9. Crítica à cautelaridade
Doutrina e jurisprudência, conforme exposição retro, são uníssonas em cuidar das protetivas como medidas cautelares.
Por definição, medidas cautelares são tutelas de urgência com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito invocado.
Nessa lógica, deveriam as medidas protetivas obedecer aos requisitos mínimos de instrumentalidade, de temporariedade e de não-satisfatividade. Entretanto, por serem tais características incompatíveis com sua finalidade, não há como sustentar-se tal tese.
Com efeito, como cautelar, a protetiva deveria fazer referência a um processo principal, conforme artigo 796 do Código de Processo Civil. Para alguns, é possível que se entenda que o principal é o processo criminal. Todavia, essa vinculação traria os inconvenientes acima apontados, em especial a desproteção da mulher em caso de retratação da representação, ou a manutenção dessa para garantia de vigência da ordem. Ademais, não se pode admitir que medida de natureza cível vincule-se a processo principal de caráter criminal.
Para outros, então, principal seria o processo a ser ajuizado na vara de família, como o de divórcio, o de reconhecimento e dissolução de união estável, o de alimentos. Ainda que tal entendimento seja compatível com a natureza cível da protetiva, é certo que essa não guarda o traço da referibilidade àquelas demandas. A proibição de contato do ofensor com a vítima não seria instrumento de sucesso da ação de alimentos, para se dar um exemplo. No mais, há casos em que vítima e ofensor não têm pendências judiciais a serem resolvidas, como na violência entre irmão e irmã ou entre namorados.
Outro problema diz com o prazo de cessação da eficácia da tutela, nos termos do artigo 808 do referido diploma legal. Assim, uma vez deferida a protetiva, a vítima teria o lapso de trinta dias para ajuizamento do processo principal, sob pena de perda da eficácia da ordem.
Tal conseqüência, por demais gravosa, vai de encontro à razão de existência das próprias medidas protetivas. Se, de um lado, se constatam dificuldades para o ajuizamento das demandas, como o acesso à célere assistência jurídica, a obtenção de documentos necessários à propositura da ação ou mesmo a instabilidade emocional, de outro lado é possível que sequer exista a necessidade de outro feito, como mencionado anteriormente.
De tal modo, a exigência de futura propositura de ação significaria nova desproteção à vítima, em atendimento a formalismo incompatível com o mecanismo de solicitação da ordem.
Isso posto, conclui-se que a medida protetiva, porque autônoma e satisfativa, não é tutela de natureza cautelar, mas sim tutela inibitória.
Com efeito, ao entregar à vítima o direito material invocado – consistente em sua proteção perante o suposto agressor – dispensa a medida protetiva qualquer outro procedimento, produzindo efeitos enquanto existir a situação de perigo que embasou a ordem (rebus sic stantibus).
A circunstância de a demanda ser fundada em perigo e baseada em cognição sumária – na fase de antecipação de tutela da protetiva – não implica, necessariamente, a caracterização da medida como cautelar.
Cuidando de tal diferenciação, esclarece Luiz Guilherme Marinoni que
"a mais importante das tutelas jurisdicionais a serviço da integridade do direito material é a tutela inibitória, destinada a proteger o direito contra a possibilidade de sua violação. Para ser mais preciso, a tutela inibitória é voltada a impedir a prática de ato contrário ao direito, assim como a sua repetição, ou ainda, continuação. Se a cautelar serve para assegurar a tutela do direito, pra prevenir a violação do direito não é necessária uma tutela de segurança, mas apenas a tutela devida ao direito ameaçado de violação, ou seja, a tutela inibitória" 11.
Portanto, uma vez deferida a ordem, porque demonstrada a probabilidade de violação do direito, para sua vigência é suficiente que permaneça a situação de perigo que a lastreou, não havendo que se falar em ajuizamento de processo principal.
10. Prisão civil
A Lei Maria da Penha alterou a redação do artigo 313 do Código de Processo Penal para possibilitar a decretação da prisão preventiva como garantia da execução das medidas protetivas de urgência se o fato envolver violência doméstica e familiar contra a mulher.
A abertura tem possibilitado casos aberrantes de prisão preventiva duradoura decretada no bojo de termo circunstanciado instaurado para apuração de contravenção penal ou de inquérito versando sobre crime cuja pena máxima jamais levaria ao cumprimento da sanção em regime fechado.
A inclusão é absurda e fere os mais primordiais princípios do sistema de garantias individuais previsto na Constituição Federal, não encontrando amparo sequer nos tratados internacionais que versam sobre violência doméstica.
Visto que são as protetivas medidas de natureza cível, a previsão de prisão para garantia de sua execução nada mais é do que nova hipótese de prisão civil.
O simples fato de a previsão ter sido alocada no Código de Processo Penal não tem o condão de forjar a natureza criminal da sanção.
Assim, conferida a medida protetiva à mulher, essa deve se valer dos mecanismos próprios à execução da tutela inibitória, com todas as providências previstas no artigo 461 do Código de Processo Civil, tal como determina o artigo 22, § 4º, da Lei 11.340/2006.
Note-se que há ordens judiciais igualmente importantes para aquele que a obtém ou de semelhante repercussão para o que a sofre, mas que nem por isso levam à cogitação do decreto da prisão, como é o caso, por exemplo, de liminar em reintegração de posse ou do afastamento do cônjuge do lar obtido na vara de família.
A doutrina começa a concluir no sentido da inconstitucionalidade. Assim, Rogério Sanches Cunha:
"Com efeito, se a medida protetiva é de caráter civil, a decretação da prisão preventiva, em um primeiro momento, violará o disposto nos arts. 312. e 313 do CPP, que tratam, por óbvio, da prática de crimes. E, pior, afrontará princípio constitucional esculpido no art. 5º, LXVII, que autoriza prisão civil apenas para as hipóteses de dívida de alimentos ou depositário infiel" 12.
Paulo Rangel é ainda mais incisivo. Ao tratar do inciso IV do artigo 313, assim conclui:
"Nada mais hediondo. A prisão preventiva é para assegurar o curso do processo (cautelar) e não para assegurar o cumprimento de medidas administrativas de proteção da ofendida. Não somos contra as medidas de proteção da ofendida, mas o Estado deve lançar mão de outros mecanismos para assegurar seu efetivo cumprimento que não a prisão do acusado (...) O Estado não tem como dar garantias à ofendida e, por isso, mandar prender o acusado. Criou as regras protetivas da ofendida sabendo que a realidade brasileira não permitirá assegurá-las e resolveu prender o acusado para que ela ficasse tranqüila". 13
Logo, a análise da possibilidade de decretação da prisão preventiva do agressor deve ser encetada junto ao processo-crime – não no bojo da medida protetiva –, atentando-se às hipóteses do artigo 312 do diploma processual penal e tendo-se como vértice a proporcionalidade e a homogeneidade. Qualquer decisão que fuja a tais parâmetros inexoravelmente levará consigo a pecha da ilegalidade.
11. Conclusão
Por todo o exposto, conclui-se que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, ostentam natureza jurídica de tutela inibitória cível.
De tal conclusão emergem como consectários a adoção do procedimento ordinário do Código de Processo Civil, a execução com fundamento no cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer do mesmo diploma legal e a inconstitucionalidade da prisão decretada com o fim exclusivo de garantir sua execução.
Espera-se que doutrina e jurisprudência atentem-se para a importância da uniformização do trato da natureza jurídica das medidas de proteção, controlando, assim, a profusão de decisões incompatíveis entre si e insustentáveis diante do sistema de garantias individuais vigente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis. 6ª edição. Niterói: Impetus, 2009.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 11ª edição. Niterói: Impetus, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo Cautelar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3ª edição. Salvador: Podivm, 2009.
Notas
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça, p.140.
FEITOSA, Denílson. Direito Processual Penal, p. 626.
CUNHA, Rogério Sanches.Violência Doméstica, p. 121. e 136.
TJDFT, Conselho Especial, Conflito de Competência 20080020137058, DJ 28/01/2009.
TJDFT, 2ª Turma Criminal, Apelação 20060111217028, DJ 24/06/2009.
TJDFT, 1ª Turma Criminal, Agravo de Instrumento 20100020000138, DJ 18/02/2010.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral, p. 9.
TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal, p. 59.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Parte Geral, p.14.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Volume II, p. 23.
MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Cautelar, p. 38.
CUNHA, Rogério Sanches. Violência Doméstica, p. 121.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 777.