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A obrigatoriedade do Orçamento Participativo no Município.

A (não) efetividade em discussão

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05/10/2010 às 09:48

Resumo:


  • A democracia participativa, fortalecida pela adoção do Orçamento Participativo, é um avanço no exercício da democracia, permitindo uma interlocução direta entre administração pública e população.

  • O Orçamento Participativo é uma imposição legal para os municípios brasileiros, conforme a Constituição Federal de 1988 e outras legislações como o Estatuto da Cidade, mas seu cumprimento efetivo ainda encontra resistência.

  • Para a efetividade do Orçamento Participativo, é essencial que a sociedade seja educada politicamente, conscientizando-se de seus direitos fundamentais e do poder de influenciar as decisões públicas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

INTRODUÇÃO

Democracia participativa, controle social, cidadania e outros termos são comuns hoje na linguagem das sociedades, em busca do aperfeiçoamento dos mecanismos de fortalecimento das práticas democráticas na gestão pública. Há uma preocupação, por intermédio desses esforços, de consolidação da chamada democracia semidireta, posta como caminho para que o cidadão não apenas acompanhe o mais amplamente possível o que ocorre na administração pública, mas dela participe por vários meios. A intenção é de assegurar a contrapartida em forma de serviços públicos de qualidade às obrigações de natureza tributária que lhes são impostas.

O desejo de controle e participação na coisa pública não vem de hoje, como se procura demonstrar no primeiro capítulo deste trabalho, em que se relata a experiência da Grécia Antiga. Naquela época ocorria a prática da democracia direta, na praça pública, em que a comunidade se reunia com os governantes para tratar das questões de interesse coletivo. Faz-se uma síntese da evolução da democracia da ágora à democracia do agora, passando pelas fases que culminaram com o quadro que se tem na atualidade.

As nações foram se tornando mais complexas, impossibilitando a permanência da democracia direta, o que resultou na adoção da chamada democracia representativa, que não correspondeu totalmente à sua finalidade. Nas populações, a constatação foi de que não se achavam representadas satisfatoriamente no parlamento, o que motivou o estabelecimento, sobretudo a partir do início da segunda metade do século XX, dos instrumentos de democracia semidireta. Entre eles, pode-se incluir o Orçamento Participativo OP), uma experiência em desenvolvimento, aplicada no Brasil (a partir da década de 1970, tema desta monografia, focada no âmbito do Município.

Apesar do tempo decorrido, o OP no Brasil ainda é pouco (e mal) utilizado, mesmo nos Municípios, nos quais é legalmente obrigatório. O problema que se coloca, então, é por que o atendimento a essa exigência legal não acontece. Quais as causas desse descumprimento? O que pode ser feito para modificar essa situação? O que precisa ser discutido e aperfeiçoado com relação ao assunto? O que é indispensável saber ou o que é controvertido quanto a ele?

Buscar respostas a esta problemática é a proposta desta monografia, que, para atender a esse fim, requer, primeiramente, uma abordagem preliminar até se chegar ao foco principal pretendido com a escolha do terma.

Nesta linha de raciocínio, no primeiro capítulo, na abordagem histórica a respeito de democracia, trata-se dos instrumentos assecuratórios do exercício da democracia participativa, para, então, voltar-se para o Orçamento Participativo. Com esse objetivo, recua-se no tempo, para falar sobre a instituição do Orçamento Público, sua natureza e objetivos. Utiliza-se essa forma de abordagem como base metodológica para se referir, então, ao Orçamento Participativo, como uma das inovações na elaboração e discussão das leis orçamentárias públicas.

O capítulo 2 está voltado para o Orçamento Participativo no Brasil, do ponto de vista da legislação que lhe proporciona sustentação, indo da Constituição Federal de 1988, passando pelo Estatuto da Cidade e outros documentos legais, até projetos em andamento no Congresso Nacional capazes de reforçar a sua legitimidade e sua obrigatoriedade legal no contexto da Municipalidade.

Essa fundamentação da natureza jurídica é aprofundada no capítulo 3, com avaliação da efetividade desse aparato legal que situa o Orçamento Participativo como obrigatório nos municípios. Buscam-se as razões da não efetividade dessa obrigatoriedade e os caminhos que poderão reverter este quadro, a partir do comportamento dos agentes envolvidos direta ou indiretamente com a questão. Cumprida essa etapa do trabalho, o ponto seguinte é que a existência de instrumentos legais de cidadania seja acompanhada de uma cobrança, por parte da sociedade, da efetiva utilização deles.

Nessa perspectiva, mostra-se que não basta apenas legislar, mas educar a população para a cidadania, tornando-a conhecedora e convicta dos direitos que tem nesse sentido. Defende-se, aí, a necessidade de educação para a cidadania, a partir dos segmentos mais jovens da população, a partir da escola, com a adoção da Pedagogia do Cotidiano. A constatação que se faz hoje, no Brasil, para efeito de exemplificação, é que o povo não desfruta dos muitos direitos que lhe são garantidos constitucionalmente por desconhecerem a sua existência.

Concluído o capítulo 3, parte-se para as considerações finais, não com a ousadia de inovar a doutrina referente ao Orçamento Participativo, já tão estudado no país. O desejo é apenas de sintetizar pontos que possam suscitar novos debates sobre a importância de cumprir o que a legislação dispõe quanto à obrigatoriedade do Orçamento Participativo.


1 DEMOCRACIA E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

Quando se fala na utilização do Orçamento Participativo, não se pode abstrair o seu vínculo profundo com a democracia, por se constituir em um processo de a população intervir na definição de itens fundamentais das leis orçamentárias, principalmente os que dizem respeito à fruição dos direitos sociais. Uma das premissas de um estado democrático de direito é que a dignidade humana se coloque como ponto fundador da ordem constitucional. Vista nesta ótica, democracia, para poder ser assim denominada, deve se configurar como a garantia de atendimento aos direitos fundamentais da criatura humana, tais como trabalho, educação, habitação, saúde e outros.

A implementação de políticas públicas voltadas para o alcance de metas e indicadores nessas áreas tem que estar permanentemente vinculada ao alcance de metas e indicadores que, de fato, venham a conduzir para a redução gradativa das desigualdades sociais, que, se não ocorrer, representará a manutenção de um status quo indigno de ser considerado democrático.

Para atingir os seus fins, um governo para o povo, com o povo e para o povo, como acentuava o presidente norte-americano Abraham Lincoln, a democracia precisa de se apoiar não somente nas vias institucionais existentes, fortalecendo-as, mas implantar outras. A democracia que se pretende hoje é aquela que se reflita não só nas constituições e nas leis, mas nas realidades sociais, pois somente assim ela se efetiva, sai do papel para usar uma expressão clara. Pressupõe a recorrência aos princípios já consolidados na Administração pública, com destaque para a moralidade, a legalidade, a transparência, a legitimidade e, nos dias atuais, um alto índice de profissionalismo capaz de apresentar, nos atos administrativos, eficácia, eficiência e efetividade.

Não pode dispensar a participação popular, por meio do direito de petição, do direito de iniciativa de projeto de lei, do Orçamento Participativo, entre tantos outros. É assim que se concretiza o controle social, significativo para estimular a gestão pública ao atingimento desses propósitos, que são muito mais do que intenções políticas, princípios que são da moderna Administração pública. Numa democracia o poder não pode ficar isolado na mão dos políticos, mas compartilhado com os vários segmentos da sociedade o que, para muitos, ainda pode parecer uma utopia, mas é o grande projeto que, com avanços e recuos, vai amadurecendo no mundo atual.

A propósito, num testemunho de sua experiência com Orçamento Participativo à frente da prefeitura de Porto Alegre, Tarso Genro é taxativo quanto a essa separação:

Creio que a principal conquista democrática da revolução burguesa, (...) foi a separação da estrutura formal do Estado com a sociedade, uma separação fundamental para a afirmação das grandes democracias modernas. É necessário hoje que reforcemos esta separação, reforcemos pela conferência de identidade pública clara e transparente aquilo que é Estado e aquilo que é sociedade. E para conferir identidade pública à sociedade, tem ela que estar estruturada e organizada para dialogar com o Estado e referir-se a ele enquanto sociedade civil e criar uma esfera pública não estatal, onde Estado e sociedade estabeleçam seus conflitos, seus conceitos, seus consensos (GENRO, 1997, p. 18).

Este espírito de justiça social, emblemático como proposta para uma democracia real, cidadã é positivado com firmeza na Constituição Federal de 1988, logo no seu art. 3º:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I –constituir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Tais objetivos fundamentais evidentemente dizem respeito diretamente ao interesse popular de que sejam realmente perseguidos, o que, por si só, justifica o direito que à sociedade tem que ser concedido para que se pronuncie diretamente sobre eles e não somente por meio da democracia representativa. É aí que entra a validade do Orçamento Participativo, naturalmente não como mera formalidade, mas como um processo objetivo, como ver-se-á mais adiante.

1.1.Democracia: da ágora ao agora

No século V a.C., mais conhecido como o século de Péricles, Atenas, uma das cidades-estados da Grécia Antiga, vivenciou a democracia direta. Os cidadãos (formando uma multidão de 3.500 a 6.500 pessoas) reuniam-se na ágora, a praça pública, com os governantes. O encontro era o momento para prestação de contas pelos que estavam no governo da cidade e decisões administrativas com a assembléia, da qual, todavia, não podiam tomar parte escravos e mulheres. A exclusão destes era devida às normas do estado ateniense que neles não reconheciam o direito à cidadania, evidenciando que, em termos reais, a democracia já se mostrava, contraditoriamente, excludente.

A evolução das sociedades, com a expansão das cidades e da área de muitos países, indo muito além dos limites geográficos do que eram as cidades-estados, inviabilizou a preservação do exercício da democracia direta. Como nova alternativa, com a fundação do Estado Liberal (após a Revolução Francesa), surgiu a democracia representativa, em que no parlamento os diversos segmentos sociais passaram a se fazer representar por pessoas por eles eleitos para, na esfera parlamentar, defender os interesses populares, suas reivindicações e sugestões e até mesmo reclamações contra os governantes.

Os estudiosos, apesar das restrições, entenderam, desde o começo, que diante da impossibilidade da manutenção do modelo de democracia da ágora ateniense, a alternativa seria mesmo a democracia representativa. É o que sintetiza, em artigo sobre o assunto, o jurista Dalmo de Abreu Dallari:

Sendo muito grande o número de pessoas com direito a participar do governo da sociedade e sendo bastante numerosas e diversificadas as decisões a serem tomadas quase todos os dias, estabeleceu-se a democracia representativa como alternativa possível (DALLARI, 2010, p.1).

Com o tempo, essa forma de representação da sociedade foi apresentando diversas debilidades, notadamente na primeira metade do século XX. Estava constatado que a democracia representativa não mais atendia aos seus objetivos de defender os interesses populares, voltando-se mais para os interesses de grupos empresariais ou outros segmentos, principalmente das elites.

Registrou-se, então, uma crise na democracia que foi uma crise da representação política, conforme explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto, acentuando que

a representação política, que durante tanto tempo havia atendido a um mínimo de exigências de legitimidade do poder – legitimidade quanto à origem --, sofria a erosão provocada pelo crescente distanciamento entre a sociedade e o Estado – legitimidade quanto à destinação e ao exercício do poder (MOREIRA NETO, 1992, p. 6).

O modelo de Estado, então, mostrou-se exaurido, do ponto de vista da representatividade popular, conforme explica o professor de Direito e procurador do Estado de São Paulo Jivago Petrucci:

Como antídoto para tal enfermidade do Estado, buscou-se legitimar as ações estatais através de mecanismos que garantissem uma vinculação entre as decisões políticas e a vontade da população. Inseriram-se, pois, nos ordenamentos jurídicos das nações modernas, instrumentos para que o povo participasse diretamente da formulação da vontade governamental, originando o conceito de democracia semidireta ou participativa, definida como ‘um processo de construção gradual que não compreende o banimento de todas as formas de representação, mas sua substituição por aqueles instrumentos de participação popular que implicam intervenção do governado na governança e seu controle sobre os governantes (PETRUCCI, 2004, p. 5).

È na mesma direção a opinião da constitucionalista Maria Macedo Ferrari, ao se reportar às deficiências na democracia representativa praticada no Brasil, observando que

os eleitos, como representantes do povo, nem sempre honram os mandatos recebidos, mostrando-se como incompetentes e frustrando a expectativa popular – fato este que tem propiciado a adoção de certos mecanismos de participação e controle direto da sociedade sobre a ação dos representantes, mesmo porque o ideal do exercício da Democracia direta nunca desapareceu ( FERRARI, 2003, P. 329).

Essa nova realidade sinalizou para a necessidade da criação e utilização de instrumentos ensejadores da implementação de inovações no processo democrático, com a instituição dos instrumentos de democracia semidireta ou participativa. Esta surgiu não para anular a democracia representativa, que permaneceu como meio formal, de índole constitucional, de representação da sociedade. Ficava cristalino que a proposta da democracia participativa era – e continua a se r— a complementaridade à atuação da democracia representativa.

A função complementar da democracia participativa é destacada por Emir Sader, com base na experiência que teve com Orçamento Participativo na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo. Para ele, "as experiências políticas que assumiram o nome de democracia participativa em geral se opõem ou buscam complementar as formas de democracia representativa" (SADER, 2003, p. 657).

Não vem de hoje a constatação da necessidade da complementaridade da democracia participativa, entre outros objetivos, como caminho para suprir as deficiências e fragilidades diagnosticadas no exercício da democracia representativa. Ainda na década de 80 do século XX Noberto Bobbio já admitia esse papel da democracia participativa:

Parto de uma constatação sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exigência, tão freqüente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de que a democracia representativa seja ladeada ou mesmo substituída pela democracia direta (NOBBIO. 2002, P. 53).

Acerca desta matéria, são elucidativas as reflexões da jurista Maria Goretti Dal Bosco, ao enfocar a democracia não só como forma de governo, mas também como direito fundamental de quarta geração:

Modernamente, a democracia deve ser considerada mais como um direito do que umas forma de governo. Um direito novo, de quarts geração. A tese é do professor Paulo Bonavides, para quem os direitos individuais seriam os de primeira geração, os direitos sociais, de segunda e os direitos da fraternidade, de terceira geração. E acrescenta: os direitos humanos de primeira geração pertencem ao indivíduo, os de segunda,ao grupo, os da terceira, à comunidade e os de quarta geração, ao gênero humano (DAL BOSCO, 1996, p. 142).

Complementa acentuando que " a democracia é direito do povo" e que "se converte em pretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder, subjetivado juridicamente na consciência social e efetivado de forma concreta pelo cidadão, em nome e em proveito da sociedade, e não do Estado" (DAL BOSCO, 1996, P. 142).

O que seria, então, neste começo de século, a democracia? Para esta pergunta, pode se encontrar resposta no jurista Paulo Bonavides, contextualizando-a na realidade político-institucional brasileira, nos seguintes termos:

Ao nosso ver, a democracia, conforme temos reiteradamente assinalado, é, a esta altura da civilização política, direito do gênero humano, direito da quarta geração, direito cuja universalidade, em rigor, deriva de sua natureza principal e, como princípio, entra ele de forma constitutiva no ordenamento republicano, precisamente com o caput do art. 1º, onde o constituinte qualifica por ‘democrático’ o nosso Estado de Direito ( BONAVIDES, 2003, P. 255).

Esse panorama que se traça da democracia nos dias atuais encontra apoio nas reflexões de outros pensadores políticos brasileiros, entre os quais José Eisenberg, que oferece uma definição atualizada de democracia:

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Democracia não é meramente um regime em nome do povo, governado por seus representantes eleitos, mas um governo do povo, em que os consentimentos gerados no seio deste legitimam permanentemente decisões governamentais, tornando-as, desta maneira, decisões vinculantes (EISENBERG, 2003, p. 200).

Já o sociólogo Boaventura dos Santos prefere se entregar a uma prospecção do futuro da teoria democrática, utilizando para isso os seguintes argumentos:

A renovação da teoria democrática assenta, antes de mais, na formulação de critérios democráticos de participação política que não confinem esta ao acto de votar. Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa. Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado. (SANTOS, 1997, p. 270-271).

1.1.1. Instrumentos da democracia participativa

No Brasil, a Constituição foi tão pródiga ao estabelecer instrumentos de democracia participativa que acabou sendo denominada de "Constituição Cidadã". Os seus autores se empenharam no sentido de, com a promulgação dela, configurar um novo ordenamento constitucional que situasse a cidadania como um dos seus pilares. É nessa vertente que Diogo Figueiredo Moreira Neto vê a Constituição Federal:

Em suma, uma Constituição que contém mais de meia centena de dispositivos matriciais do Direito de Participação já enseja uma preocupação válida com a urdidura de seu tratamento doutrinário sistemático, não só com vistas à melhor interpretação do seu conjunto como ao aperfeiçoamento da busca da finalidade a que todos convergem: a instituição de uma democracia participativa em que se harmonizem eficiência e legitimidade (MOREIRA NETO, 1992, p. 183).

Entre esses instrumentos positivados na Carta Magna promulgada em 1988 estão os seguintes:

- poder político de decisão do cidadão sobre a coisa política, com base no artigo primeiro que colocava o povo também como detentor do poder;

- direito à participação política, o que embasa o direito à audiência pública;

- princípio associativo com direito à formação de entidades representativas dos seus filiados, tais como associações e sindicatos profissionais, entre outras;

- publicidade dos atos administrativos, com exceção apenas daqueles de veiculação vedada por razões de Estado;

- devido processo legal, aplicável à realização de audiência pública (como espécie processual administrativa), com garantia do contraditório, de forma a assegurar o amplo debate de propostas e idéas;

- cooperação das entidades representativas no planejamento municipal;

- participação da comunidade, por meios dos conselhos especiais, das decisões da Administração públicas envolvendo a seguridade social, a saúde, a educação e a habitação;

- ação popular visando anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

O cidadão brasileiro, como se não bastasse o amplo espaço de participação política e administrativa que lhe é proporcionado na Constituição, ainda conta com outros instrumentos dispersos na legislação infraconstitucional. Entre estes, podemos relacionar os seguintes:

- acompanhamento de licitações feitas pela Administração por meio de audiências públicas, nos casos específicos previstos na Lei nº 8.666/ 93, que dispõe sobre licitações e contratos públicos;

- participação popular na elaboração dos planos diretores e leis orçamentárias dos municípios, de conformidade com o Estatuto da Cidade;

- participação e acesso, em tempo real, à gestão fiscal em todos os entes federativos, como determinam a LRF e a Lei Complementar nº 131/2009;

- audiências pública, com a presença de entidades privadas, quando forem, por conveniência administrativa, convocadas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente, para debate de estudos de impacto ambiental, como assegura a Lei nº 6.938;

- audiência pública para tratar de matéria objeto de processo administrativo popular, antes da tomada de decisão, sempre que a autoridade entenda necessário a oitiva popular, nos termos da Lei nº 9.784/99, que regulamenta o processo administrativo na União;

- audiência públicas para discussão com usuários na delegação de serviços públicos, de conformidade com a Lei nº 8.897/95, que disciplina as concessões e permissões dos serviços públicos.

Procurando sintetizar todo esse embasamento referente ao assunto, o jurista Paulo Modesto prefere falar do uso do que denomina de instrumentos processuais "empregados na administração pública, com maior ou menor grau de autenticidade e integração social", citando os seguintes:

- consulta pública;

- audiência pública;

- colegiados públicos, representativos de cidadãos ou de entidades representativas do direito de integrar órgão de consulta ou de deliberação colegial do Poder Público;

- assessoria externa, pela convocação da colaboração de especialistas para formulação de projetos, relatórios ou diagnósticos sobre questões a serem decididas;

- denúncia pública, como instrumento de formalização de denúncias quanto ao mau funcionamento ou responsabilidade especial de agente público;

- reclamação relativa ao funcionamento dos serviços públicos, no concernente à relação jurídica entre o Estado ou concessionário do Estado e o particular-usuário;

- colaboração executiva, por organizações que desenvolvam, sem fim lucrativo, com alcance amplo ou comunitário, atividades de colaboração em áreas de atendimento social direto;

- ouvidoria;

- controle social;

- fiscalização orgânica, ou seja, a obrigatoriedade, por exemplo, de participação de entidades representativas em concursos públicos.

Tamanha quantidade de dispositivos constitucionais e constantes na legislação ordinária em favor da cidadania configura a adequação do Brasil, a partir dos anos de 1980, ao novo constitucionalismo que passou a se consolidar internacionalmente. É uma transformação em processo com o objetivo de fortalecer o cidadão quanto à sua dignidade e ao usufruto dos seus direitos essenciais. Para chegar a esse usufruto, esse cidadão não pode deixar de contar com um aparato, do ponto de vista constitucional que o conduza a um crescente potencial de exercício de cidadania, condição sine qua non para a efetivação de uma autêntica democracia.

É nesse contexto que se insere o Orçamento Participativo, sobre o que falaremos mais adiante, cuidando, antes, de uma abordagem sobre a origem, natureza e objetivos do Orçamento Público, para que se tenha uma noção básica do que representa a lei orçamentária na Administração pública.

1.1.2. Orçamento público: origem, natureza e objetivos

O orçamento público surge nos sistemas feudalistas da Idade Média, já para fins de controle, devido ao cansaço causado pelos abusos por parte dos monarcas na cobrança de impostos, sem prévia autorização legislativa. Diante daquela situação, a saída foi criar o orçamento público, para prever legalmente despesas e fontes de receitas nos governos, bem como a criação de qualquer imposto, além dos já existentes. Foi instituído, pois, já com as função de controle da gestão pública (no caso, a monarquia), como freio à postura absolutista que os reis eram sempre tentados a assumir. A partir de então, não mais poderia haver cobrança de tributos que não estivessem programados no orçamento, princípio consagrado na Magna Carta de 1215, na Inglaterra.

Com base no princípio das partidas dobradas (pelo qual, para cada despesa programada deve haver previsão da respectiva receita, com a devida previsão de fonte) e outros conhecimentos contábeis e jurídicos, o orçamento foi ganhando sua formatação,com o modelo inglês ficando totalmente desenvolvido no século XIX. O aperfeiçoamento desse instrumento prosseguiu, com sua adoção por outros países, dando um passo significativo para sua modernização no início do século XX, com a instituição do orçamento-programa.

No Brasil, o orçamento público só ganha um formato mais claro com o advento da República, cuja proclamação indicava a perspectiva de mudanças de práticas na gestão pública, que passava do figurino monárquico para o republicano, mais aberto às inovações administrativas. A proposta republicana se fazia sentir, dentre outras maneiras, pelo interesse em melhorar a utilização dos recursos públicos pelo Poder Central, agora chefiado pelo Presidente da República.

É a época em que começa a se propugnar maior profissionalismo na feitura dos orçamentos, mais critério na definição de despesas prioritárias e até mesmo, pela voz de Rui Barbosa, do fortalecimento do controle externo da coisa pública, mediante a criação dos tribunais de contas, para auxiliarem, tecnicamente (sobretudo juridicamente) o Poder Legislativo no julgamento das prestações de contas governamentais. Dessa etapa de euforia com a nascente República brasileira houve, pois, alguns frutos úteis para uma melhor aplicação dos dinheiros públicos, incluindo-se ai a criação, na década de 1890, do Tribunal de Contas da União (TCU).

No Brasil, o orçamento público, por não ser impositivo, mas meramente autorizativo, acaba sendo questionado por alguns doutrinadores até mesmo como lei ordinária. Para eles, não passa de um ato-condição, aquele que, segundo o Direito Administrativo, se antepõe a outro ato para permitir a realização deste. Ou seja, o orçamento serviria como ato-condição para a realização das despesas na Administração, sem o rigor que uma lei deve ter. Portanto, é lei permissiva, funcionando como ato-condição, o que significa dizer que, na gestão pública, todas as despesas somente poderão ser efetuadas se autorizadas na lei orçamentária.

Essa fragilidade do orçamento dá margem aos freqüentes contingenciamentos que ele sofre por parte dos governantes, acarretando um certo descrédito. Há quem encare a situação numa outra perspectiva: a de que o fortalecimento da cidadania poderá inibir o excesso de discricionariedade na execução orçamentária, ou seja, o grande número de suspensão de recursos na lei orçamentária.

A responsabilidade implícita no orçamento público, ainda que com caráter autorizativo e não impositivo, é ressaltada por um dos mais experientes conselheiros de contas do país, Helio Saul Mileski, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Ele salienta essa responsabilidade ao apresentar sua definição de orçamento público:

Como o Estado desempenha uma intensa atividade financeira – arrecadando, despendendo e administrando recursos financeiros – no sentido de realizar os seus objetivos de interesse público, há a necessidade de utilização de um meio que discipline essa ação estatal por um determinado espaço de tempo. Esse meio chama-se orçamento público (MILESKI, 2209, p. 31).

É esta também a postura de Régis Fernandes de Oliveira, para quem, "a peça orçamentária deixa de ser mera formalidade a ser cumprida pelo Legislativo, passando a ser, além de um programa de governo, item fundamental na responsabilidade do agente público" (OLIVEIRA, 2001, p. 37-38).

Nesta linha de raciocínio, frisa ainda que o orçamento público

Deixa de ser mero documento financeiro ou contábil para passar a ser instrumento de ação do Estado. Através dele é que se fixam os objetivos a serem atingidos. Por meio dele é que o Estado assume funções reais de intervenção no domínio econômico (OLIVEIRA, 2001, p.38).

Apoiado nesta visão de orçamento, aquele jurista prega a necessidade da participação popular no ciclo orçamentário (PPA, LDO e LOA), conforme se pode deduzir destas observações: "De outro lado, deve o Poder Público incentivar a participação popular e a realização de audiências públicas, durante o processo de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamento anuais" (OLIVEIRA, 2001, p. 84).

A defesa da participação popular no ciclo orçamentário também é feita pelo tributarista Kiyoshi Harada, sob o argumento de que

o direcionamento de despesas pela LOA deve respeitar a vontade média da população, pois a LOA outra coisa não é se não o instrumento de exercício da cidadania, significando prévio consentimento popular na realização das despesas fixadas (HARADA, 2002, P. 54).

Por seu lado, Ricardo Lobo Torres, um dos mais respeitados doutrinadores nacionais em matéria orçamentária, leciona que, "apesar de não ser fundante de valores, o orçamento se move no ambiente axiológico, eis que profundamente marcado pelos valores éticos jurídicos que impregnam as próprias políticas públicas" (TORRES, 1995, p. 85).

No entendimento de Ricardo Lobo Torres, "a lei orçamentária serve de instrumento para a afirmação da liberdade para a consecução da justiça e para a garantia e segurança dos direitos fundamentais" (TORRES, 1995, P. 85).

Manifesta-se Torres a favor da formação, no Brasil, de uma cultura orçamentária, a respeito do que diz faz estas colocações:

O debate permanente sobre a feitura do orçamento, as discussões entre os políticos em torno das prioridades da despesa pública, a participação e o interesse do povo na preservação e no respeito aos princípios da boa administração orçamentária e a eficiência do controle da execução orçamentária, tudo isso contribui para formar a cultura orçamentária (TORRES, 1995, p. 25).

Esta nova visão de elaboração e execução orçamentária encontra receptividade entre técnicos e estudiosos da gestão pública e na sociedade civil por implicar a visão concebida na CF/ 88, ao estabelecer um ciclo orçamentário para a gestão pública, iniciando-se pelo PPA (Programa Plurianual de Investimentos). No PPA, o governante, no primeiro ano do seu mandato, formaliza os projetos e programas a serem cumpridos em médio prazo, ou seja, nos três anos seguintes de sua gestão e no primeiro ano do mandato do seu sucessor na Chefia do Executivo, aplicando-se a exigência na União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Todos esses entes federativos, em cada exercício, devem elaborar e encaminhar ao Legislativo, para discussão e votação, para execução no ano seguinte, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no primeiro semestre e a Lei Orçamentária Anual (LOA) no segundo semestre, completando-se, assim, o ciclo orçamentário que deve garantir a compatibilidade do PPA com a LDO e a LOA para cada exercício, isto é, para cada ano abrangido por esse PPA.

Antes da Constituição de 1988, não havia nem PPA, nem LDO, mas apenas o orçamento anual, elaborado segundo as normas gerais de Direito Financeiro estabelecidas na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964 e que ainda se encontra em vigor, tendo recebido, ao longo do tempo, algumas alterações. Dispõe sobre as normas gerais para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Deverá ser substituída por uma nova lei, complementar, regulamentando o disposto no parágrafo 9 do art. 165 da CF/88, que é o seguinte:

§ 9º. Cabe a lei complementar:

I – dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual;

II –estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.

Já tramitam no Congresso Nacional várias propostas visando à redação e votação da nova lei, já denominada de Lei de Qualidade Fiscal, que será abordada mais detalhadamente mais adiante. O debate a respeito da Lei de Qualidade Fiscal se processa não somente no âmbito do Legislativo Federal, mas também em diversas instituições, que vão apresentando sugestões aos três projetos com o mesmo fim formalizados no Senado.

Mesmo com um maior envolvimento da sociedade no controle social da execução orçamentária na gestão pública, a permanência da condição simplesmente autorizativa nas leis orçamentárias ainda é motivo para desânimo daqueles que defendem o orçamento participativo, ainda que não na sua totalidade, mas nos itens mais significativos para o interesse coletivo. O jurista José Nilo de Castro, um dos maiores especialistas brasileiros em Direito Municipal, mostra desencanto ao se reportar ao assunto:

As audiências e consultas públicas na elaboração das Leis Orçamentárias tem sido realizadas, aqui e alhures. Mas, como os orçamentos públicos, que se constituem as leis mais importantes depois da Constituição, são autorizativas, os efeitos dos instrumentos da democracia de proximidade (participação popular) não são alcançados, tendo ficado apenas na formulação romântica da participação, porque o povo, o dono do poder, não acompanha e, por outro lado, nem sempre são transparentes os poderes públicos, à exceção dos poderes municipais (CASTRO, 2009, p. 374).

Já o jurista Afonso Aguiar, também especialista em assuntos municipalistas, tributários e orçamentários, tem um olhar mais entusiasmado para a questão do orçamento público. A respeito, ele diz que

Se houve época em que o orçamento público não passava de um instrumento autorizatório de arrecadação de receitas e realização de despesas públicas, hoje, não mais há quem conteste sua utilização como instrumento de planejamento e análise, necessário à implantação de uma política econômica e social mais aperfeiçoada, dando, assim, às receitas públicas, dinheiro do povo, uma destinação e aplicação mais aceitável politicamente, com a produção de resultados mais eficientes em proveito da coletividade ( AGUIAR, 1997, P. 43).

De qualquer modo, é inegável a melhoria do nível das nossas peças orçamentárias públicas, notadamente a partir da década de 1970, quando começava a ficar para trás a idéia caolha de que orçamentar é apenas cumprir o princípio segundo o qual, na Administração, só pode ser feito o que está permitido em lei. Transportando esse princípio para a questão orçamentária, claro estava que orçamento tinha como finalidade primordial autorizar as despesas a serem feitas pela gestão pública, para que não tivessem que ser efetuadas sem a previsão legal, indispensável ao ato administrativo.

Não se olhava, então, para um outro lado igualmente estratégico e bastante válido do orçamento, que é o de funcionar como instrumento de planejamento da gestão pública, aproveitando-o como meio de autorização legislativa para viabilização de projetos, construção de obras e outros empreendimentos com os quais o gestor público teria que beneficiar a população. Se ainda não estava nítida como está hoje a vertente de planejamento na ação de orçamentar receitas e despesas na Administração pública, hoje não há como abstrair essa finalidade das leis orçamentárias.

Ao inovar na questão orçamentária, criando um ciclo orçamentário, em que seus componentes guardam conexão entre si, a Constituição de 1988 veio valorizar, na gestão pública, a função orçamento como função de elaborar e implementar projetos, programas e ações voltadas para o atendimento às demandas postas pela sociedade, naquele tempo por intermédio dos seus representantes nas casas legislativas. Ainda sem espaços organizados e articulados para agir com poder real de reivindicação, como acontece a partir da adoção de mecanismos de democracia participativa, a sociedade tinha, antes da década de 1950, nos plenários legislativos e nos jornais (então poderosos por falta, ainda, da concorrência da televisão, que mal acaba de chegar ao país), seus espaços para falar ao Poder Público, apresentando demandas coletivas, sugerindo, criticando,denunciando.

A Carta de 1988 reconfigurou a questão orçamentária na gestão pública, estabelecendo um ciclo ao qual se incluíam o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), além de manter o orçamento anual (agora denominado de Lei Orçamentária Anual-LOA), direcionado e conectado, em seus pontos essenciais com programas, projetos e metas preconizados no PPA. Estava fortalecida, pois, o potencial das leis orçamentárias como peças de planejamento.

1.1.3. Orçamento Participativo: adoção, experiência e outros aspectos

No Brasil, o uso do Orçamento Participativo teve início ainda na década de 1970, em alguns municípios brasileiros, como forma de o Poder Executivo consultar a população sobre suas próprias demandas (habitação, educação, saúde, transporte, saneamento e outras). Antes preso à tecnoburocracia e aos resquícios de uma política ultrapassada, o poder local passava, então, a se abrir à interlocução com a sociedade, estimulada pelos anseios de participação popular que se adensavam na razão direta do esgotamento do regime militar, que, pela sua natureza, cerceava essa vontade de ingerência nas decisões referentes à coisa pública.

No período de 1975 a 1986 se desenvolveram as primeiras experiências brasileiras de Orçamento Participativo, contemplando os municípios de Piracicaba (SP), Lajes (SC), Campinas (SP), Vila Velha (ES), Boa Esperança (ES), Rio Branco (AC), Toledo (PR), Prudente de Morais (MG), Juiz de Fora (MG) e Pelotas (RS). Elas, ao mesmo tempo que atenderam a um objetivo específico, a participação social na elaboração dos orçamentos dessas localidades, serviram de impulso ao exercício da democracia participativa, sob outras formas.

Nos anos de 1970, o Brasil assistia ao esgotamento do período militar, simultaneamente à existência de demandas sociais reprimidas. Havia, então, uma ânsia por participação coletiva nas decisões administrativas, que cresceu na década seguinte, refletindo-se diretamente nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, convocada para a feitura da nova Constituição Federal, que seria promulgada em 1988.

O cientista político Leonardo Avritzer lembra esse período, dele fazendo esta análise:

A partir dos meados dos anos 1970, começa a ocorrer no Brasil o surgimento daquilo que se convencionou chamar de uma sociedade civil autônoma e democrática. Tal fato esteve relacionado a diferentes fenômenos: um crescimento exponencial das associações civis, em especial das associações comunitárias; uma reavaliação da idéia de autonomia organizacional em relação ao Estado; a defesa de formas públicas de apresentação de demandas e negociação com o Estado (AVRITZER, 2007, P. 405-406).

Aduz aquele pesquisador que "o crescimento das formas de organização da sociedade civil no Brasil foi um dos elementos mais importantes da democratização do país" (AVRITZER, 2007, P. 406).

Outros subsídios sobre a articulação de forças comunitárias são oferecidos por Ana Claudia Teixeira, ao lembrar que o OP

não é a única forma de gestão democrática experimentada pelos municípios. Ele faz parte de um conjunto de iniciativas que, desde a segunda metade da década de 1970, fizeram emergir propostas de deixar a administração pública mais permeável à participação popular, tornando-se contrapontos ao regime militar. Os mutirões para a construção de casas populares e as hortas comunitárias em Lages, Santa Catarina, entre 1976 e 1982, durante o governo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), são um exemplo (TEIXEIRA, 2003, p. 191).

Essas iniciativas precursoras já representavam os efeitos do movimento pelo fortalecimento dos municípios brasileiros, que se esboça a partir da década de 1940 e se intensifica a partir da década seguinte, desaguando na consagração, pela primeira vez em nossa história constitucional, do Município como ente integrante da Federação no Brasil. Em conseqüência, tem-se a partir da década de 1980 a ampliação da autonomia política e financeira dos municípios, que, se ainda não chegou ao nível esperado, pelo residual centralizador que ainda perdura no Governo Federal (União), passou por consideráveis avanços. Um deles foi e está sendo uma maior interlocução entre o Poder local e sua população, por vários meios e métodos, entre os quais o Orçamento Participativo.

Logo veio a percepção de que o Município é o ente federativo por excelência para a concretude da democracia participativa, em razão da proximidade entre gestor e administrados, sem o distanciamento geográfico existente entre os habitantes das cidades em relação aos Governos estaduais e, mais ainda, com referência ao Governo Federal.

Os fatores determinantes do surgimento do Orçamento Participativo no Brasil são analisados sob diversas óticas. Uma delas é do especialista em questões tributárias e orçamentárias Marcos Nóbrega:

Na verdade, entende-se que um dos fatores que levaram ao surgimento do orçamento participativo foi a total inoperância, inércia dos legislativos, sobretudo dos legislativos municipais, em discutir matérias de natureza orçamentária. Na maioria das vezes, os orçamentos não são sequer discutidos e recebem aprovação sem nenhuma apreciação material (NÓBREGA, 2002, p. 96).

Para a jurista Dayse Coelho de Almeida,

o orçamento participativo e as audiências públicas são formas de participação que tem sido bastante enaltecidas e servem para embasar a afirmativa de que o povo quer e pode participar do processo de tomada de decisões, e sabe sim discernir o que deseja dentre várias opções, o que esvazia o discurso preconceituoso que só o povo educado pode decidir sobre seus rumos (ALMEIDA, 2009, p. 2).

As audiências públicas representam um espaço para a presença legítima e democrática da sociedade nas decisões dos gestores públicos, devendo ser usufruído pelas associações comunitárias e outras entidades da sociedade civil. É salutar esse processo, desde que não seja maculado por ingerências políticas ou de outra ordem que as afastem do compromisso unicamente com o interesse coletivo, o bem comum.

O direito à audiência pública, originado no Direito Anglo-Saxão, alcançou acolhida internacional já no século XX, sendo recepcionado em diversos tratados e convenções internacionais. Está, implícita ou explicitamente, assegurado no Pacto de San José da Costa Rica, Declaração Universal dos Direitos Humanos; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Declaração dos Direitos e Deveres do Homem, só para se valer de alguns exemplos.

Fazem-se estas considerações por ser a audiência pública o preferido entre os procedimentos adotados no Orçamento Participativo, como demonstra uma avaliação do OP nos municípios que o utilizam. Embora não tenham poder vinculante, as reivindicações feitas em nome da população em uma audiência pública se revestem, de qualquer modo, de algum peso no processo de definição dos projetos, programas e ações que irão compor principalmente a Lei Orçamentária Anual do Município. Por isso mesmo, são parte essencial para o Orçamento Participativo, seja quando este é adotado pelo Poder Executivo Municipal, seja quando o debate sobre a proposta orçamentária anual da municipalidade se dá já na Câmara Municipal, entre os vereadores e lideranças representativas da sociedade.

É que o modo como se processa o Orçamento Participativo não é rigorosamente igual em todos os municípios que o adotam, variando até mesmo em um mesmo município (quando há mudança de natureza partidária e/ ou ideológica na Chefia do Executivo local) quanto à metodologia. No Rio de Janeiro, por exemplo, numa administração, o OP foi iniciativa do Prefeito, portanto, na fase de elaboração da proposta orçamentária. Em outro momento, sendo outro o Prefeito, este não tomou qualquer iniciativa quanto ao OP, deixando que a Câmara o fizesse, quando da chegada e tramitação, na Casa, do projeto da LOA do Município, limitando-se a ouvir representantes dos bairros e das entidades sociais em audiências na própria Câmara.

A diferença, nesse caso específico, é que o Prefeito, tratando-se de matéria orçamentária possui, institucionalmente, muito mais poder do que os vereadores. O Prefeito está à frente da elaboração da proposta e dá a palavra final a respeito do que nele deve constar ou não. Por sua vez, os vereadores possuem competência legal para apresentar e aprovar emendas ao projeto, mas com limitações impostas legalmente, por se tratar de matéria financeira, portanto, sem a mesma flexibilidade que tem o Prefeito para acatar as propostas encaminhadas pela população.

Há os que optam pela realização de assembléias nas diversas áreas do município, coletando sugestões para o Orçamento-Programa a ser elaborado, tomando como exemplo o sucesso com essa fórmula em Porto Alegre, referência de OP não só no Brasil, mas também para cidades do Exterior. Em outros, a discussão ocorre de modo mais simplificado, em encontros de menor porte, apenas com os representantes de cada área do município.

Há também o caso das cidades em que o Orçamento é discutido apenas no ambiente da Câmara Municipal, indo até ela as lideranças representativas da sociedade. Tem-se conhecimento também das experiências com OP apenas por meio eletrônico, sendo as consultas públicas feitas por meio do site da Prefeitura, como já aconteceu, por exemplo, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Com os avanços alcançados na tecnologia da informação, as gestões municipais passaram a contar com mais um meio de interlocução com a sociedade, valendo-se de uma nova opção de consulta à população para o Orçamento Participativo: a Internet. Sobre o assunto, o sociólogo Sérgio Amadeu, ex-Coordenador do Governo Eletrônico do Município de São Paulo, afirma que

governos em rede podem ser instrumentos democráticos a serviço da cidadania e da participação política. Processos públicos, como o Orçamento Participativo, ganham mais um espaço de envolvimento da comunicação, de recolhimento de opiniões e propostas, como podem articular consultas eletrônicas (SILVEIRA, 2002, p. 75).

Para os entusiastas do OP, o essencial é que ele seja utilizado da maneira possível na realidade de cada município, por ser uma maneira de a Administração local abrir espaços à participação popular. Ou seja, acham que é mais interessante OP do que a não adoção do instrumento, pois, não havendo o processo de consulta, acentua-se o risco da persistência da cultura do orçamento de gabinete, preparado isoladamente, sem nenhum tipo de articulação com a comunidade.

O importante é, nas condições possíveis,

dado o encurtamento da distância entre o poder público e o cidadão na menor circunscrição territorial (o município), motivar a participação da sociedade, sem o que nenhuma gestão pública se poderá haver por exitosa (RONZANI, 2005, p. 1).

A facilidade de adaptar o Orçamento Participativo às diferentes realidades dos municípios brasileiros é que torna possível que ele possa ser adotado em qualquer região do país, sendo o seu sucesso resultante do empenho dos gestores que a ele recorrem e não dependente de fatores sociais e econômicos. O fato das experiências vitoriosas com o OP acontecerem em municípios de regiões distintas do Brasil comprova pragmaticamente a flexibilidade do OP, que é planejado, formatado em conformidade com as características e as condições econômicas, sociais, políticas e até geográficas de cada município.

Esse lado da questão é analisado por Leonardo Avritzer:

O que torna o OP influente como proposta de redemocratização do orçamento é o peso dos municípios onde ele é praticado. Em 2002, o OP foi praticado nos municípios de São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, cidades com um enorme peso nacional e regional. No entanto, discutir a prática do OP é também reconhecer as enormes variações que existem entre essas cidades ou entre os 103 municípios que praticaram o OP entre 1997 e 2000 (AVRITZER, 2003, p.30).

Pela sua natureza, orçamento não pode deixar de ser utilizado como instrumento responsável de planejamento administrativo, tendo que trabalhar com as prioridades ditadas não pelo Prefeito e sim pela sociedade, pois as dele, geralmente, não coincidem com as da população, em sua quase totalidade. Portanto, se o orçamento é para o povo, que este seja chamado a dizer o que gostaria de ver nele, para atendimento às demandas sociais.

Somente assim, por meio do orçamento, estará sendo feito um planejamento administrativo de olho principalmente na problemática social, nas carências em setores como educação, saúde, transporte e outros; enfim naqueles projetos, programas e ações que possam propiciar a melhoria das condições de vida da população, sobretudo as menos favorecidas economicamente.

O emprego do OP é visto com perspectivas favoráveis, na opinião de Ana Claudia Chaves Teixeira, expressa nestes termos:

A Constituição de 1988 forneceu ainda capacidades financeiras e legais que permitiriam aos municípios a administração de questões locais (Farias, 200). Estas novas capacidades serão importantes para o desenvolvimento da experiência do OP, que se tornará a mais inovadora forma de co-gestão e de controle social sobre o orçamento já realizada no Brasil (TEIXEIRA, 2003, p. 191).

Outro depoimento animador sobre a experiência brasileira com o OP é de Oscar José Rover:

No contexto do OP, a participação é vista como um elemento que gera eficiência, na medida em que através dela se orienta o uso dos recursos públicos de forma adaptada às necessidades e anseios das população; gera transparência da máquina pública, oportunizando o controle social do uso do dinheiro público; forja a cidadania, na medida em que os espaços participativos são também espaços formadores de cidadãos, constituindo sujeitos políticos que se tornam mais preparados para a construção de políticas públicas (ROVER, 2003, p.292).

No Brasil, o Orçamento Participativo tem sido adotado em mais de 200 municípios, entre os quais São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Icapuí (CE), Belém, Santo André (SP), Aracaju, Blumenau (SC), Belo Horizonte, Cosmópolis (SP), São Bernardo do Campo (SP), Florianópolis, Vitória e Joinvile (SC). O Orçamento Participativo, pelos reflexos positivos apresentados sobre as gestões públicas locais, não se restringe ao Brasil, conforme registra o sociólogo português Boaventura dos Santos, um dos estudiosos das experiências de democracia participativa internacionais. Segundo ele, somente na América Latina, ele vem sendo adotado em 1.200 cidades, a exemplo do que acontece também em outros continentes.

Fora do Brasil, podem ser mencionadas como praticantes do Orçamento Participativo, entre outras cidades, Buenos Aires (Argentina), Rosário (Argentina), Montevidéu (Uruguai), San Salvador (Salvador), Barcelona ( Espanha), Saint Denis (França), Pieve Emanuele (Itália), Palmela ( Portugal), Toronto (Canadá), Manchester (Inglaterra), Bruxelas (Bélgica) e Mons (Bélgica). O instrumento começa a chegar também à África, mais exatamente a Praia, capital do Cabo Verde. Lá, espelhado na vivência com o assunto que tem o Brasil, se iniciaram os preparativos para a utilização do OP pela Câmara Municipal.

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Sobre o autor
José Ossian Lima

Jornalista e radialista. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do ceará (UFC) e Especialista em Administração Pública pela Faculdade Ateneu. Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, José Ossian. A obrigatoriedade do Orçamento Participativo no Município.: A (não) efetividade em discussão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2652, 5 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17559. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo também publicado no boletim Governet e no site do Observatório das Cidades da Universidade Federal de Sergipe.

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