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Aplicação de penas restritivas de direitos na Justiça Militar estadual

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7 Transação Penal

O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela inaplicabilidade dos benefícios da Lei n. 9.099/1995 aos militares, após a Lei n. 9.839/1999 ter nela inserido o art. 90-A para afirmar que suas disposições não se aplicam no âmbito da Justiça Militar (STF – HC 80.173). Os Tribunais de Justiça Militar dos Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul comungam do entendimento e também decidem pela inaplicabilidade da Lei n. 9.099 aos militares estaduais.

Realmente, a aplicação dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, previstos na Lei n. 9.099, aos processos relativos aos crimes militares encontra o obstáculo formal do art. 90-A da referida lei.

Apesar da formal restrição constante da lei, todos os juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira aplicam os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, entendendo que materialmente a restrição imposta pela Lei n. 9.839 somente se aplica no âmbito da Justiça Militar da União. O entendimento dos juízes mineiros, de maneira muito pertinente, ressalta a distinção existente entre o contexto de aplicação do Direito Militar para os militares da União e para os militares dos Estados.

A posição dos juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira revela coragem e independência, já que contrariou o entendimento dominante no Tribunal de Justiça Militar sobre o assunto e acabou por estabelecer situação de fato que amenizou os efeitos nocivos de uma legislação que inobserva a necessária harmonia do sistema normativo. Hoje, já se discute no Tribunal se é possível ao beneficiário se arrepender da manifestação que aceitou a transação penal (HC 1.555). E, nessa oportunidade, a Câmara Criminal firmou jurisprudência no sentido de que "a transação penal é instituto que tem lugar no devido processo legal consensual, instituído pela Lei n. 9.099/1995, possibilitando a aplicação de ‘pena restritiva de direitos ou multa’ que são previstas no Código Penal, por meio de decisão condenatória que transita em julgado formal e materialmente."

Tal postura dos magistrados mineiros se concilia perfeitamente com o Estado Constitucional de Direito. As decisões corajosamente proferidas pelos juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira a colocaram em posição de vanguarda no âmbito das Justiças Militares do país, na medida em que confere tratamento isonômico entre os militares estaduais e os demais servidores civis, em questões que não justificam qualquer distinção. O acerto da posição se evidencia nos casos em que um policial militar pratica crime militar impróprio, cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a dois anos, conjuntamente com um policial civil. Qual argumento racional poderia justificar que o policial civil fosse beneficiado com a transação penal e o policial militar não? Entendo que não existe tal argumento, devendo ambos os agentes públicos encarregados de prestar serviços inerentes à garantia do direito do cidadão à segurança pública receber igual tratamento repressivo.

No contexto em que se insere a atividade dos militares estaduais, não aplicar os institutos penais previstos na Lei n. 9.099 viola o princípio constitucional da isonomia. No aspecto específico da possibilidade da aplicação do instituto da transação penal (e também da suspensão condicional do processo), a condição de militar estadual não constitui elemento diferencial que justifique tratamento desigual em relação aos policiais civis.

A condição de militar e a violação aos deveres que são inerentes às suas funções já foram devidamente considerados pelo legislador para o estabelecimento da cominação da pena reservada ao crime militar. Se a pena cominada ao crime militar é compatível com a aplicação dos institutos da Lei n. 9.099, não se pode impedir a concessão do benefício pelo simples fato de se tratar de militar. A condição de militar impõe suportar alguns ônus que são inerentes às especificidades de suas funções, mas não reduzem os direitos fundamentais do cidadão que ostenta tal qualidade.


8 Substituição da pena privativa de liberdade

A Suprema Corte também já se manifestou no sentido de que a possibilidade de substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, instituída pela Lei n. 9.714/1998, não se aplica aos crimes militares (HC 86079 e RE 273.900-6). Este também é o entendimento do Superior Tribunal Militar (Ap. 2004.01.049688-2 SP). Na doutrina, Jorge Cesar de Assis (2004, p. 93) entende que a substituição somente é cabível na condenação de civis proferida pela Justiça Militar da União.

Com a devida vênia, entendo que a questão ainda não foi bem compreendida.

A jurisprudência do STM tem entendido que não é possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, pois a legislação penal militar não contempla tal instituto, em razão da especialidade e autonomia do Direito Penal Militar, bem como, pela incompatibilidade da substituição com as peculiaridades atinentes à vida militar e ao militar.

Igualmente pedindo vênia, entendo que a condição de militar e a violação aos deveres inerentes às suas funções, por si só, não constituem causa idônea para o tratamento diferenciado. Em especial, quando se tratar de substituição de pena imposta a militar estadual pela prática de crime em conjunto com policial civil, deve-se considerar a possibilidade concreta da substituição. Novamente, recorrendo à comparação, pergunto: qual argumento racional poderia justificar que o policial civil fosse beneficiado com substituição da pena privativa de liberdade e o policial militar não? Entendo que não existe tal argumento, devendo ambos os agentes públicos encarregados de prestar serviços inerentes à garantia do direito do cidadão à segurança pública receber igual tratamento repressivo.

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Mesmo em se tratando de casos submetidos a julgamento perante a Justiça Militar da União, penso que é possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. O permissivo legal para tanto (se fosse necessário um, diante da ordem constitucional) é o art. 12 do CP comum, que determina a aplicação das regras contidas em sua parte geral aos fatos incriminados por leis especiais, salvo disposição expressa em contrário. E não há na legislação penal militar nenhum dispositivo expresso vedando a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Cabe lembrar que a Justiça Militar vem incorporando em seus julgados muitos dos avanços produzidos no âmbito do Direito Penal comum. Um exemplo marcante disso é a aplicação das regras previstas na legislação comum para o crime continuado. Tratando-se de "continuidade delitiva, a jurisprudência do Superior Tribunal Militar é pacífica no sentido de se aplicar, subsidiariamente, ao art. 80 do CPM, a regra do art. 71, do CPB, por ser esta mais benéfica ao condenado." (Proc. n. 2002.01.049201-1 PE). Ora, se o crime militar continuado pode ser tratado como dispõe o CP comum, não vejo impedimento para a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, nos casos previstos em lei.

Na jurisprudência mineira já se verifica a primeira decisão reconhecendo a possibilidade jurídica da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos e multa. A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, no julgamento da Apelação n° 2.512, por maioria de votos, deu provimento ao recurso da defesa apenas para determinar a referida substituição.

A substituição da pena privativa de liberdade por penas restritiva de direitos ou multa, entretanto, não pode ser entendida como direito subjetivo de todo e qualquer condenado. Mas, sim, medida que se mostra adequada conforme as peculiaridades do caso concreto. O juiz do caso concreto, dependendo de suas peculiaridades, saberá se a substituição é medida necessária e suficiente para os fins de reprovar e prevenir o crime.


9. Maior rigor da Justiças Militares

Os operadores da Justiça Militar, com freqüência, ressaltam que os julgamento desta Justiça especializada são proferidos com maior do que os julgamentos proferidos na Justiça comum e tal fato poderia constituir obstáculo à aplicação das penas restritivas de direitos e da multa.

A afirmativa de maior rigor se insere em um contexto de justificação da necessidade da existência da Justiça Militar, que se tornou a última classista no país, e procura fundamentar-se na preservação dos princípios da hierarquia e disciplina. Muitas foram as iniciativas no parlamento que tentaram extinguir a Justiça Militar, em especial a estadual, e o alegado rigor pretende ressaltar a utilidade de um julgamento proferido por militares.

O equívoco da colocação é evidente.

Como já foi observado, o comando normativo do art. 142 da Constituição da República, que estabelece a hierarquia e disciplina como pilares organizacionais das instituições militares, se dirige ao Poder Executivo e não ao Poder Judiciário. Os órgãos do Poder Judiciário não são organizados com base na hierarquia e disciplina, sendo certo que não há qualquer relação hierárquica entre o juiz militar e o réu, também militar.

Por outro lado, uma estrutura do Poder Judiciário que atue de forma parcial, predisposta a impor maiores rigores aos seus jurisdicionados, não merece ser chamada de Justiça. A Justiça não é concebida para ser mais ou menos rigorosa, mas para ser justa e imparcial. Sustentar que a Justiça Militar é mais rigorosa do que a comum indica o desacerto de suas concepções e, ao contrário do que se espera, ressalta a necessidade de sua extinção. A Justiça Militar, federal ou estadual, se insere na estrutura do Poder Judiciário e, como tal, deve se conciliar com a opção política fundamental acolhida na Constituição da República. Desta forma, não se pode admitir que a Justiça Militar seja refratária aos postulados de política criminal adotados pelo Brasil para qualificar a sua intervenção punitiva.


10. Conclusão

De todo o exposto, pode-se chegar à conclusão de que é juridicamente possível a aplicação de penas restritivas de direitos e multa na Justiça Militar estadual e que, atendidos os requisitos legais, há direito público subjetivo de que a pena privativa de liberdade seja substituída por penas menos gravosas. A aplicação de penas restritivas de direitos e de multa na Justiça Militar estadual materializa intervenção qualificada do poder punitivo estatal que se concilia com as premissas do Estado Democrático e Constitucional de Direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2005.

ASSIS, Jorge Cesar de. Direito militar: aspectos penais, processuais penais e administrativos. Curitiba: Juruá, 2004.

GOMES, Luiz Flávio; VIGO, Rodolfo, Luis. Do estado de direito constitucional e transnacional: riscos e precauções. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

PACHECO, Denilson Feitosa. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2008.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990.

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Sobre o autor
Fernando Antonio Nogueira Galvão da Rocha

juiz civil do Tribunal de Justiça Militar, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Fernando Antonio Nogueira Galvão. Aplicação de penas restritivas de direitos na Justiça Militar estadual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2714, 6 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17939. Acesso em: 16 abr. 2024.

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