A atividade notarial e de registro, ainda que exercida em caráter privado, se constitui como serviço público, posto que delegada ao particular através de concurso público de provas e títulos (art. 236 da CF/1988).
Em verdade, os serviços notariais e de registro consubstanciam-se como espécie de intervenção do Estado nos negócios jurídicos celebrados no âmbito privado, revestindo-os do manto de estatalidade em função da importância que ostentam. Assim se pronunciou o Ministro Garcia Vieira, do Superior Tribunal de Justiça, em despacho proferido no Agravo de Instrumento 63.723 – MG (DJU de 5.4.1995, p. 8.498), cujo trecho transcreve-se:
As serventias notariais ou registrárias, previstas na Lei de Registros Públicos, são exercidas em caráter privado, porque recebem retribuição não oficial, mas sim oriunda de pagamento pelas partes interessadas. Mas isto não desnatura a natureza dos serviços, sabidamente públicos. Ditos serviços se inserem na administração pública de interesses privados, como ocorre com as escrituras públicas, o casamento, o protesto, o registro de imóveis, etc. Nestes atos há intervenção do Estado, porque sua importância ultrapassa os limites da esfera dos interesses individuais, atingindo seara na qual prepondera o interesse social da própia coletividade.
Pensar dessa forma faz com que seja dada oportunidade às instituições notariais e de registro para demonstrar o seu amplo papel social e a gama de atribuições que lhes são inerentes, uma vez que podem agir como verdadeiros órgãos de pacificação social, sempre que não haja conflito de interesses propriamente dito. Tal postura acarretará uma desoneração do já tão moroso e atribulado Judiciário Brasileiro, a quem cabe, atualmente, uma grande parcela desses afazeres de índole meramente administrativa (inseridos no âmbito da função jurisdicional voluntária, ou graciosa), e não jurisdicional propriamente dita.
A dicotomia existente na doutrina do direito processual civil com relação aos tipos de jurisdição - contenciosa e voluntária - é clássica e vem desde há muito tempo sendo estudada.
A jurisdição contenciosa é atividade inerente ao Poder Judiciário, com o Estado-juiz atuando substitutivamente às partes na solução dos conflitos, mediante o proferimento de sentença de mérito que aplique o direito ao caso concreto.
Já a jurisdição voluntária, não é, para grande parte da doutrina, considerada jurisdição na específica acepção do termo, correspondendo mais à uma administração pública de interesses privados, quando exercida no âmbito judicial. Consoante ensinamentos, [01] a jurisdição voluntária não é jurisdição e nem é voluntária. Explica-se: a uma, porque sua índole não é jurisdicional, a duas, porque, em muitos casos, a intervenção dos juízes é imposta pela lei, sob pena de sanções pecuniárias ou privação do fim esperado.
Desta forma, o que se pode concluir é que a denominada "jurisdição voluntária" deve ser entendida como exercício de função jurisdicional em um sentido mais amplo desse vocábulo. [02] Ora, a administração pública de interesses privados, nesse sentido, não é atribuição exclusiva de órgãos pertencentes ao Poder Judiciário. Assim, vê-se que os atos notariais e registrais constituem espécie desta categoria de atuação pública.
A atividade notarial e de registro caracteriza-se por sua natureza cautelar, ou seja, preventiva de litígios, situando-se na área de realização espontânea do Direito. Vários são os atos dessa natureza que são praticados nas serventias extrajudiciais. A esse propósito, alerta Moacyr Amaral Santos (2008, p. 78):
A fim de assegurar a ordem jurídica, intervém o Estado até mesmo na administração dos mais diversos interesses privados, pelos mais diferentes órgãos. Por outras palavras, considerando a significação que têm para o Estado determinadas categorias de interesses privados, a lei lhe confere o poder de intervir na sua administração, conquanto com isso venha a limitar a autonomia da vontade dos respectivos titulares. Essa intervenção, de natureza administrativa, faz o Estado e pelos mais diferentes órgãos, diversos dos órgãos jurisdicionais, em numerosas espécies de interesses. Assim, no que concerne às pessoas físicas, a lei tutela o fato do nascimento, ou do óbito, pelo termo respectivo em registro próprio; o reconhecimento de filho, ou no próprio termo de nascimento, ou por escritura pública, ou por testamento etc. No que concerne à formação das pessoas jurídicas, a tutela do Estado se faz pela exigência do registro do ato constitutivo, estatuto ou contrato no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, tratando-se de sociedade ou associações civil, ou arquivamento dos estatutos ou outro ato constitutivo na Junta Comercial, tratando-se de sociedade comercial; prescreve as cautelas para a formação das fundações e atribui ao Ministério Público a fiscalização dos seus atos. A propriedade é tutelada pela inscrição no Registro Imobiliário não só dos atos respeitantes à sua alienação, como das restrições que a onerem; numerosos atos jurídicos somente têm validade quando formados por escritura pública etc. Em todos esses exemplos, estamos a ver o Estado, por diferentes órgãos, que não só órgãos jurisdicionais, a administrar interesses privados, de certo modo, limitando, assim, a autonomia da vontade dos respectivos titulares. Nesses casos dá-se administração de interesses privados por órgãos públicos. (Grifou-se).
Outra acepção acerca da matéria ora enfocada é dada por Mírian Saccol Comassetto (2002, p.114-119) para quem o notário ou tabelião é um agente delegado, dotado de fé pública, responsável pela prática de atos que se filiam à administração pública de interesses privados, estando suas funções, portanto, intimamente ligadas com a designação de jurisdição voluntária. A atividade notarial é desenvolvida com vistas a prevenir litígios, buscando a realização do direito dos particulares de forma pacífica, ou seja, espontânea. A designação "administração pública de interesses privados", atividade exercida pelo Estado para com a sociedade, se configura como categoria genérica de tutela administrativa, onde pode-se encontrar a jurisdição voluntária e a atividade notarial como espécies desse gênero, sendo certo ressaltar que esta última sempre será realizada pela via extrajudicial. (grifo intencional).
Brandelli (2007, p. 159-161), assevera que deve haver a possibilidade de realização espontânea do direito subjetivo pela adesão dos indivíduos, de forma livre e voluntária, às normas de conduta ditadas pela atividade legiferante. Para fazer tal assertiva, parte da premissa de que o ordenamento jurídico é instrumento de pacificação e equilíbrio social, que torna viável a vida em sociedade, ressaltando, ainda, que o exercício de direito subjetivo mediante a imposição direta do ente estatal, por intermédio do juiz, se constitui como exceção. O normal é que os indivíduos componentes de uma sociedade organizada cumpram normalmente os preceitos normativos.
Prossegue, explanando que se a forma normal de realização do direito fosse por meio da via judicial, restaria inviável ou, no mínimo, caótica a vida no seio social. Caso o ordenamento jurídico fosse concebido como um direito universalmente desobedecido e, por via de consequência, universalmente aplicado pelos órgãos jurisdicionais, restaria, ele próprio, carente de sentido, uma vez que a aplicação judicial não é fundamento da validade jurídica, e sim sinal dela.
A norma jurídica, sendo uma previsão, pertence ao mundo ético e, portanto, é um dever-ser. Existe a opção de cumprí-la ou não. Partindo dessa "possibilidade", torna-se oportuno lembrar que o campo da licitude, o qual faz parte do Direito, é terreno para o qual não se cogita a coação. Cite-se, por exemplo, um exemplo corriqueiramente citado pelo Prof. Arnaldo Vasconcelos (1996): um passageiro pára um taxista e pede para ser levado a determinado lugar. Tão logo o serviço é prestado, o taxista recebe o preço da avença verbal, ou seja, a quantia correspondente ao valor da corrida. Houve nesse caso, inequivocamente, relação jurídica (contrato), portanto existiu o Direito (que também é fato).
O lugar da coação, no exemplo acima citado, seria observado somente caso um dos contratantes optasse para o campo da ilicitude (falta de pagamento por parte do passageiro, desvio injustificado de caminho para que o taxímetro registrasse valor mais alto, algum outro tipo qualquer de fraude, etc), podendo ensejar imputações de ordem civil e penal. Só então se forcejaria por cogitar que a coação pudesse – não necessariamente o fosse – em algum momento ser exercida pelo Estado. Logo, tendo a coação caráter aleatório e acidental, não pode constituir essência do Direito.
Nesse sentido, Arnaldo Vasconcelos (1996, p.75) cita Eugen Ehrlich, lembrando sua advertência no sentido de que:
[...] a função principal do Direito não consiste, absolutamente, em resolver conflitos, e sim em assegurar as condições de manutenção e de desenvolvimento pacífico da sociedade. Nem tampouco a sanção, condição exclusiva do exercício da coação, apresenta as virtudes que se chega a atribuir-lhe. Ela não é senão o ‘remédio heróico’ a que se refere Haesaert (1948, p. 98), apenas ministrado excepcionalmente, ‘quando o Direito se encontra doente, ou seja, no caso em que sua função normal, que consiste em realizar sua ordem característica, está perturbada’. (Aditou-se)
Na esteira do que foi propalado até o presente momento, afirma-se que no ordenamento jurídico brasileiro encontram-se vários exemplos de atos próprios de "administração pública de interesses privados", que, por não demandarem homologação judicial para a produção dos respectivos efeitos, demonstram nitidamente a importância da atuação de notários e registradores no exercício desse mister. Dentre eles pode-se citar, com base nos ensinamentos de Moacy Amaral Santos (2008, p. 80), a constituição de associações ou sociedades, que não reclamam a intervenção dos órgãos jurisdicionais, a emancipação, separação consensual, as partilhas amigáveis, etc.
A propósito desses atos, importante fazer alusão à Lei n° 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que, alterou dispositivos do Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa, desde que todas as partes envolvidas sejam capazes e não exista testamento. A lei em alusão foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da Resolução n° 35, de 24 de abril de 2007.
Pelo interesse que a matéria traz, merecem ser transcritos os dispositivos alterados no Código de Processo Civil Brasileiro pelo supramencionado diploma legal:
Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.
Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
Art. 983. O processo de inventário e partilha deve ser aberto dentro de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subseqüentes, podendo o juiz prorrogar tais prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
[...]
Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.§ 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
§ 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
§ 3o A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei.
Há ainda, em fase de tramitação, um Projeto de Lei, apresentado pela Secretaria de Reforma do Judiciário – SRJ, que pretende conferir nova redação ao artigo 1.526 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. A alteração proposta visa permitir que a habilitação para o casamento seja realizada pessoalmente perante o oficial de registro, após audiência do Ministério Público, sendo os autos submetidos ao Poder Judiciário somente em caso de impugnação do pedido ou da documentação pelo próprio oficial de registro, do Parquet ou de terceiros, buscando-se, assim, a desoneração da estrutura do Judiciário, permitindo que a realização do respectivo ato ocorra diretamente nos cartórios de registro civil, sem a necessidade de intervenção judicial.
Maria Berenice Dias (2008, p. 151) fala da desnecessidade de chancela judicial no caso de habilitação de casamento onde não haja qualquer empecilho formal para o ato. Segundo ela, a exigência mantida no Código Civil de 2002 mostra-se de todo descabida, sendo de ordem meramente burocrática, não se justificando em face das providências acautelatórias exercidas pela atividade fiscalizatória do Ministério Público e do oficial de registro civil. Ademais, aduz que a falta de clareza legal acerca da autoridade competente para a homologação da habilitação do casamento faz com que seja possível que as justiças estaduais, por meio de provimento administrativo, atribuam a função de homologação à autoridade que celebra o casamento, ou seja, ao juiz de paz, havendo necessidade de pronunciamento judicial somente nos casos de oposição de impedimentos ou impugnação.
Comentando sobre a separação e os divórcios efetuados pela via extrajudicial, a autora acima citada menciona que alguns doutrinadores sustentam a tese de que, mesmo tendo a Lei n° 11.441 mencionado que tais atos "poderão ser realizados por escritura pública", quando as partes cumprirem todos os requisitos legais para a formalização da separação ou do divórcio, o uso desse instrumento será obrigatório, não podendo haver recurso à via judicial. A alegação para tanto, consoante essa parte da doutrina, consiste no fato de inexistir interesse de agir, condição essencial da ação, que, não estando presente, gera a carência da demanda, com base no art. 267, VI, do Código de Processo Civil Brasileiro. (DIAS, 2008, p. 559).
Não se partilha deste entendimento, haja vista que a Constituição Federal dispõe em seu art. 5º, inc. XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito." Dessa forma, a categorização de atos notariais e registrais como atos de administração pública de interesses privados, não deverá excluir a opção da via judicial (jurisdição voluntária) para se obter o mesmo efeito.
A própria resolução n° 35, já citada, oriunda do Conselho Nacional de Justiça, ao disciplinar a aplicação da Lei n° 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro, prevê na redação de seu artigo 2º a faculdade que têm os interessados na opção pela via judicial ou extrajudicial, podendo ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de 30 dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial.
Afirma-se que é perceptível uma tendência em se criar mecanismos para desoprimir ao máximo o Judiciário, excessivamente sobrecarregado. A Lei 11.441/2007 é certamente uma destas medidas, mas outros dispositivos também visam minimizar a problemática da "superdemanda" que dificulta a fluência da prestação jurisdicional no país. Atendo-se à matéria objeto do presente trabalho, pode-se citar aqui, a Lei 10.931/2004, que trouxe em seu art. 213 o seguinte texto:
Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação:
II - a requerimento do interessado, no caso de inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA, bem assim pelos confrontantes.
Com a redação do artigo, denota-se um fator importantíssimo no que tange à contribuição para o desacúmulo de processos junto ao Judiciário: questões administrativas provenientes dos cartórios extrajudiciais passaram a não mais serem resolvidas por este Poder e sim pelo próprio ofício extrajudicial. Isso representou um avanço enorme para as pessoas que se deparavam com quaisquer dos problemas cadastrados no art. 213, posto que sempre tinham que ser submetidos ao Juízo, a fim de que o mesmo dissesse sobre a solução. Percebeu-se que esses assuntos levados à apreciação do Poder Judiciário poderiam ser fácil e rapidamente resolvidos pelo oficial registrador. Ao revés andava a lei, que determinava o trâmite judicial para tanto, fazendo com que problemas de menor complexidade se amontoassem a outros tantos processos nas varas designadas e ali permanecessem por meses, ou mesmo anos, até sua completa solução.
Tal situação feria de morte o princípio da celeridade processual, principalmente a administrativa, já que não deixava fluir o trâmite no cartório extrajudicial. Assim, com o advento da Lei 10.931/2004, este quadro melhorou significativamente e hoje, pelo menos no que tange aos assuntos elencados no art. 213, não há mais necessidade de intervenção judicial para a respectiva resolução. Deve-se lembrar, contudo, que ainda há assuntos emanados dos cartórios extrajudiciais que necessitam da intervenção do Poder Judiciário, tais quais cancelamento de matrícula, problemas de identificação de área, divergências entre matrículas ou transcrições, enfim, temas que geralmente são levados a juízo por meio de suscitação de dúvida para que o magistrado decida.
REFERÊNCIAS
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. São Paulo: Saraiva, 2007.
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil.2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.1.
COMASSETTO, Mírian Saccol. A função notarial como forma de prevenção de litígios. Porto Alegre: Norton, 2002.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: RT, 2008.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. I.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 7. ed. rev. e atual. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
Notas
- Dentre os quais podemos citar o pensamento de José Eduardo Carreira Alvin (2006, p. 55-66), Ovídio A. Baptista da Silva (2006, p. 29), dentre outros.
- Tal pensamento é compartilhado por Cassio Scarpinella Bueno (2008, p. 17).