4. Direito Aplicável
Consumidores que atualmente morrem, ou apresentam severos comprometimentos em sua saúde, em regra, começaram a fumar na adolescência, e continuaram fazendo uso do cigarro ao longo da vida. O vício da nicotina acompanha o fumante por anos e até décadas, intervalo de tempo suficiente para a vigência de diversos diplomas legislativos.
Cumpre, de início, fazer menção ao Código Civil de 1916, diploma legal vigente à época em que a maioria dos fumantes, hoje moribundos, iniciaram-se no vício, e que trazia em seu artigo 159 a seguinte prescrição:
"Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano"
Importante transcrever, também, que o Código Civil de 2002, atualmente vigente, da mesma forma prevê, em seu artigo 927:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigo 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo"
Parágrafo Único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. (grifo nosso).
Em complemento, vem a calhar a reprodução, também, dos artigos 186 e 187 do Código Civil, a que o artigo 927 faz remissão:
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
De acordo com a doutrina de Nelson Nery Junior e de Rosa Maria de Andrade Nery, em se tratando de responsabilidade objetiva, o ato ilícito dá causa à reparação dos danos causados, independentemente da comprovação de dolo ou culpa do agente causador. Basta ao lesado, assim, fazer prova do ato violador de seu direito, do dano sofrido e do nexo de causalidade entre um e outro. Afirmam os conceituados doutrinadores:
"(...) O ato ilícito descrito no CC 187 enseja reparação dos danos que causou, pelo regime da responsabilidade objetiva, desnecessária a demonstração da conduta do agente (dolo ou culpa), de sorte que são requisitos necessários para que haja o dever de indenizar: a) o ato, b) o dano; c) o nexo de causalidade entre o ato e o dano" [19].
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery ensinam, também, ser a responsabilidade indenizatória objetiva, quando decorrer ela do risco da atividade desenvolvida pelo agente causador, conforme disposto no parágrafo único, do artigo 927, acima citado:
"A norma determina que seja objetiva a responsabilidade quando a atividade do causador do dano, por sua natureza, implicar risco para o direito de outrem. É a responsabilidade pelo risco da atividade" [20].
O ato ilícito imputado às empresas tabagistas, no presente texto, consiste em omitir informações relevantes acerca da nocividade do produto por elas exposto à venda, tal como a presença de nicotina e de outras milhares de substâncias tóxicas, omissão esta atrelada à publicidade que associava o consumo do cigarro ao sucesso, à beleza, à popularidade, à prática de esportes, etc.
Já o dano, no caso, consiste no abalo à saúde do fumante, e, por vezes, na sua morte, prematura, sofrida e tormentosa, em regra precedida de mais sofrimento e tormento, que recai tanto sobre o próprio fumante quanto sobre seus familiares, sendo por todos compartilhados.
E quanto ao nexo de causalidade, por fim, inegável e de clareza ímpar que o consumo do cigarro leva o fumante a apresentar sérios problemas de saúde, que o conduzem à morte ou, ao menos, encurtam seu caminho até ela. Diversas doenças estão diretamente relacionadas ao consumo do tabaco, tanto que assim atualmente consta advertência, na própria embalagem do produto.
Importante ressaltar, neste ponto, que ainda que não se considere seja produzida prova estanque de que as doenças que maltratam o viciado tenham sido causadas pelo uso de cigarros, indubitável que o vício dificulta ou mesmo impede sua recuperação, diminuindo sua expectativa, sua qualidade de vida e seu tempo de sobrevida, aumentando, pois o sofrimento do usuário do fumo e de toda a família.
Da mesma forma, vislumbra-se a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos fatos em discussão, eis que existe, no caso, uma relação continuada de consumo, de trato sucessivo, na medida em que o início do consumo do cigarro pelos usuários que ora padecem teve início há dezenas de anos, em regra, estendendo-se até a vigência da Lei 8.078/90.
Ademais, a norma que estabelece a proteção consumerista é considerada norma de ordem pública, de aplicação cogente, e, por essa razão atinge os fatos ainda não consolidados quando de sua entrada em vigência.
O Código de Defesa do Consumidor prevê, em seu artigo 12, a responsabilidade do fornecedor pela reparação de danos oriundos de defeito no produto, conforme disposto a seguir:
"Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos" (grifo nosso).
Cabe esclarecer que a legislação consumerista prevê não somente o defeito causado por fatos relacionados à produção e fabricação do produto, mas que leva em consideração, da mesma forma, o defeito decorrente da ausência de informações, ou, ainda, por não ser ela prestada na íntegra, de forma ostensiva e clara, ou quando faltam informações essenciais com relação ao produto comercializado. Segundo o teor do artigo 8º do CDC:
"Art. 8°. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito".
Da mesma forma, estabelecem os artigos 6° e 9°, do mesmo diploma, quanto ao dever de informar:
"Art. 6°. São direitos básicos do consumidor:
(...)
IIII- a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam;
(...)".
"Art. 9°. O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto".
Não nos resta dúvida, assim, acerca da responsabilidade civil das empresas tabagistas pelos danos causados aos consumidores do cigarro, notadamente àqueles que já se iniciaram no vício há muitos anos, haja vista a evidência do ilícito perpetrado por elas, quando preponderava a ausência de informações aos consumidores quanto aos efeitos nocivos do tabaco e dos riscos do produto, no caso, o cigarro. Ao contrário, a regra era a veiculação de publicidade de cigarros atrelando o seu uso a sucesso, saúde, popularidade, etc.
Não resta dúvida, de outro lado, quanto à presença do dano decorrente do uso do cigarro, que destroi a saúde do usuário, e da respectiva responsabilidade objetiva, prevista tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor.
Julgando caso bastante similar ao ora em discussão, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor e da teoria do risco, e declarou a responsabilidade objetiva de empresa tabagista quanto à obrigação de indenizar fumante que sofreu danos em razão do vício:
Apelação Com Revisão 994050111297 (3792614500)
Relator (a): Joaquim Garcia
Comarca: São Paulo
Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado
Data do julgamento: 08/10/2008
Data de registro: 05/11/2008
Ementa: Responsabilidade civil - Indenização por danos morais e materiais - Tabagismo - Amputação dos membros inferiores - Vítima acometida de tromboangeíte aguda obliterante - Nexo causal configurado - Incidência do Código de Defesa do Consumidor - Responsabilidade objetiva decorrente da teoria do risco assumida com a fabricação e comercialização do produto - Omissão dos resultados das pesquisas sobre o efeito viciante da nicotina - Dever de indenizar - Recurso improvido.
Outros tribunais têm decidido no mesmo sentindo. A título de exemplo citamos trecho de ementa de Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (o Acórdão conta com mais de 120 páginas, e apenas a ementa se estende por mais de cinco), que também decidiu pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e condenou empresa tabagista a indenizar familiares de fumante morto em razão de doenças advindas do uso do tabaco:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE DE FUMANTE QUE INICIOU O VÍCIO DO TABAGISMO ANTES DA VIGÊNCIA DO CDC. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FABRICANTE OU FORNECEDOR PELO FATO DO PRODUTO (ART. 6º, INCISO VI, 9º E ART. 12, DO CDC). DIREITO COMPARADO. PRESSUPOSTOS. DEFEITO DE PRODUTO INERENTEMENTE PERIGOSO EM RAZÃO DA VIOLAÇÃO DE UMA LEGÍTIMA EXPECTATIVA DE SEGURANÇA CAPAZ DE PROVOCAR DANOS Á SAÚDE DOS CONSUMIDORES. NEXO DE CAUSALIDADE SOB A PERPECTIVA MÉDICA E JURÍDICA. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ EM RAZÃO DA OMISSÃO EM ALERTAR AOS CONSUMIDORES DE CIGARROS SOBRE OS CONHECIDOS DANOS À SÁUDE PELO ATO DE FUMAR PRODUTO INERENTEMENTE PERIGOSO. CONTRIBUIÇÃO DA VÍTIMA (...) QUANTUM INDENIZATÓRIO. "DESPROVERAM O AGRAVO RETIDO E O RECURSO DE APELAÇÃO, E DE OFÍCIO, FIXARAM OS JUROS MORATÓRIOS LEGAIS A PARTIR DA SENTENÇA. UNÂNIME." (Apelação Cível Nº 70016845349, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 12/12/2007).
Ora, uma vez evidente e inafastável a omissão de informações essenciais e relevantes sobre o produto comercializado pelas empresas tabagistas, quanto à sua periculosidade intrínseca, como a presença da nicotina e seu poder viciante, logo surge o dever de indenizar os usuários de tabaco pelo ato ilícito cometido. O fato de as empresas tabagistas deixarem de advertir os consumidores de tais fatos é passível e suficiente para causar danos de toda ordem e de grande monta, devendo elas responderem por sua ocorrência.
Diga-se, por fim, que ainda que possa haver dúvida quanto ao diploma legal que venha a ser aplicado à espécie, a ilicitude dos atos das empresas tabagistas, que expuseram e expõem à venda produto viciante e altamente nocivo à saúde, omitindo tais informações dos consumidores, e, pior, convencendo-os do contrário, emerge da violação do princípio da boa-fé objetiva.
O princípio da boa-fé não foi instituído por código algum. Ao contrário, decorre ele da mais simples ideia de Direito e de Justiça.
O Direito Romano, berço mais distante do ordenamento jurídico nacional, já trazia entre seus postulados os princípios: Honeste vivere, sunum cuique tribuire, neminem caederae (viver honestamente, dar a cada um o que é seu, não prejudicar a ninguém). Tais postulados, ainda que não de maneira expressa, sempre foram e sempre serão a base fundamental do Direito.
Discorrendo acerca do princípio da boa-fé Miguel Reale escreve que:
"Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.
Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.
Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’" [21].
Independentemente, assim, do viés jurídico pelo qual seja analisada a situação de fato colocada, qual seja, de que as empresas tabagistas comercializam produto altamente nocivo à saúde, dotado de grande poder viciante, omitindo e falseando tais informações, a conclusão não pode ser outra que não a de que ditas empresas são civilmente responsáveis pelos danos causados a seus consumidores.
5. Conclusão
Inegável, conclui-se, que a atitude das empresas tabagistas de colocar à venda produto viciante altamente nocivo à saúde, escondendo, dissimulando e negando esta natureza, conduzindo seus consumidores ao vício, é ato ilícito.
Tal ato ilícito, conjugado com os danos sofridos pelos fumantes e seus familiares, que veem a saúde do viciado ser destruída pelo consumo de cigarros, faz nascer a obrigação de indenizar.
Ressalte-se aqui, uma vez mais, que ainda que não se comprove que as doenças que vitimam os fumantes têm como causa exclusiva o consumo de cigarros, inafastável é a circunstância de que este vício dificulta, ou mesmo impossibilita a recuperação, diminuindo a sobrevida do usuário do tabaco, bem como a qualidade desta sobrevida, causando já dano passível de indenização.
Notas
- http://www.idec.org.br/noticia.asp?id=7740, acesso em 18.08.2010
- Extraído do endereço eletrônico www.actbr.org.br/pdfs/capitulos-sentenca.pdf em 21 de julho de 2010
- A requerida é subsidiária da Britsh American Tobacco no Brasil.
- http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/742482-oms-denuncia-marketing-de-cigarros-direcionado-a-mulheres.shtml, acesso em 18.08.2010
- http://www.revistavigor.com.br/2008/08/24/marketing-do-tabaco-promove-o-fuma-entre-jovens/, acesso em 18.08.2010
- http://www.souzacruz.com.br/group/sites/SOU_7UVF24.nsf/vwPagesWebLive/DO7ZTRET?opendocument&SKN=1
- http://www.mundodomarketing.com.br/imprimiblognews.php?materia=4009, acesso em 18.08.2008
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/401/a-propaganda-do-cigarro, acesso em 18.08.2010
- Extraído do endereço eletrônico www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/atu1_02.htm, em 21 de julho de 2010
- http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/743030-fumo-e-responsavel-por-40-das-mortes-de-mulheres-com-menos-de-65-anos.shtml, acesso em 18.08.2010
- http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=21806, acesso em 18.08.2010.
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/396/droga-pesada, acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/399/fraude-corrupcao-e-mentiras, acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/6005/crime-e-castigo, acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/456/a-epidemia-do-fumo, acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/6126/os-criminosos-"light", acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/343/a-crise-de-abstinencia-de-nicotina, acesso em 18.08.2010
- http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/448/dpoc, acesso em 18.08.2010
- JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005, p. 535.
- JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005, p. 536.
- http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm, acesso em 19.08.2010