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A obrigatoriedade do Orçamento Participativo no Município.

A (não) efetividade em discussão

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05/10/2010 às 09:48
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2 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Adotado inicialmente de modo voluntário, o Orçamento Participativo, mesmo ainda com um baixo índice de aceitação no conjunto dos municípios brasileiros, se legitimou pelas experiências exitosas em grande parte das cidades em que foi utilizado. Esta foi uma das motivações para que, na regulamentação dos arts. 182 e 183, por meio do Estatuto da Cidade, cuja proposta teve uma demorada tramitação no Congresso Nacional, houvesse uma grande articulação, sobretudo dos movimentos em defesa da reforma urbana, no sentido de que nele constasse um capítulo (o 4º) sobre a gestão democrática da cidade.

Foi um espaço para a consagração do Orçamento Participativo em nível municipal como obrigação legal, a partir, primeiramente, dos princípios formadores da democracia participativa existentes na CF/88, entre os quais os citados arts. 182 e 183. Essa obrigatoriedade viria posteriormente a ser reafirmada em outros documentos legais, conforme ver-se-á, a seguir, em maiores detalhes.

2.1. Orçamento Participativo e a Constituição Federal

A Assembléia Nacional Constituinte, que funcionou de 1977 a 1988, foi pródiga ao inserir na Constituição Federal promulgada em outubro de 1988 mais de cinquenta dispositivos assecuratórios da participação popular na gestão pública. Logo no seu art. 1º a Lei Maior de 1988 assegura ao cidadão o amplo direito ao controle social e outras opções de acompanhamento e participação nas decisões na esfera pública, ao estabelecer que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Exatamente a partir desta inclusão do povo no Poder, justifica-se que a Constituição contenha tantos dispositivos assecuratórios da prática de formas de exercício da democracia participativa ou semidireta.

Mais especificamente ligada ao tema deste trabalho, merece destaque o art. 29, inciso XII, da CF/88 que obrigue cada Município a incluir, entre outros princípios, na respectiva Lei Orgânica a obrigatoriedade da "cooperação das associações representativas no planejamento municipal". Considerando-se os termos da mesma Constituição, nos artigos disciplinadores da elaboração e votação das leis orçamentárias, irá se constatar que o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) não implicam apenas controle, prevenção de despesas e fontes de arrecadação para a manutenção da máquina administrativa pública.

Implicando um planejamento financeiro para a execução de programas e projetos, implicam também o próprio planejamento administrativo. Logo, enquadram-se no "planejamento municipal" a que alude o art. 29, no inciso mencionado, constituindo-se, pois, fundamentação constitucional para a obrigatoriedade do Orçamento Participativo no Município.

Viu-se há pouco que orçamentar, na Administração pública,, modernamente é planejar, daí o sentido da interpretação intensiva do art. 29 da Constituição Federal, suficiente para embasar toda a legislação que viesse depois dispondo sobre obrigatoriedade do Orçamento Participativo.

Essa determinação da Carta Magna de 88 foi cumprida por vários municípios, se não quando da promulgação de suas Leis Orgânicas, mas no processo de revisão delas, já providenciada em várias cidades, a partir da década de 1990. A exigência contida na Constituição e a preocupação em buscar um mínimo de efetividade para o Estatuto da Cidade, a par de outros avanços legislativos envolvendo questões municipais, motivaram a atualização das Leis Orgânicas em várias localidades, entre as quais Fortaleza.

Na versão revisada (datada de 2006) da Lei Orgânica do Município de Fortaleza, no art. 6º está disposto:

Art. 6º. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:

I – órgãos colegiados de políticas públicas;

II – debates, audiências e consultas públicas;

III – conferência sobre os assuntos de interesse público;

IV – iniciativa popular de planos, programas e projetos de desenvolvimento;

VI – a elaboração e a gestão participativa do Plano Plurianual, nas diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para a sua aprovação pela Câmara Municipal.

No Município do Rio de Janeiro, idêntica providência foi adotada, conforme o artigo 255 de sua Lei Orgânica:

Art. 255. Fica garantida a participação popular na elaboração do orçamento plurianual de investimentos, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual e no processo de sua discussão

[...]

VI – pelo orçamento participativo.

Os casos de Fortaleza e do Rio de Janeiro evidenciam que a Lei Orgânica do Município pode ser o espaço ideal para recepcionar a obrigatoriedade do OP Municipal contida no Estatuto da Cidade. Desse modo, figurando na Lei Orgânica, não terá como deixar de ser cumprida como exigência, já que estará inserida na Lei Maior do Município.

Se em todos municípios fosse feita esta interpretação intensiva do art. 29 da CF/88 e houvesse conhecimento e interesse na efetividade do conteúdo do Estatuto da Cidade, certamente seria bem mais expressiva a quantidade de municípios que estariam fazendo do Orçamento Participativo um instrumento democrático para maior legitimidade das leis orçamentárias do Poder local. Mas é isso um problema vinculado à necessidade de maior e melhor educação social e política da população, tema explorado mais no final deste trabalho.

2.2. Orçamento Participativo e o Estatuto da Cidade

O objetivo básico do Estatuto da Cidade, denominação dada à Lei nº 10.257/01, de 10 de julho de 2001, foi regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, dispondo o 182 sobre a função social da propriedade urbana e o 183 sobre a função social da propriedade rural. Com isso, definiu como objetivos da política urbana o ordenamento do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos seus habitantes.

Com essa finalidade, estabeleceu a exigência do Plano Diretor para o direcionamento ou redirecionamento da ocupação do espaço físico da cidade, de modo a possibilitar o planejamento dessa ocupação e, consequentemente, da divisão territorial do município por áreas específicas (residenciais, comerciais, industriais, de preservação, de interesse social, etc.), Com a exigência do Plano Diretor, veio facilitar o planejamento da administração municipal, uma vez que o zoneamento propiciado pelo Plano viria exatamente para ordenar as atividades econômicas e administrativas locais. Aproveitou-se, então, para inserir no Estatuto, com vistas também à democratização da gestão da cidade, um capítulo, o 5º, relativo à gestão democrática da cidade, para o que criou, entre outros instrumentos, a obrigatoriedade do Orçamento Participativo.

Ao estabelecer as normas reguladoras do uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, ficaram criados no Estatuto os instrumentos da política urbana, tais como o plano diretor, gestão orçamentária participativa, disciplina do parcelamento do uso e ocupação do solo, zoneamento ambiental, IPTU, contribuição de melhoria e vários outros. A preocupação foi assegurar ao poder públicos meios de controle do crescimento das cidades, procurando discipliná-lo ou mesmo redimensioná-lo, no caso das grandes cidades, cuja expansão desordenada acarretou o agravamento de problemas de moradia, transporte, segurança e saneamento, além de outros.

Faz-se apenas uma síntese para resumir o conteúdo do Estatuto da Cidade, já que, neste trabalho, a ênfase deve ser para a gestão democrática da cidade, posta, logo no inciso II do art. 1º como uma das diretrizes gerais da política urbana nos seguintes termos:

gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

A participação popular na administração da cidade aparece de maneira mais consistente no capítulo V, determinando no artigo 43 o seguinte:

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:

I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;

II – debates, audiências e consultas públicas;

III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;

IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

Para efeito de argumentação, veja-se também o artigo seguinte:

Art. 44.No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4º desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.

Portanto, ao aludir à alínea f do inciso III do art. 4º, a qual se refere à gestão orçamentária participativa da cidade, o art. 44 detalha os procedimentos a serem observados para essa gestão orçamentária, colocando como obrigatório o Orçamento Participativo. A expressão "como condição obrigatória para sua aprovação pela Cãmara" não deixa dúvida de que o Prefeito fica obrigado a utilizar o Orçamento Participativo na fase de elaboração das propostas de leis orçamentárias, compreendendo todo o ciclo orçamentário exigido para todos os entes federativos na Constituição Federal, isto é, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).

Em bom Português jurídico, é sempre conveniente atentar para as formas como os verbos aparecem no texto da Constituição e da legislação ordinária, pois são essas formas que vão dar a dimensão da força e da conotação que esses verbos estão tendo no contexto frasal. É o recurso à interpretação intensiva, que é a saída para a percepção do que o texto legal traz nas entrelinhas, que margem de flexibilidade é possível na interpretação deste.

No caso específico do art. 44, a força está na expressão "condição obrigatória", numa linguagem cristalina, de fácil compreensão, não dando margem, pois, a nenhuma dúvida quanto à obrigatoriedade contida naquele dispositivo. Fosse um comando posto em tempos verbais do tipo "promoverá", "assegurará", "garantirá" ou outras também sem plena clareza, uma interpretação intensiva entenderia como obrigatoriedade ou ato voluntário, mas esse não é o caso, como se percebe, do art. 44 do Estatuto.

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Diante do exposto, oportuno se torna lembrar o que orienta a boa doutrina em Direito Administrativo: o processo administrativo se torna passível de nulidade quando um dos atos nesse processo foi viciado. Considerando-se que a proposta orçamentária do Município, na sua fase de elaboração e redação, ainda não se constitui num processo legislativo e sim administrativo, a conclusão é de que, no caso de descumprimento da exigência do Orçamento Participativo contido no art. 44 do Estatuto da Cidade, um ato, a participação popular, não foi praticado. Logo, estará criada margem legal para a anulação dessa proposta orçamentária como processo administrativo.

Este é o raciocínio da constitucionalista Maria Macedo Ferrari, ao lecionar que as audiências públicas só podem se realizar a partir de previsão legal. E aí estabelece um liame desse ensinamento com o Estatuto da Cidade, para se referir às audiências estabelecidas como obrigatórias sobre os planos diretores e as propostas de leis orçamentárias municipais. Sobre o assunto, adverte que

Assim, quando prevista como obrigatória – como, por exemplo, no caso previsto pelo art. 40, parágrafo 4º, do Estatuto da Cidade --, a falta de sua realização (das audiências) vicia o ato com nulidade, o que também acontece nas hipóteses previstas nos arts. 43 e 44 do mesmo diploma legal, podendo haver a caracterização de improbidade administrativa do prefeito, quando impeça sua realização ou deixe de garanti-la ( FERRARI, 2003, p. 345).

Posteriormente, idênticos posicionamentos quanto ao assunto seriam externados por outros juristas, tendo sido um deles Régis Fernandes Oliveira, autor de vários livros e com experiência em diversas atividades jurídicas e na vida política. Com a segurança de quem conhece os pormenores jurídicos e técnicos da Administração pública, ele defende intransigentemente a obediência ao disposto no Estatuto da Cidade quanto ao Orçamento Participativo. São palavras suas:

Em verdade, a lei criou um requisito de validade das diversas leis orçamentárias. Caso não tenha havido audiências públicas e consultas populares, poderão as leis ser questionadas, em sua validade, perante o Judiciário (OLIVEIRA, 2006, p. 397).

Com elas, Oliveira reitera a advertência que já havia feito sobre o assunto:

Em verdade, a participação popular no orçamento, por exemplo, passa a ser obrigatória, o que leva à conclusão de que, em sua ausência, o processo de elaboração do orçamento é viciado, podendo ensejar disputa judicial (OLIVEIRA, 2005, p. 26).

Na oportunidade, ele havia complementado com estas palavras:

Ressalte-se que, ao impor os debates, as audiências e as consultas públicas ‘como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara’, quer parecer que se cuida de condição de validade do orçamento. Poderá qualquer das leis orçamentárias ser contestada em juízo, no caso de não satisfazerem a tais exigências (OLIVEIRA, 2005, P. 140).

Pela sua abrangência e pelos avanços que traz em termos de democracia participativa aplicada à gestão municipal, o Estatuto da Cidade tem sido exaltado por juristas e estudiosos. Tome-se como exemplo o jurista Walter Ceneviva, para quem, "o aspecto social mais importante da Lei 10.257 foi o de convocar a comunidade municipal para se integrar à gestão democrática da cidade" (CENEVIVA, 2003, p. 175).

Poucos meses atrás, num dos painéis do V Fórum Urbano Mundial, realizado no Rio de Janeiro, foi discutida a importância do Estatuto da Cidade, classificado, na oportunidade, como "a melhor lei do mundo" pelo mexicano Carlos Morales- Schechinger, do Instituto de Estudos em Habitação e Desenvolvimento Urbano da Universidade Erasmus, na Holanda. Foi mais além, desafiando o Brasil a enfrentar o desafio de provar que o Estatuto é perfeitamente aplicável na prática.

No mesmo evento, especialistas brasileiros e representantes de gestores municipais mostraram-se enfáticos no reconhecimento do significado do Estatuto, reconhecendo que aquele documento legal contribuiu para avanços no planejamento administrativo do Poder Executivo local, e em política sociais básicas, como é o caso do setor habitacional. Demonstraram que, ao regulamentar a função social da propriedade urbana e instituir mecanismos para elaboração do Plano Diretor e para a gestão democrática das cidades, o Estatuto veio propiciar embasamento legal para a implementação de melhorias estruturais e sociais nos centros urbanos, contribuindo até mesmo para a redução do índice de pobreza.

Enquanto se verifica um reconhecimento internacional à importância do Estatuto da Cidade, aqui ele permanece desconhecido, descumprido, ignorado, deliberadamente ou não, especialmente pelos gestores públicos. Não fica no esquecimento absoluto graças a vozes isoladas, otimistas quanto ao crescimento de espaços para a democracia participativa na prática.Continuam cobrando o seu cumprimento e que seus instrumentos, com vistas à efetividade, sejam recepcionados nas Leis Orgânicas Municipais. Um desses entusiastas é o geógrafo e professor universitário José Borzacchielo da Silva, que, em artigo no jornal O Povo, diz que o ideal republicano implantado no Brasil em 1989 "assumiria nova significação se os preceitos do Estatuto da Cidade fossem considerados como meio de legitimação de uma sociedade realmente democrática" (SILVA, O Povo, 15/09/2009, P. 7).

Não há dúvida de que o Estatuto da Cidade vem trazer sustentação legal para a aplicação de vários instrumentos capazes de viabilizar políticas urbanas mais eficazes, um melhor planejamento administrativo para os municípios, mas tem alguns pontos que chamam a atenção. O primeiro deles é que se intitula Estatuto da Cidade, quando, de fato, se refere ao município como um todo e não apenas à sede, criando uma equivalência de sentido entre os dois termos. Qualquer geógrafo sabe que cidade e município não são palavras sinônimas, sendo a cidade apenas parte da área total do município, do qual serve de sede.

Um outro ponto é que estende os seus efeitos ao Distrito Federal, que, sabe-se não é cidade, mas um ente específico da Federação, diferenciado dos demais entes, em vários aspectos. Também não é feliz quando trata das exigência do Plano Diretor para os municípios. Primeiro, porque coloca essa exigência para os municípios com mais de vinte mil habitantes, quando deveria ser para todos, como prevenção para evitar o crescimento desordenado das sedes de municípios com número de moradores inferior a vinte mil. Segundo porque não é claro com relação ao prazo para aprovação do Plano Diretor nos municípios criados depois da sanção do Estatuto.

Falhas, pontos obscuros, falta de clareza e outras deficiências de redação legislativa costumam ocorrer nos projetos que tem tramitação demorada no Congresso Nacional. É o caso do Estatuto da Cidade, que esperou muito tempo para ser levado a votação em plenário, quando o texto original já havia passado por diversas alterações, ocasionando uma certa falta de coesão na redação final. São, contudo, detalhes que não tiram o valor do Estatuto como instrumento de melhoria das condições de vida, das atividades econômicas e do cotidiano das cidades.

Tais advertências, é importante reafirmar, não invalidam o Estatuto da Cidade, pelos pontos positivos nele contidos, constituindo-se em avanços na legislação sobre o ordenamento das cidades e o reordenamento que se faz inadiável naquelas que se agigantaram, num crescimento desordenado. O que não é admitido pelos juristas e outros estudiosos é que dispositivos essenciais do Estatuto da Cidade continuem a ser descumpridos.

Tratando-se de uma lei que se situa na condição de Estatuto, evidente que é uma lei básica para o cumprimento dos arts. 182 e 183 da CF/88 e para uma efetiva gestão democrática das cidades. A tradição jurídica não deixa dúvida de que, se uma lei é básica, não há como fugir das determinações básicas nela estabelecidas. Resumindo: estatuto, conforme a boa doutrina jurídica, não é uma lei qualquer.

2.3. Orçamento Participativo e as Leis Complementares

Pelo menos duas leis complementares recepcionam a participação popular na elaboração e discussão das leis orçamentárias municipais: a Lei Complementar nº 101/ 2000, e a Lei Complementar nº 131/2009, de 27 de maio de 2009.

Mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a LC 101 trata nos artigos 48 e 49 da transparência na gestão fiscal na Administração pública em todos os níveis (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). No art. 48 está posto que essa transparência fica assegurada também "mediante incentivo à população popular e realização de audiências públicas durante o processo de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos", logicamente não só dos municípios federativos.

Mesmo sem a mesma ênfase do Estatuto da Cidade, porque, ao contrário deste, coloca a obrigatoriedade do Orçamento Participativo um tanto vaga, porém não deixa de ser mais um passo, em matéria de legislação, rumo à efetividade do Orçamento Participativo, com a vantagem sobre o Estatuto da Cidade, que é a de passar uma exigência legal para os demais entes federativos, além dos municípios.

O avanço instituído no art. 48 da LRF em matéria de orçamento público recebeu aplausos do jurista Régis Oliveira, autoridade em assuntos tributários e que considera que

É essencial e importantíssimo o dispositivo que introduz uma condição de validade de aprovação da lei orçamentária. O que antes era mera peça de ficção passou a ser comando obrigatório com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal e, agora, as realização de audiência públicas e de consulta passa a ser condição necessária para aprovação das leis orçamentárias (OLIVEIRA, 2005, p. 140).

Em 2009, foi sancionada a LC 131, que trouxe várias alterações no artigo 48 da LRF, que, no tocante à transparência da gestão fiscal, manteve, como uma das formas de assegurá-la a participação popular e as audiências na elaboração das leis orçamentárias dos entes federativos.

No esforço do seu aperfeiçoamento e atualização, a LRF, com o seu novo texto, passou, portanto, a contemplar o Orçamento Participativo. O entendimento do Congresso Nacional foi o de que, diante de sua falta de aplicação, o Estatuto da Cidade deve ser reforçado na forma de recepção do instituto do Orçamento Participativo em outras leis.

Em artigo sobre o tema, um dos mais experientes conselheiro de contas em atividade no Brasil, José de Ribamar Caldas Furtado, do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, chama atenção para esse avanço, ao asseverar que

Um marco importante da LRF foi a institucionalização do chamado orçamento participativo. O parágrafo único do art. 48 dispõe que transparência será assegurada mediante incentivo à participação popular com realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão do PPA, da LDO. A Lei quer que tal experiência praticada apenas em alguns municípios brasileiros, em face da ideologia do partido político à frente do Poder Executivo, se estenda a todos (FURTADO, 2005, P. 3).

Lei de Qualidade Fiscal

Tramitam conjuntamente no Senado três propostas para a elaboração e votação da Lei de Qualidade Fiscal, uma lei complementar que será substituta da Lei nº 4320, dispondo, portanto, sobre elaboração e controle das leis orçamentárias de todos os entes federativos. Os seus propositores colocam três pontos básicos para a nova lei, transparência, gestão e controle, inovando, por outro lado, com a inclusão da exigência não apenas de legalidade, mas também de eficácia, eficiência e efetividade na realização das despesas públicas. Nesse sentido, a nova lei, pelas discussões que está havendo, dentro e fora do Congresso, sobre ela, poderá instituir, inclusive, a exigência da fixação de indicadores, a serem cumpridos na implementação das políticas públicas, nas leis orçamentárias.

Uma das propostas para a nova lei é a garantia de participação da sociedade na elaboração e discussão das propostas das leis orçamentárias, reforçando o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal e do ciclo orçamentário instituído na Constituição de 1988. Por se tratar de matéria polêmica, não existe previsão de quando será levado ao Plenário do Senado nem mesmo o substitutivo aos três projetos em andamento naquela Casa.

Autor da proposta da elaboração e votação da nova lei complementar, substitutivo resultante de três projetos sobre o assunto que tramitavam no Senado, o senador Renato Casagrande (ES) sobre ela escreveu artigo publicado na edição de 2 de novembro de 2009 do site brasiliense Congresso em Foco, de que extraímos o seguinte trecho:

Necessário, portanto, se faz que aprovemos normas permanentes que estabeleçam um formato de discussão e votação dos orçamentos públicos no país. Não só pela transparência, mas pela necessidade de de buscarmos resultados mais eficazes na aplicação dos recursos públicos nas políticas de governo. Refiro-me a um instrumento legal que aborde todos os aspectos, desde o planejamento à contabilização, passando pelo controle dos orçamentos (CASAGRANDE, Renato, 2009).

2.4. Perspectivas de avanços na legislação

Encontram-se em tramitação no Congresso algumas propostas que, se aprovadas, poderão contribuir para reforçar a legislação que estabelece a obrigatoriedade do Orçamento Participativo. Entre eles, podem-se destacar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 29, de 2003, de autoria da senadora Lúcia Vânia (GO); e o Projeto de Lei do Senado nº 171/05, de lei complementar (altera a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de autoria do senador Pedro Simon, dos quais se fala a seguir.

Lei de Responsabilidade Social

A PEC nº 29 propõe alterar o artigo 193 da Constituição Federal, que passaria a ter a seguinte redação: "Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho e, como objetivo, o bem-estar e a justiça sociais, a serem avaliados por meio de indicadores de responsabilidade social, nos termos de lei complementar".

Na justificativa à propositura, a parlamentar argumenta que

A aprovação dessa PEC constituir-se-ia o passo inicial para que, obrigatoriamente, viesse a ser constituída, logo em seguida, uma Lei de Responsabilidade Social (LRS) capaz de definir, adequadamente, Metas Macro-Sociais (MMS) para o país e, complementarmente, capaz de instituir um Índice Nacional de Responsabilidade Social.

Observa que a Lei de Responsabilidade Social, a ser regulamentada em lei complementar, como decorrência da aprovação da PEC, a exemplo da Lei de Responsabilidade Social, abrangerá os três níveis de Governo (Federal, Estadual e Municipal). Conterá, conforme está dito na justificativa à PEC, normas gerais para a ordem social e econômica exigindo que metas sociais sejam alcançadas e a exclusão reduzida.

Acrescenta que as Metas Macro-Sociais (MMS) terão que ser conhecidas e acompanhadas por toda a sociedade, o que abre espaço para que, na lei complementar regulamentadora do novo teor do artigo 193 da CF/88, fique determinada a realização de audiências públicas ou outras formas de Orçamento Participativo especificamente para a definição de projetos e programas sociais para a Lei Orçamentária Anual (LOA) do respectivo ente federativo. Será a oportunidade, assegurada em lei, para a população atuar como parceira da Administração no momento de serem postos na LOA esses projetos e programas, bem como os respectivos indicadores e metas.

A iniciativa da senadora por Goiás mira-se na experiência que diversos municípios brasileiros já estão fazendo, adotando a Lei de Responsabilidade Social, tendo como parâmetro uma experiência já consagrada em muitas cidades, que é a existência de conselhos de gestão pública (de direitos ou setoriais) nos quais a comunidade também se pronuncia sobre o planejamento público municipal no âmbito social. São exemplos os Conselhos de Saúde, de Direitos da Criança e Adolescente, de Assistência Social, de Desenvolvimento Rural Sustentável, do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico) e outros, todos com previsão em leis nacionais específicas.

Essas experiências levadas a efeito já representam o resultado de um movimento nacional, o Fórum Brasil do Orçamento (FBO), que congrega cerca de 60 entidades e movimentos sociais em defesa do acompanhamento e participação na formulação e execução do orçamento público federal. Em 2002, o FBO deliberou elaborar uma proposta de Lei de Responsabilidade Social, baseada em cinco princípios: promoção do empoderamento social; desenvolvimento sustentável; combate às desigualdades sociais e regionais; participação e controle social; e transparência e clareza nas informações.

Apoiada na CF/88 e na legislação federal sobre políticas públicas sociais, alguns municípios, estimulados pelo FBO, adotaram a Lei de Responsabilidade Social em âmbito local, antecipando-se à aprovação de uma Lei de Responsabilidade Social para todos os entes federativos. O primeiro município brasileiro a aprovar sua Lei de Responsabilidade Social foi São Sepé (RS), seguindo-se Apucarana (PR), Maringá (PR), Umuarama (PR), Mauá (SP), Montes Claros (MG), Riberão Preto (SP) Lucas do Rio Verde (MT) e outros.

Cabe lembrar que a Lei de Responsabilidade Social só existe nesses municípios por uma questão de decisão política, simultaneamente a um movimento popular organizado, e não por imposição legal federal. Essa imposição virá com a aprovação, pela Câmara Federal, da PEC de autoria da senadora Lúcia Vânia, já aprovada no Senado, e, em seguida, de uma Lei de Responsabilidade Social com aplicação obrigatória por todos os entes federativos, com o que, obviamente, os demais municípios ficariam obrigados à adoção de lei dessa natureza.

Ao se reportar à campanha em defesa da aprovação de uma Lei de Responsabilidade Social nacional, ou seja com aplicação obrigatória para todos os entes federativos, Rudá Ricci, um dos coordenadores do movimento, adianta que o esboço da lei nacional concentra-se inicialmente em três eixos. Segundo ele, são os seguintes:

- O estabelecimento de mínimos sociais, metas sociais anuais e quadrianuais a serem definidas por cada ente federativo a partir da definição de prioridades de melhorias sociais;

- A criação de um Sistema Público de Monitoramento de Políticas e Metas Sociais, financiado com recursos públicos e composto por representantes dos conselhos de direitos e políticas públicas já existentes no país;

- A inclusão dessa lei no ciclo orçamentário vigente, isto é, estabelecendo como norma a criação de metas sociais na Lei Orçamentária Anual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Plano Plurianual da União, Estados e Municípios.

Os conselhos representativos da sociedade, além da participação na definição das políticas e metas sociais a serem cumpridas pela gestão pública, farão o monitoramento da execução dessas políticas e metas inseridas nas leis orçamentárias, conforme está no esboço da lei preparado pelo Fórum Brasil Orçamento (FBO).

Na aplicação da Lei de Responsabilidade Social, a parte social das leis orçamentárias nesses municípios resulta de um processo de negociação do Poder Executivo com os conselhos de direitos e políticas e entidades locais da sociedade civil. Para o acompanhamento da execução dos programas, projetos e ações sociais definidos na LOA, é constituído um colegiado representativo da sociedade, consolidando-se mais uma experiência de Orçamento Participativo no País, em uma quantidade pequena de cidades, mas que não deixa de ser um exemplo que pode ser visto como incentivo a outras. Será mais um instrumento de apoio legal à luta por uma vida melhor para a sociedade, sobretudo para os segmentos economicamente mais fragilizados.

Projeto do senador Pedro Simon

De iniciativa do senador Pedro Simon (RS), o PLS 171/05, proposta de lei complementar, inicialmente dispunha em seu art. 1º o seguinte:

Art. 1º. Os Poderes Executivo e Legislativo promoverão e incentivarão a participação direta de cidadãos brasileiros ou de entidades civis legalmente constituídas no processo de elaboração, aprovação e controle da execução do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e das leis orçamentárias anuais.

Como se percebe, a proposta seria de que não apenas as entidades, mas até mesmo o cidadão, individualmente, pudessem tomar parte nas fases do processo orçamentário não apenas em nível município, mas também na União, Estados e Distrito Federal. Ficou posto de modo indiscutível o objetivo de fornecer as bases regulamentares para viabilizar a obrigatoriedade da realização de audiências e acolhimento de emendas populares aos projetos de leis orçamentárias (plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias anuais em todos os níveis de Governo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

O projeto estabelecia ainda que fossem discutidos com a população e as entidades representativas os relatórios dos tribunais de contas da execução das leis orçamentárias em todas as esferas de governo. Aí entraria também o controle, pela população, também da execução orçamentária, ainda que sem caráter deliberativo, pois se sabe que esses relatórios ou são julgados pelo Poder Legislativo, quando se trata das contas anuais do Chefe do Poder Executivo (Federal, Estadual, do Distrito Federal ou do Município) ou pelas próprias cortes de contas quando se trata dos demais gestores públicos nesses níveis de governo.

A propositura, em sua tramitação no Senado (após o que ainda terá que tramitar na Câmara Federal), recebeu, em 2009, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado parecer favorável, mas nos termos de um substitutivo, em que perdeu muito do seu conteúdo original. Sob o argumento de que já havia normatização da matéria no parágrafo único do art. 48 da LRF, o projeto ficou reduzido, na CCJ, ao seguinte teor:

EMENDA Nº -- CCJ (SUBSTITUTIVO)

Projeto de lei do Senado Nº 171, DE 2005 – Complementar

Altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece normas de

finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências para dispor sobre a participação da população e de suas entidades no processo orçamentário.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

SEÇÃO III –A Da Participação Popular

Art. 7º -A Os Poderes Executivo e Legislativo promoverão e incentivarão a participação dos cidadãos brasileiros, diretamente ou mediante entidades civis legalmente constituídas, no processo de elaboração, aprovação e controle da execução do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e das leis orçamentárias anuais.

Art. 7º -B Para o cumprimento do disposto no art. 7º-A, a participação será exercida mediante:

I – a realização de audiências públicas, precedidas de ampla divulgação;

II - a recepção, para análise, de propostas de iniciativa popular".

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O projeto, como já afirmado, ainda tem um longo caminho pela frente, em termos de tramitação parlamentar, ensejador de outras emendas que possam resultar em um outro substitutivo. Não deixa de implicar um avanço em relação a este assunto, na Lei de Responsabilidade. Persiste, todavia, a mesma lacuna de tudo que já foi sancionado ou se encontra em nível de proposta parlamentar quanto à obrigatoriedade do Orçamento Participativo: não prevê nenhuma forma de punição para a autoridade que descumprir essa imposição, ou seja, é, mais uma vez, norma legal sem punição pelo descumprimento, porta aberta para não ser obedecida.

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Sobre o autor
José Ossian Lima

Jornalista e radialista. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do ceará (UFC) e Especialista em Administração Pública pela Faculdade Ateneu. Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, José Ossian. A obrigatoriedade do Orçamento Participativo no Município.: A (não) efetividade em discussão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2652, 5 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17559. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo também publicado no boletim Governet e no site do Observatório das Cidades da Universidade Federal de Sergipe.

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