fronteiriço de qualquer organismo vivo modificado, resultante da biotecnologia moderna, que possa ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica.

Em função disso, procurou estabelecer procedimentos apropriados para o resguardo de todas as partes envolvidas no comércio internacional que contenha tais substâncias.

"Em linhas gerais, o Protocolo expressa a preocupação de se evitar a perda da diversidade biológica, bem como os riscos para a saúde humana, que potencialmente podem ser causados com a utilização das novas tecnologias biológicas, principalmente em países em desenvolvimento, que possuem capacidade reduzida de controlar a natureza e a magnitude dos riscos conhecidos e potenciais derivados dos organismos geneticamente modificados. Ao disciplinar a questão da biossegurança, o Protocolo enfrenta a árdua tarefa de equilibrar e disciplinar duas áreas imiscíveis: os poderosos interesses econômicos das corporações por detrás da biotecnologia e os interesses da conservação da diversidade biológica e da proteção da saúde humana e ambiental". [37]

Com base no conjunto dessas disposições percebemos que, a incerteza cientifica, sob o pálio do princípio da precaução, deve ser colocada ao lado da conservação do meio ambiente, tornando-se assim, indispensável, nas atividades potencialmente sujeitas a riscos, a elaboração do estudo prévio de impacto ambiental.

Esta é a dicção constitucional, que exige a realização de estudo prévio de impacto ambiental como condição para instalação de atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente.

Ora, a própria Lei 11.105/05, ao definir em seu art. 27, a liberação ou descarte de OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização, sujeitando os infratores a pena de reclusão de 01 a 04 anos, já tratou de admitir o conjunto da atividade como capaz de produzir "significativo impacto ambiental".

Por outro lado, muitos dos apologetas dos interesses das grandes corporações transnacionais de biotecnologia costumam se escudar exatamente por detrás do caráter fluido e indeterminado do conceito de "significativo impacto", para tergiversar sobre a obrigatoriedade de se respeitar o princípio da precaução e os procedimentos a ele inseparavelmente associados – como a realização de estudos prévios de impacto ambiental.

Alegam os críticos do caráter obrigatório do EPIA/RIMA que, por ser fluído e indeterminado este conceito, se poderia delegar para a autoridade administrativa decidir em que momento e sob quais circunstâncias ele se faria presente, não havendo, portanto, nenhuma irregularidade em delegar tal função para a CTNBio.

Neste ponto, nos colocamos ao lado da PGR, para quem "não se pode esquecer que a exigência de EIA para atividades que possam causar ‘significativo impacto ambiental’ possui alcance constitucional e, embora a expressão ‘significativo’ traduza um conceito fluido ou indeterminado, isso não quer dizer que a administração possa inventar conceito próprio ou desbordar da finalidade prevista no art. 225, inciso IV, da Constituição Federal. Este, aliás, é o ponto central da discussão sobre o controle judicial dos atos administrativos que demanda, invariavelmente indagar sobre a extensão da discricionariedade e o limite dos conceitos indeterminados utilizados pela lei para a sua correta execução. Ora, se toda planta geneticamente modificada, em princípio, pode expressar características não desejadas pela alteração artificialmente feita em seu genoma, isso implica dizer que ela será sempre potencialmente causadora de significativo impacto ambiental. Têm-se aqui uma zona de certeza positiva, logo inconteste, quanto a ser qualquer OGM potencialmente causador de modificações negativas no ambiente, sendo inconstitucional a delegação, dada intencionalmente pela lei, à um órgão do segundo escalão da administração para que possa dizer, em última instância, o que o OGM não é ou, pior, que tenha poderes discricionários para dizer o que todo OGM é pela sua natureza". [38]

Outro ponto no qual tentam se agarrar os defensores do caráter vinculante atribuído ao parecer da CTNBio e à faculdade a ela conferida pela Lei de biossegurança para dispensar a realização de estudos prévios de impacto ambiental repousa na expressão, "na forma da lei", presente no texto do referido inciso IV, do § 1º, do art. 225 da CF/88.

Argumentam que o legislador constitucional teria criado aqui uma reserva legal específica, por meio da qual caberia ao legislador ordinário decidir, por seu prudente arbítrio, em que situações poderia a lei exigir, ou dispensar, a realização da respectiva avaliação.

Todavia, tal argumentação não procede em hipótese alguma. O próprio STF já decidiu em outra oportunidade, quando do julgamento da ADI n. 1.086-7/SC, que a expressão "na forma da lei" diz respeito à forma pela qual se produzirá o respectivo estudo prévio de impacto ambiental, e de forma alguma, diz respeito às situações em que a exigência seria possível, visto que, tal exigência está expressa no texto da CF/88 sem qualquer exceção. Tal entendimento foi também emitido por outros órgãos da Justiça Federal, quando do julgamento de matéria relativa a OGM e derivados. [39]

Há que se observar ainda que, ao permitir-se que a CTNBio decida sobre a conveniência e oportunidade de promover audiências públicas (art. 15, caput e, parágrafo único da Lei 11.105/05), afastou-se uma das dimensões elementares da democracia em um Estado de Direito como o nosso (art. 1º, caput, da CF): a intervenção direta da população na formação da vontade política do Estado por meio de instrumentos que caracterizam a chamada "democracia participativa".

Segundo Fonteles, "o mecanismo de integração comunitária em determinadas decisões do Estado constitui expressão genuína da democracia participativa, propiciando o reflexo da pluralidade social junto ao Poder Político. Pode-se afirmar, pois, que o princípio da participação é elementar ao próprio Estado Social de Direito, constituindo importante mecanismo de legitimação da atuação estatal. No tocante ao procedimento de licenciamento ambiental de atividades potencialmente degradantes, a participação comunitária, corolário da democracia participativa, encontra-se devidamente prevista em audiências públicas, como decorrência direta do disposto no art. 225, caput, da CF. Ora, ao suprimir o procedimento de licenciamento ambiental em eventos transgêncios, o § 2º, do art. 16 da Lei 11.105/05 frustra a própria participação comunitária, subtraindo importante faceta do princípio democrático (democracia participativa), imanente à idéia de Estado de Direito". [40]

Em nossa opinião, a realização de audiências públicas se torna especialmente importante em razão da própria natureza de delegação legislativa conferida por normas jurídicas como a Lei 11.105/05, que transfere para órgãos técnicos de segundo escalão, sem nenhuma legitimidade popular, o poder de decidir-se sobre aspectos cruciais para o presente e futuro da comunidade.

Sem expedientes como as audiências públicas, este tipo de "lei atributiva", gira, inevitavelmente, em torno de um déficit de legitimidade tão significativo que raia a esfera do autoritarismo.

Sem a obrigatoriedade de audiências públicas, nos parece que o poder normativo – independentemente do caráter vinculante dos pareceres técnicos da Comissão, que para nós, serão sempre e inevitavelmente inconstitucionais –, atribuído pela Lei 11.105/05 à CTNBio, constitui exemplo flagrante de "excesso de delegação" legislativa.

"Cremos que a previsão normativa de realização de audiência pública por solicitação da sociedade é primordial para o atendimento do princípio democrático em decisões de órgãos administrativos que possam afetar interesses gerais, já que resgata o "déficit democrático"surgido com a atribuição, pelo poder legislativo, de competências normativas a órgãos administrativos, delineadas apenas por parâmetros relacionados, no mais das vezes, a conceitos jurídicos indeterminados. São as "leis quadro"ou standarts, conforme as denomina a doutrina. A tomada de decisão de afetação de interesses gerais por órgãos administrativos – que carecem de representatividade, ainda que possuam em sua estrutura representantes da sociedade -, sobretudo em se tratando do destino de um bem de uso coletivo do povo, deve sempre ser precedida de audiência pública". [41]

Sendo assim, para nós, resta claro que a Lei 11.105/05, ao autorizar a CTNBio a dispensar o EPIA/RIMA com base em seu entendimento discricionário acerca da potencialidade causadora de significativo impacto ambiental, dispensando o regular processo de licenciamento ambiental e a realização de audiências públicas, incidiu em flagrante desrespeito ao inciso IV, do § 1º, do art. 225 da CF/88.

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Sobre o autor
José Carlos Evangelista de Araújo

Advogado. Graduado em Direito e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Direito Constitucional e Doutorando em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional, leciona também Direito Administrativo, Direito Internacional Público e Privado nos cursos de Direito e Relações Internacionais das Faculdades de

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, José Carlos Evangelista. Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e agrobusiness.: Centralização administrativa em detrimento dos imperativos de precaução, publicidade e autonomia federativa no âmbito da política nacional de meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2663, 16 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17530. Acesso em: 20 abr. 2024.

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