III. A PRESCRIÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA ORIUNDA DE NORMA REGULAMENTAR.
No primeiro capítulo foram abordadas a complementação de aposentadoria proporcionada pela empresa, através de instituição fechada de previdência privada, e suas parcelas componentes, a serem pagas ao empregado após sua aposentadoria. No segundo capítulo, tivemos como tema a prescrição no Direito do Trabalho, suas modalidades e prazos.
Confrontando estes dois institutos, a complementação de aposentadoria e a prescrição no Direito do Trabalho, chegamos à questão central deste trabalho: como incide a prescrição sobre a complementação de aposentadoria, em primeiro caso, quando esta nunca foi paga e, em segundo, quando intenta-se pagamento de diferença a maior do valor complementar? Para tanto, cabe discutir a natureza dos valores a pleitear para, posteriormente, subsumir sua descrição àquelas previstas nas súmulas 326 e 327 do TST e desvendar sua devida aplicação e alcance.
III.1. VISÃO GERAL.
Para a inicial compreensão das diferentes aplicações da prescrição em relação às verbas de complementação de aposentadoria – prescrição bienal ou qüinqüenal – faz-se mister diferenciar os objetos a prescrever. Temos, portanto, dois sistemas prescricionais, um descrito na súmula 326 e outro na súmula 327, ambas do Tribunal Superior do Trabalho, que têm como objeto ações que pleiteariam dois direitos diferentes, apesar de correlatos.
Como abordado no primeiro capítulo, pela sua natureza de parcial representação do salário que o obreiro jubilado recebia quando em atividade, a complementação de aposentadoria é composta por diversas parcelas, referentes a salários e outras verbas, freqüentemente adicionais por tempo de serviço e benefícios do programa de alimentação do trabalhador. É justamente abordando estas parcelas e sua origem enquanto direito do trabalhador que podemos diferenciar os dois casos de incidência de prescrição.
III.1.1. Ato Único.
Trata-se de ato único quando a pretensão a prescrever admite a discussão de sua origem. Ora, nesta hipótese, a prescrição incide sobre a origem do direito às prestações; prescrevendo o direito de ação que defenderia esta origem, prescrevem também todas as prestações dela decorrentes, já que perderiam sua causa. Esclarecedora, neste sentido, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: [24]
Se o direito às prestações decorre do direito à anulação do ato, é claro que, prescrita a ação em relação a este, não é possível julgar prescritas apenas as prestações, porque prescreveu a ação para o conhecimento do direito do qual decorreria o direito às prestações. Do contrário, seria admitir o efeito sem a causa.
No mesmo sentido decide o Tribunal Superior do Trabalho, explicando que "ato único é o que atinge elemento de formação do contrato, de maneira tal que reste inconfundível a intenção de alterar o pactuado". [25] Pois bem, em se tratando de discussão de ato único, em que não haja certeza acerca da origem das prestações periódicas, e em havendo prescrição deste ato único, trata-se da prescrição total, prescrevendo com ele todas as prestações que dele decorreriam, já que a prescrição atinge o fundo do direito, na voz de nossos tribunais.
III.1.2. Prestações Periódicas.
Caso diverso do ato único encontramos na análise da prescrição de prestações sucessivas, não havendo questionamento acerca do direito que dá origem a estas prestações. Neste caso, implementada a condição que deu origem às prestações, surge o direito mensal e individual a cada uma das prestações. De forma objetiva, expõe a jurisprudência atemporal do Supremo Tribunal Federal que "quando é um direito conhecido, sobre o qual não se questiona, aí, são as prestações que vão prescrevendo". [26]
Pode-se concluir, nas palavras de Francisco Antônio de Oliveira [27], que em caso em que se cuida de prestações periódicas que constituem direito adquirido, ato jurídico perfeito, "o fato gerador do início da prescrição não se congela no tempo por se cuidar de prestações periódicas. Disso resulta que a discussão se projeta mês a mês, a cada inadimplência, posto que o direito se projeta em cada mês."
Assim, no caso de prestações sucessivas originadas por ato jurídico perfeito, fundamentadas por direito adquirido, das quais não seja mais discutível a causa, ocorrerá a prescrição parcial, correndo o prazo prescricional individualmente, prestação a prestação, não prescrevendo as mais recentes com as mais antigas.
III.1.3. Natureza da Complementação de Aposentadoria Não Paga.
A aprofundada lição de Francisco Antônio de Oliveira [28], que nos informa na qualidade de Desembargador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ensina-nos que
se o empregado ao ser admitido na empresa tinha assegurado, através de contrato ou do estatuto próprio da empregadora, a complementação da sua jubilação futura, esse direito se tornou lei entre as partes, imodificável unilateralmente (art. 6º, § 2º, da LICC). É nesse sentido a súmula n. 51 do Colendo TST.
Assim, ao rescindir o seu contrato, se o empregado já havia somado todos os requisitos para que a empresa efetuasse a complementação da sua aposentadoria, de ato único não se cuida. [...]
O direito à aposentadoria é indiscutível e tem a referendá-lo o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.
Pois bem, conjugando o conhecimento abordado no primeiro capítulo acerca da natureza jurídica de direito adquirido – e não mera expectativa de direito – da complementação de aposentadoria, é indiscutível o fato de que, à data de sua jubilação, o empregado conta com o pleno direito, indiscutível e inafastável, de receber a complementação à sua aposentadoria, sendo esta avençada na constância de seu contrato de trabalho. Conclusão lógica é que se trata de prestações periódicas, e não discussão de ato único. De outro excerto de Oliveira [29]:
Ato único é aquele que permite que se discuta sobre a legalidade ou não da inadimplência, ou seja, da resistência da empresa em não cumprir aquilo a que se comprometera contratual ou estatutariamente. Se esse direito é indiscutível, a resistência do empregador desaguará nas prestações periódicas. E a prescrição recomeçará a cada mês que inadimplir. [grifos do autor]
Seguindo o raciocínio, podemos afirmar que a única hipótese em que a discussão da complementação de aposentadoria desenvolver-se-ia em torno de ato único encontramos no caso de fazer-se presente discussão acerca do fundo do direito, da origem da obrigação de prestar a complementação. Esta discussão só é possível no caso de ser a origem do direito à parcela da complementação posterior à jubilação, como, por exemplo, no caso de condenação judicial que majore a base de cálculo da complementação, abordado no ponto I.2, sendo a diferença devida a partir desta majoração, e não da aposentadoria.
Neste caso, prescrevendo o direito à majoração da base de cálculo, por exemplo, prescrevendo a ação para pleitear o pagamento de adicional noturno ou por tempo de serviço, com ela prescreveriam as parcelas de complementação de aposentadoria dela decorrentes. Neste caso, poder-se-ia falar em ato único e em prescrição total, mas antes de reconhecido o direito do trabalhador, ou seja, na constância da discussão da majoração da base de cálculo; após este reconhecimento, não há mais que se falar na discutibilidade do fundo de direito e, sendo indiscutível a origem do direito, voltamos às raias das prestações periódicas, sendo novamente aplicável somente a prescrição parcial, parcela a parcela. Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região [30]:
II - DIFERENÇAS MENSAIS DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA, ORIUNDAS DE VERBAS SALARIAIS DEFERIDAS EM RECLAMATÓRIA TRABALHISTA ANTERIOR. PRESCRIÇÃO PARCIAL QÜINQÜENAL. APLICAÇÃO DA SÚMULA 327 DO TST.
[...] Uma vez que o pedido de diferenças mensais de complementação de aposentadoria é oriundo da aplicação de norma regulamentar da empresa que instituiu o benefício ou de entidade previdenciária patrocinada pelo empregador, mesmo que essas diferenças mensais do benefício tenham origem em outra reclamatória trabalhista na qual foram deferidas verbas de natureza salarial ao empregado agora aposentado, a prescrição aplicável é a parcial, não atingindo totalmente a pretensão nem o direito de ação, mas tão-somente as parcelas mensais anteriores ao último qüinqüênio, contado do aJuizamento da ação. Aplicação da Súmula 327 do C. TST [...]. Outrossim, não há que se falar em prescrição bienal total, contada da rescisão contratual, uma vez que tal complementação somente é devida mensalmente, a partir da data de aposentadoria ou de desligamento, renovando-se mensalmente a alegada lesão a partir de então. Afasta-se, portanto, a prescrição total reconhecida em sentença para reconhecer e declarar a prescrição parcial qüinqüenal, nos termos do art. 7º, XXIX, da CRFB/1988 e da Súmula 327 do C. TST. Afastada a prescrição total decretada, e em se tratando de matéria exclusivamente de direito, afigura-se imperativo o exame da pretensão de fundo, mediante aplicação analógica do disposto no art. 515, § 3º, do CPC. Recurso do autor ao qual se dá provimento parcial.
Não resta qualquer dúvida quanto à natureza de prestações periódicas das parcelas de complementação de aposentadoria, tendo sido estas alguma vez pagas ou não, não havendo qualquer margem para atribuir-lhes a natureza de ato único, exceto quando discutível a origem do direito, como na pendência de majoração da base de cálculo da complementação. Conclui-se, portanto, que a única prescrição que lhes é cabível é a parcial, sendo completamente afastada, frente ao todo orgânico que é nosso ordenamento jurídico, a razoabilidade da incidência da prescrição total.
III.2. SÚMULA 326 TST: PARCELA NUNCA RECEBIDA. PRESCRIÇÃO TOTAL.
No intuito de resolver as questões acerca da prescrição da complementação de aposentadoria, editou o Tribunal Superior do Trabalho as súmulas 326 e 327, sendo esta a redação da primeira:
Complementação dos proventos de aposentadoria. Parcela nunca recebida. Prescrição total
Tratando-se de pedido de complementação de aposentadoria oriunda de norma regulamentar e jamais paga ao ex-empregado, a prescrição aplicável é a total, começando a fluir o biênio a partir da aposentadoria.
Bem, diante de todo o exposto até este ponto deste trabalho, o mínimo que podemos dizer é que o Tribunal Superior do Trabalho faltou com o seu usual zelo e técnica jurídica na elaboração de tal súmula. Reforçando a completa inadequação da prescrição total em relação à complementação de aposentadoria, Oliveira [31] nos revela a imutabilidade da natureza de prestações periódicas desta:
em se tratando de direito adquirido não há necessidade de o empregador reconhecer o direito com o pagamento de uma ou mais parcelas para que a discussão se projete em sede de ato único ou de prestações periódicas. [...]
Em de tratando de direito adquirido, ainda que não consumado, esse fato por si só não transmuda a sua natureza periódica para ato único. [grifou o autor]
Ora, se trata-se de prestações periódicas, e não de ato único, é abominável a idéia de aplicar às parcelas de complementação de aposentadoria a prescrição total, ainda que estas nunca tenham sido pagas, já que é incontroverso o fundo do direito, utilizando da expressão recorrente na jurisprudência.
Como já exposto anteriormente, teríamos como única possibilidade de prescrição total da pretensão de complementação de aposentadoria quando esta constituísse ainda mera expectativa de direito, ocasião em que ainda restaria controvérsia acerca da origem do direito à complementação, como corretamente conclui a Orientação Jurisprudencial 156 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho, in verbis:
Complementação de aposentadoria. Diferenças. Prescrição.
Ocorre a prescrição total quanto a diferenças de complementação de aposentadoria quando estas decorrem de pretenso direito a verbas não recebidas no curso da relação de emprego e já atingidas pela prescrição, à época da propositura da ação.
Assim, sendo a complementação de aposentadoria direito adquirido, de fundo indiscutível, é inadmissível a prescrição total, sob qualquer hipótese, tenha sido qualquer parcela recebida ou não.
Não nos socorre saber qual seria a intenção do Tribunal Superior do Trabalho, quais os verdadeiros motivos que levaram os Ministros da sua Comissão de Jurisprudência a elaborar a súmula 326, já que não dispomos de uma interpretação originária desta, por parte daqueles. Cabe, nesta crítica, reproduzir aqui as palavras de Francisco Antônio de Oliveira [32], na qualidade de quem já ocupou a cadeira de Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região:
Em se cuidando de direito adquirido e já incorporado ao patrimônio do insuficiente, posto que somados os requisitos necessários e culminando com a aposentadoria, não nos parece tenha a mais alta Corte Trabalhista escolhido o melhor caminho, já que investe, sem nenhum motivo plausível que não o apressamento, contra o patrimônio do trabalhador, nem sempre politizado e muitas vezes até simplório na busca de seus direitos. De outra parte, conta com empresas organizadas e que possivelmente usarão de todos os artifícios para que decorram os dois anos de que fala a súmula, para então invocá-la.
Ao excepcionar para aqueles casos em que o trabalhador busca apenas a paga de diferenças sobre complementação que vem sendo paga normalmente, a súmula priorizou o direito adquirido e consumado, não o direito adquirido e ainda não usufruído. E com a agravante de dar tratamento de ato único ao que conceitualmente não o é. [grifou o autor]
Salta aos olhos, portanto, a completa inaplicabilidade desta súmula 326 do Tribunal Superior do Trabalho, frente ao ordenamento jurídico pátrio, na qualidade que lhe assiste de ser um todo orgânico, pensado coordenadamente; conclusões mais profundas acerca desta inaplicabilidade desenvolver-se-ão no ponto III.5, adiante.
III.3. SÚMULA 327 TST: DIFERENCA DE PARCELA RECEBIDA. PRESCRIÇÃO PARCIAL.
A súmula 327 do Tribunal Superior do Trabalho diferencia seu objeto daquele da súmula 326 por tratar da diferença de valor da complementação de aposentadoria, ou seja, da sua majoração. Na sua redação atual, aplica, para este caso, o lapso prescricional de cinco anos, sob a forma de prescrição parcial, individual para cada prestação periódica. Eis seu texto:
Complementação dos proventos de aposentadoria. Diferença.
Tratando-se de pedido de diferença de complementação de aposentadoria oriunda de norma regulamentar, a prescrição aplicável é a parcial, não atingindo o direito de ação, mas, tão-somente, as parcelas anteriores ao qüinqüênio.
A redação atual da súmula, que data de 21 de novembro de 2003, corrigiu profundo erro presente em sua redação original, elaborada no ano de 1993, que aplicava ao caso a prescrição parcial, mas não qüinqüenal, mas sim bienal, de maneira completamente contrária a qualquer disposição legal e entendimento doutrinário presente em nosso ordenamento jurídico. Assim, pode-se hoje afirmar que o entendimento da súmula 327 do Tribunal Superior do Trabalho é perfeitamente consonante com o Direito do Trabalho brasileiro.
Por óbvio, a súmula 327 do Tribunal Superior do Trabalho encontra extensa aplicação em julgados de nossa jurisprudência, alguns dos quais cabe aqui, exemplificando, reproduzir:
DIFERENÇAS DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA (TICKET ALIMENTAÇÃO) – PRESCRIÇÃO – ENUNCIADO Nº 327 DO TST
Aplica-se a prescrição parcial quando a parcela em debate foi incluída no cálculo de complementação de aposentadoria por determinado período, sendo posteriormente suprimida ou não corrigida. E, como se extrai dos autos, o direito à integração do ticket alimentação na complementação de aposentadoria fora inicialmente reconhecido pelas Reclamadas, tanto que foi paga por determinado período. Se a supressão for declarada indevida, gerará o direito a diferenças de complementação de aposentadoria, cuja prescrição é parcial, nos termos do Enunciado nº 327 do TST. [33]
DIFERENÇAS DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA – PRESCRIÇÃO – PARCELAS DEFERIDAS EM OUTRA RECLAMATÓRIA.
Versando a discussão nos autos sobre diferenças de verbas deferidas em outra reclamatória, as quais alega o reclamante fazer parte de sua base de cálculo, aplicável ao caso o entendimento trazido pela Súmula 327 do E. TST. [34]
II - DIFERENÇAS MENSAIS DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA, ORIUNDAS DE VERBAS SALARIAIS DEFERIDAS EM RECLAMATÓRIA TRABALHISTA ANTERIOR. PRESCRIÇÃO PARCIAL QÜINQÜENAL. APLICAÇÃO DA SÚMULA 327 DO TST.
A lide não versa sobre pedido de complementação de aposentadoria jamais paga ao empregado, mas sim de pedido de diferenças de complementação de aposentadoria decorrentes de verbas já pagas ou devidas ao longo do contrato de trabalho, mesmo que reconhecidas em reclamatória trabalhista anterior entre as partes, razão pela qual aplica-se a Súmula 327 e não a Súmula 326, ambas do TST. [35]
PRESCRIÇÃO – DIREITO DE AÇÃO- COMPLEMENTAÇÃO DOS PROVENTOS DA APOSENTADORIA – DIFERENÇAS SALARIAIS .
Inviabilidade da consideração da data da extinção do pacto laboral para efeitos prescricionais, tratando-se de direito decorrente de relação obrigacional acessória, mas distinta do contrato de trabalho. Exegese do Enunciado nº 327/SJ/TST. Inexistência de prescrição total do direito de ação a ser pronunciada. Recurso provido, para, em afastando a pronúncia da prescrição extintiva do direito de ação, quanto ao pedido de diferenças de proventos de complementação de aposentadoria, determinar a baixa dos autos ao Juízo de origem, para julgamento dos pedidos vertidos na peça inicial. [36]
Por fim, cabe apenas uma ressalva à súmula 327 do Tribunal Superior do Trabalho: seria, certamente, muito mais saudável a jurisprudência deste Tribunal, se esta súmula abarcasse não só os casos de diferença de complementação de aposentadoria, mas também a prescrição de parcelas nunca dantes pagas ao empregado aposentado, em lugar da súmula 326. Falta-nos ainda, porém, a análise destes dispositivos frente à Constituição Federal e o Código Civil para, por fim, abordar seu alcance.
III.4. CONFRONTO DA PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL E NO ARTIGO 7º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Como amplamente discutido até aqui, não faltam motivos para afastar a prescrição total bienal – instituto do Direito do Trabalho, tão-somente – no caso de complementação de aposentadoria. Surgindo diversas alternativas e posicionamentos, faz-se necessária uma análise que leve em consideração a natureza jurídica das obrigações e a prescrição no Direito Civil, para que se possa analisar, no próximo ponto, a aplicação e alcance das súmulas 326 e 327 do Tribunal Superior do Trabalho.
A norma aplicável quanto à prescrição da complementação da aposentadoria, na voz do Supremo Tribunal Federal, por não ser nascida na vigência do contrato de trabalho, mas no término da relação de emprego, é a civil, e não a trabalhista, que é originária da Constituição Federal (estando desatualizado o Texto Consolidado, como exposto no ponto II.2). Eis claro decisum do Supremo [37] neste sentido:
1. Prescrição trabalhista: discussão acerca do termo inicial do prazo bienal definido no art. 7º, XXIX, CF: matéria não apreciada pelo Tribunal a quo no julgamento de ação rescisória, tendo em vista a não apreciação deste tema pelo julgado rescindendo - Enunciado 298 da Súmula do TST: para a análise da alegada violação do dispositivo constitucional apontado no recurso extraordinário seria imprescindível a prévia reapreciação de questões concernentes ao cabimento da ação rescisória no âmbito da Justiça do Trabalho: a alegada ofensa seria, se ocorresse, indireta ou reflexa.
2. Quanto à fixação do referido prazo prescricional, é questão infraconstitucional saber se atinge o "fundo do direito" ou apenas as prestações anteriores ao biênio; de qualquer modo, a norma constitucional só atinge pretensões nascidas na vigência do contrato de trabalho, não a de complementação da aposentadoria, que surge com o término da relação de emprego. [grifei]
Este entendimento repete-se em diversos Tribunais, a exemplo do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região [38], com decisão exemplificativa aqui reproduzida:
I – DIFERENÇAS MENSAIS DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
[...] Questões relativas à ilegitimidade passiva das rés, à prescrição das diferenças de complementação de aposentadoria, custeio e/ou devolução das contribuições, base de cálculo, teto do benefício e valores devidos mensalmente situam-se no âmbito infraconstitucional e são relacionadas ao mérito da relação processual.
Ora, já foi amplamente fundamentado que a complementação de aposentadoria é direito adquirido do obreiro na constância do contrato de trabalho, direito este que vem concretizar-se pela implementação da condição suspensiva que consiste na jubilação do trabalhador. Com base neste entendimento, considera o Supremo Tribunal Federal que a complementação de aposentadoria é pretensão surgida com o término da relação de emprego, e não surgida na vigência do contrato de trabalho, já que se encontrava sob condição suspensiva, o que afasta totalmente a aplicação da prescrição constitucional trazida no inciso XXIX do artigo 7º da Lei Maior, que alcança explicitamente "[...] os créditos resultantes das relações de trabalho", e não do término destas.
Nesta tese, qual seria a regência de prescrição incidente sobre a ação acerca da complementação de aposentadoria? Cabe, para tanto, analisar qual seria a natureza jurídica da relação contratual que a origina e a integração entre esta e a relação de emprego.
Acerca da relação empregatícia, à natureza jurídica não se permitem questionamentos: é contrato trabalhista, regido por normas específicas e devidamente direcionadas. Mas, se a complementação de aposentadoria, como se posiciona o Supremo Tribunal Federal, não é resultante da relação de trabalho, sua natureza não é trabalhista. Analisando a Constituição Federal em seu artigo 202 e a Lei Complementar 109/2001, temos que a complementação de aposentadoria tem, enquanto relação contratual, natureza de previdência privada. Esta natureza fica explícita em nossa jurisprudência, a exemplo deste fragmento de acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região [39]:
[...] por abranger questão relativa a diferenças na complementação de aposentadoria que vem sendo paga [...], a contagem do prazo prescricional não se conta a partir da ruptura do contrato de trabalho, pois a lide não versa sobre parcelas de natureza trabalhista, mas sim parcelas sucessivas de natureza previdenciária.
Explica-se a decorrência de um contrato de natureza previdenciária a partir de um contrato de natureza trabalhista pelo instituto da coligação contratual, em que ambos se relacionam em razão dos interesses dos contratantes. Bebendo na fonte da doutrina de Pontes de Miranda, Bulgarelli [40] nos apresenta este instituto:
Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes como um todo. [...] Mas não se fundem. Conservam a individualidade própria. [...] A coligação necessária, também chamada genética, é imposta por lei. [...] Os contratos coligados não perdem a individualidade, aplicando-se-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustam.
Orienta-nos José Abreu Filho [41] acerca de uma "pluralidade de negócios, cada um perfeito em si mesmo e produzindo os seus efeitos"; assim, cada um dos negócios teria seu efeito, natureza e regulamentação, "mas os efeitos dos vários negócios são coordenados para a realização de uma função fundamental, falando-se, por isso, em negócios coligados".
Pois bem, se os contratos coligados "não perdem a individualidade, aplicando-se-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustam", não haveria motivo para imprimir ao contrato previdenciário de complementação de aposentadoria as regras prescricionais do contrato trabalhista de relação de emprego. Assim, conclui-se, fundamentadamente, que, como corretamente entende o Supremo Tribunal Federal, a prescrição aplicável à pretensão de pleitear complementação de aposentadoria é a do Direito Civil, como norma geral, seguindo as normas especiais do Direito Previdenciário.
Neste entendimento, é mais que adequada a exposição da norma previdenciária acerca da prescrição de prestações não pagas. Vem a lume a norma do artigo 75 da Lei Complementar 109/2001, regente da previdência complementar, que estabelece prazo prescricional de cinco anos, na forma do Código Civil, analogicamente ao artigo 103 parágrafo único da Lei 8.213/1991, o regime geral da previdência social. Eis os dispositivos:
Lei Complementar 109/2001:
Art. 75. Sem prejuízo do benefício, prescreve em cinco anos o direito às prestações não pagas nem reclamadas na época própria, resguardados os direitos dos menores dependentes, dos incapazes ou dos ausentes, na forma do Código Civil.
Lei 8213/199:
Art. 103. [...]
Parágrafo único. Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil.
É tamanha a intenção de aproximar a prescrição da complementação de aposentadoria das normas do Estatuto Civil que o prazo prescricional, de cinco anos, adéqua-se perfeitamente à disposição geral do inciso I do parágrafo 5º do artigo 206 deste Código, que nos informa que "prescreve em cinco anos a pretensão de cobrança de dívidas líqüidas constantes de instrumento público ou particular", como é o caso da complementação dos proventos da aposentadoria.
Pois bem, se esta prescrição se dará na forma do Código Civil, é de clareza solar o fato de que a única modalidade de prescrição aplicável é a parcial, em obediência ao disposto no artigo 189 do Código Civil, que estabelece como termo inicial da prescrição a violação do direito, ocorrida, para as prestações periódicas, uma a uma, isoladamente. Afasta-se definitivamente a prescrição total, além de qualquer modalidade de prescrição trabalhista prevista no artigo 7º, inciso XXIX, da Constituição Federal.
III.5. ALCANCE E APLICAÇÃO DAS SÚMULAS 326 E 327 DO TST.
Depois de abordados a complementação de aposentadoria e sua natureza jurídica de obrigação composta por prestações periódicas, a prescrição no Direito do Trabalho, com suas modalidades de incidência, a prescrição total e a parcial, e a intersecção destes dois institutos – a prescrição incidente sobre a pretensão de complementação de aposentadoria – com suas diversas regências legais, analisando-se em paralelo doutrina e jurisprudência pátrias, surge uma questão crucial para este trabalho: quais são (ou deveriam ser) o alcance e a aplicação das súmulas 326 e 327 do Tribunal Superior do Trabalho?
Existe, sim, um largo e profundo abismo entre qual é e qual deveria ser o alcance e aplicação das súmulas 326 e 327 do Tribunal Superior do Trabalho. Considerando que a jurisprudência na forma de súmula é a interpretação dada pelo tribunal ao ordenamento jurídico, e a aplicação da súmula no caso concreto é, de mesmo modo, interpretativa, temos um longo iter de interpretações entre a base do ordenamento e a sua aplicação no caso concreto. Claro, inafastável é esta interpretação, razão de ser da necessária existência de todo o aparato judiciário. Porém, dela podem surgir algumas disparidades.
Claro exemplo é a aplicação da súmula 326 do Tribunal Superior do Trabalho. Ao falar em "parcela nunca recebida", surge ampla discussão prática sobre a que parcela refere-se a súmula: seria no sentido da parcela enquanto componente do valor devido enquanto remuneração? Ou seria no sentido de prestação periódica? Este caso é abordado por Oliveira [42]:
Suponha-se que a empresa tenha pago a primeira parcela de complementação no mês imediato à jubilação tão-somente. A partir de então não mais cumpriu a obrigação. A discussão seria sobre ato único ou sobre prestações periódicas?
[...]
Daí resultaria que do pagamento de uma ou mais parcelas, em havendo inadimplência no pagamento, se decorridos dois anos a prescrição será total e não parcial. Essa é a orientação que aflora. [grifos do autor]
As decisões que decorrem da liberdade interpretativa, neste e em outros casos, chegam a sobrepor a disposição da súmula 326 do Tribunal Superior do Trabalho em campos e hipóteses de clara aplicação da súmula 327, em manifesto atentado contra a razão última de existência da Justiça especializada do Trabalho: a proteção do trabalhador, sujeito hipossuficiente da relação de emprego, em seus direitos.
Tal é a conclusão a que podemos chegar, sem ser necessário qualquer adendo às palavras do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello [43], quando em atividade no Tribunal Superior do Trabalho:
[A prescrição total] diz respeito àquelas hipóteses em que a demanda versa sobre parcelas que se tornaram devidas antes ou com a cessação do contrato, não alcançando, assim, hipótese em que se discutem prestações decorrentes de relação jurídica de débito continuado e que se tornaram devidas, mês a mês, após a cessação do contrato. Conclusão diversa reflete o paradoxo segundo o qual o empregador, após satisfazer as parcelas durante dois anos, passa a contar com o instituto, revelando-se ineficaz o direito do empregado, ainda que até então viesse satisfazendo a obrigação assumida.
Realmente, parafraseando o Ministro Marco Aurélio Mello, só podemos chamar de paradoxal a aplicação da prescrição nuclear, total, a uma obrigação que tem a natureza de prestações periódicas – argumento lapidado à exaustão neste trabalho. Perfeitamente cabível a sugestão de Francisco Antônio de Oliveira [44]: "esta súmula [326 TST] merece ser repensada posto que atenta contra o direito adquirido do trabalhador e está à calva do critério da razoabilidade". A dominância da aplicação da Súmula 327 sobre a 326 é claramente exposta em acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região [45]:
COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA. PRESCRIÇÃO. ENUNCIADO 326 E ENUNCIADO 327 DO C. TST.
Aplicabilidade: [...] Cogita-se, então e tão-somente da prescrição parcial, na medida em que a lesão ao patrimônio jurídico do autor se renova a cada mês. Vale dizer, tratando-se de parcelas de cunho sucessivo, o prejuízo do autor se repete a cada pagamento em valor menor do que o que deveria ser pago [...]. Logo, a prescrição é sempre parcial, a teor do preceituado no enunciado 327 do C. TST.
Com base em todo o exposto, parece-nos o mais sensato concluir, no tocante ao alcance e aplicação das súmulas 326 e 327 do Tribunal Superior do Trabalho, que a primeira seja o quanto antes cancelada pela Comissão de Jurisprudência do Egrégio Tribunal, já que completamente atentatória a todas as disposições jurídicas pertinentes ao assunto no Direito brasileiro, sendo, em seu lugar, estendido o alcance da súmula 327 do Tribunal Superior do Trabalho, abarcando esta última, além dos casos de diferença na complementação, todo o qualquer caso em que se questione a prescrição da pretensão de complementação de aposentadoria, sendo esta paga ou não a qualquer tempo, incidindo aí a prescrição parcial, de lapso correspondente a cinco anos.