Sumário: Introdução; 1. Um breve panorama sobre a evolução do divórcio no Brasil. 2. As três correntes doutrinárias sobre o tema na atualidade. 2.1 O divórcio direto ainda não existe no ordenamento brasileiro? 2.2. A separação ainda permanece presente no nosso ordenamento jurídico? 2.3. A separação judicial deixou de existir? Considerações Finais; Referências.
Introdução
A denominada PEC do divórcio terminou por ser aprovada (EC 66) e trouxe consigo radicais e necessárias mudanças na forma de dissolução do vínculo matrimonial. A modificação mais patente se deu no sentido de consagração de princípio da autonomia da vontade aplicado às relações conjugais e na abolição da culpa.
Explique-se. A necessidade obrigatória de prévia separação judicial revelava-se patentemente atentadora à autonomia da vontade dos indivíduos envolvidos naquela relação. O instituto da separação judicial se mostrava algo no mínimo, imprestável e sem razão de ser na atualidade. A manutenção de um vínculo apenas na esfera jurídica, quando no patamar afetivo e factual deixou de existir, é efeito de uma legislação ultrapassada, com fundamento em uma "sacralização" do liame matrimonial que não mais existe – ou não deveria existir – na sociedade hodierna. [01]
Seja vislumbrando o casamento pela corrente contratualista, seja vendo-o como uma instituição, tem-se como certo que o vínculo se origina pela vontade das partes; portanto, nada mais arrazoado que seja dissolvido pelo mesmo elemento volitivo. Ninguém melhor do que os envolvidos para saber como e quando desconstituir a sua união. Descabe ao legislador e ao Estado impor óbices para que o término da sociedade conjugal seja levado a efeito. [02]
Não se pretende, no presente estudo, seguir de modo exaustivo a evolução da divórcio no Brasil. A ideia é apresentar um pano de fundo, necessário ao bom entendimento do panorama jurídico nesta seara no momento atual, pois, sem uma perspectiva evolutiva, ainda que genericamente delineada, jamais qualquer instituto – jurídico ou não – atingirá uma percepção minimamente correta.
Tampouco se busca esgotar a matéria – tarefa quase impossível, em um momento de transição e verdadeiro "caos" teórico –, mas tecer algumas breves considerações sobre o tema e externar a nossa opinião atual.
1.Um breve panorama sobre a evolução do divórcio no Brasil
No texto original do art. 315 do Código Civil de 1916 apenas constavam três formas de término da sociedade conjugal: morte de um dos cônjuges; nulidade ou anulação do matrimônio; ou pelo desquite, judicial ou amigável. Fazendo uma exegese do referido dispositivo no texto original da Lei 3.071/16 é de se entender que o casamento era indissolúvel, já que os desquitados não estavam liberados da relação jurídica criada pelo casamento, ou seja, não podiam casar-se novamente.
Inspirado na doutrina católica e enraizado em ideias patrimonializantes das relações pessoais, o Direito das Famílias de tal época não permitia a dissolução do casamento em vida. Era a materialização do axioma de que "o que Deus uniu o homem não separa" [03].
Porém, o fato de o casamento ser indissolúvel não impedia os indivíduos de se desligarem da relação matrimonial e refazerem suas vidas afetivas com o vínculo denominado de concubinato, aplicável à época a todas as relações extramatrimoniais. A autonomia da vontade das pessoas, não obstante não existisse no plano legislativo, se fazia presente no plano factual. Entretanto, tais liames afetivos restavam quase por completo desprotegidos no âmbito jurídico, sendo tratados – quando muito – como meras sociedades de fato.
Não demorou para que a sociedade começasse a pressionar no intuito de que fosse editada no Brasil uma lei que permitisse o divórcio. A implementação do instituto no Brasil defrontou um processo moroso de críticas, debates e movimentos organizados, liderados maioritariamente por componentes e intelectuais da Igreja. Imagine-se que foram quase 3 décadas para que o divórcio fosse aprovado!
Como assevera Lourival Serejo, "previa-se, então, o caos da família brasileira, a disseminação da falta de respeito entre os casais e a proliferação de casamentos fáceis que já nasceriam com o estigma da separação, pois lhes faltaria o vínculo da indissolubilidade". Complementa ainda o jurista que, "depois de muito tempo de vigência, entretanto, o uso do divórcio não importou em descontrole nem anarquia". [04]
Assim, em 1977, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 9, de 28 de Junho de 1977, que outorgou nova redação ao § 1º do art. 175 [05] da CF de 1967, que passou a dispor que "o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos". Os casamentos anteriores à EC n. 9 estavam submetidos a um prazo de separação de cinco anos, para poderem buscar o divórcio. Assim, em tal época, foi criado o sistema binário de terminação do matrimônio, regulamentado na legislação infraconstitucional pela Lei n. 6.515/77 – Lei do Divórcio, que revogou os arts. 315 a 324 do CC 1916. O denominado desquite foi substituído pelo instituto da separação judicial ou de direito.
Mas a busca por essa extinção ainda era muito espinhosa. Com o advento da Constituição Federal de 1988 houve um grande avanço, nesta seara, com a diminuição do lapso temporal para o divórcio por conversão, precedido de uma separação de direito, cujo prazo foi diminuído para um ano e a criação de um novo meio de dissolução do casamento, o divórcio direto, cujo prazo era de dois anos de separação de fato, sem a necessidade de prévia separação judicial.
Espelhando-se na norma constitucional, a Lei n. 7.841/89 extinguiu o limite de concessão de divórcio, instituído pelo art. 38 [06] da Lei n. 6.515/77, pondo fim à curiosa situação onde os indivíduos só poderiam divorciar-se uma única vez. Como afirmam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, tal limite ocasionava uma estranha situação: "se uma pessoa divorciada viesse a convolar núpcias com uma pessoa ainda solteira, não seria possível a dissolução deste casamento, violando frontalmente a liberdade daquele que nunca havia se divorciado antes". [07]
O Código Civil de 2002 trouxe basicamente o que a Lei do Divórcio [08], já trazia: a morte, a anulação ou nulidade do casamento, a separação judicial e o divórcio eram as quatro formas terminativas do casamento. Apenas duas delas eram dissolutivas: a morte e o divórcio. Ou seja, apenas a morte e o divórcio colocavam fim à sociedade e ao vínculo conjugal, trazendo consigo a possibilidade de as partes convolarem novas núpcias. Finalmente, em 2007, a Lei n. 11.441/07 passou a possibilitar, através de escritura pública, a separação e o divórcio extrajudiciais.
Antes de se tentar chegar à resposta da questão crucial deste escrito (o que realmente fez a EC 66 no sistema jurídico brasileiro?), uma questão secundária também merece uma pitada de atenção: de que realmente servia – ou serve, para aqueles que acreditam que ele ainda existe – o sistema binário de dissolução da sociedade conjugal? [09]
Sobre a injustificabilidade desse sistema dual – que alguns ainda alegam existir –, asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que "não há justificação lógica em terminar e não dissolver um casamento. Escapa à razoabilidade e viola a própria operabilidade do sistema jurídico". [10]
A "cláusula de arrependimento" existente no art. 1.577 do CC brasileiro poderia ser considerada como dispositivo "morto", de difícil utilização, posto que, via de regra, ao se chegar ao ponto de uma separação judicial, tal decisão foi amadurecida, além de desejada. Uma reconciliação, como demonstram diversas pesquisas, ocorriam em casos excepcionais e, para além disso, se assim o desejarem, os divorciados podiam e continuam podendo casar-se novamente com os ex- cônjuges. Assim, é mister reafirmar o entendimento, perfilhado por Maria Berenice Dias [11] de que, esse suposto benefício da separação é "deveras insignificante". Como a autora afirma, "mais prático e barato – além de mais romântico – é celebrar novo casamento, que até gratuito é".
2.As três correntes doutrinárias sobre o tema na atualidade
Para uma boa parcela de operadores do direito brasileiro o divórcio direto já é uma realidade, um fato indubitável, e a separação judicial instituto que pertence ao nosso museu jurídico. Entretanto na opinião de alguns juristas, a modificação feita no § 6º do art. 226 da Constituição Federal não parece ser suficiente para que se entenda por extinto o instituto da separação judicial no ordenamento jurídico brasileiro ou ainda, que se entenda pela existência do divórcio direto, sem necessidade de prévia separação judicial ou decurso de qualquer lapso temporal. São tais posicionamentos guarnecidos de razão? Analisemos cada corrente.
2.1. O divórcio direto ainda não existe no ordenamento brasileiro?
Há quem entenda que a modificação ocorrida no § 6º do art. 226 da Lei Maior brasileira não afigura-se suficiente para que o divórcio direto, sem necessidade de prévia separação judicial ou qualquer decurso de tempo, esteja instituído em nosso território. E mais: chega-se a classificar tal dispositivo como "lei travestida de Constituição". [12]
Entende Luiz Felipe Brasil Santos, Desembargador do TJRS, que a supressão da referência constitucional aos requisitos para conseguimento do divórcio – lapso temporal ou prévia separação judicial – não denota que aqueles pressupostos tenham sido extirpados automaticamente, mas tão somente que, deixando de existir na Carta Magna, e permanecendo unicamente na legislação ordinária – CC, como subsistiram por 40 anos, entre 1937 e 1977. Entende, portanto, que tão-somente passou a existir uma abertura para que esta seja alterada. [13] Ou seja, na ideia do nobre jurista, enquanto não for feita uma modificação ou supressão em relação à separação judicial e aos pressupostos de obtenção de divórcio na lei civil, a EC 66 não surtirá efeito algum, não passará de letra morta. O doutrinador baseia a sua fundamentação na seguinte ideia:
Nossa primeira Constituição a dispor acerca dessa matéria foi a de 1934, que, no art. 144, erigiu a princípio constitucional a indissolubilidade do vínculo matrimonial, como estratégia para dificultar a introdução do divórcio em nosso país, acrescentando, no parágrafo único, que "A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento(...)".
A Constituição de 1937, porém, em seu art. 124, embora tenha mantido o princípio da indissolubilidade, calou acerca do desquite, que, no entanto, permanecia previsto no Código Civil. O mesmo ocorreu com a Carta de 1946, com a Carta outorgada de 1967 (art. 167) e com a Emenda Constitucional 01/69: preservação do princípio da indissolubilidade do vínculo e silêncio completo acerca do desquite, que, como notório, sobrevivia soberanamente apenas na legislação ordinária (Código Civil de 1916).
Ao que se saiba, na época, ninguém sustentou a tese de que, pela circunstância de que a Constituição deixara de contemplar o desquite dentre seus dispositivos, esse instituto fora abolido. E isso pela singela razão de que o desquite continuava previsto no Código Civil. E isso bastava! [14]
Tal juízo não parece ser o mais adequado para o caso em tela. Data venia, parece-nos haver uma inversão da hierarquia dos atos normativos, um erro metodológico, através de uma tentativa de se traçar uma concepção constitucional com fundamento na lei ordinária, no Código Civil. [15] O revés deve ocorrer. Como assevera a jurista portuguesa Isabel Moreira, "a Lei fundamental deve ser lida sem o óculo do direito ordinário vigente", e o que interessa é determinar o que, à data, independentemente do que prescreva o direito ordinário, a Constituição impõe, e daí retirar as devidas consequências. [16]
Os argumentos de que a separação judicial subsiste no ordenamento jurídico brasileiro são justificáveis, até aceitáveis, apesar de não comporem o nosso ponto de vista, como ver-se-á mais adiante. Todavia, afirmar-se que o divórcio direto só existirá no ordenamento brasileiro se a legislação ordinária for modificada e expressamente o determinar, parece-nos um entendimento completamente desarrazoado. A Constituição já afirmou que o divórcio direto é possível, eliminando do seu texto a separação judicial e a necessidade de qualquer transcurso de tempo. Como afirma o douto jurista português J.J. Canotilho, a Constituição "é uma lei hierarquicamente superior – a lei fundamental, a lei básica – que se encontra no vértice da ordem jurídica, à qual todas as leis têm de submeter-se". [17]
Como bem afirma Paulo Lôbo,
No direito brasileiro, há grande consenso doutrinário e jurisprudencial acerca da força normativa própria da Constituição. Sejam as normas constitucionais regras ou princípios não dependem de normas infraconstitucionais para estas prescreverem o que aquelas já prescreveram. O § 6º do art. 226 da Constituição qualifica-se como norma-regra, pois seu suporte fático é precisamente determinado: o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, sem qualquer requisito prévio, por exclusivo ato de vontade dos cônjuges. [18]
Portanto, é de se concluir que o divórcio direto já possui plena e justa aplicação no Brasil. A questão que resiste é: a separação judicial subsiste no ordenamento brasileiro?
2.2. A separação ainda permanece presente no nosso ordenamento jurídico?
É fato notório que a chegada da EC 66 ao texto constitucional ocasionou uma verdadeira celeuma entre os juristas brasileiros. Como já refeirdo, três correntes bastante definidas emergiram, e esta segunda corrente – não obstante não nos filiarmos à mesma – merece toda atenção aos seus argumentos.
O bloco de juristas que se filia à essa ideia, entende que a separação continua presente no ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos como procedimento opcional ou facultativo. [19] Alguns entendem que o verbete "pode" presente na dicção constitucional é fator suficiente para a sobrevivência do instituto da separação no ordenamento jurídico brasileiro. Outros [20], com argumentos mais substanciais, afirmam que, o texto constitucional pretérito apenas dizia respeito ao requisito da prévia separação e não ao instituto em si. Assim, entende-se que foi abolido não o instituto da separação de direito, mas tão-somente a exigêndia de 2 anos de separação de fato ou 1 ano de separação de direito para a obtenção do divórcio.
Alguns filiados a essa corrente prevêem uma inafastável insegurança jurídica, enquanto a legislação ordinária não for adequada ao texto constitucional atual. Como afirma Mário Luiz Delgado
a uniformização do entendimento pelo Supremo Tribunal Federal [21] ou pelo Superior Tribunal de Justiça demandará ainda longos anos e enquanto a legislação ordinária supostamente incompatível com a Constituição não vier a ser revogada expressamente, muitos casos serão decididos ora de um jeito, ora de outro. [22]
Complementa o jurista, citando Zeno Veloso que, além do mais
a decisão no sentido da revogação só terá efeito entre as partes, não estando afastado o risco de os juízes e tribunais terem opiniões divergentes, decidindo de uma forma e de outra, gerando confusão, estabelecendo contrastes, criando in intranqüilidade e trazendo insegurança para um tema que é da maior gravidade. [23]
Em resumo, os filiados a essa corrente entendem que a separação subsiste no sistema legal pelas razões supra aduzidas. E fazendo uma interpretação dos argumentos utilizados, os adeptos entendem que a mesma deve continuar a existir por três motivos: por uma questão de de possibilidade de opção das partes (se querem pôr fim ao vínculo matrimonial ou apenas à sociedade conjugal) – o que se traduziria no livre exercício da autonomia privada das partes; [24] pela possibilidade de reconciliação e, por fim, pela questão da perquirição da culpa. [25]
Questiona-se: tais motivos são razoáveis e coerentes para se defender a manutenção da separação judicial no ordenamento jurídico brasileiro? Não nos parece.
2.3.A separação judicial deixou de existir?
Promover e prolongar a manutenção de um vínculo que, muitas vezes não passam dos "restos" do que foi um dia uma relação, atenta frontalmente o princípio da dignidade humana daqueles indivíduos, além de mitigar fortemente o princípio da liberdade, desdobrado na liberdade de desconstituir essa ligação na forma como lhes for mais conveniente. E é para isso que o instituto da separação judicial servia. [26] Para procrastinar algo que é iminente: o desenlace e para fomentar a infelicidade desses indivíduos.
Além do mais, deve-se atentar para a vontade do legislador. É certo, como bem afirma Paulo Lôbo que a o direito se afirma com a mens legis mas, a mens legislatoris não pode ser desprestigiada. A doutrina especializada confere-lhe importante função, até mesmo como vetor da própria mens legis. [27] Assim, seguindo o juízo fomentado pelo jurista alagoano, é de se afirmar que indispensável trazer à baila o cerne da justificativa que alicerçou a ação do legislador constituinte, contida na PEC:
Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta. Impõe-se a unificação no divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis.
Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam revelados e trazidos ao espaço público dos tribunais, com todo o caudal de constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação.
Podemos afirmar, portanto, que o verbete "pode" contido na redação constitucional levasse a uma errônea ideia de manutenção da separação no ordenamento jurídico, tal argumento poderia ser rebatido com a seguinte ideia, com fundamento na justificativa que fundamentou a resolução do legislador: um desajuste entre a letra da norma e o "espírito" da mesma, ou seja, entre a vontade expressa e a vontade presumida do legislador, no sentido de que a formulação da norma em questão não abarca o caso da maneira que o legislador intentava disciplinar.
Poderíamos – se enxergássemos uma má redação do artigo – que levasse a uma interpretação errônea, de que a separação subiste no sistema jurídico brasileiro, ainda alegar que estaríamos diante de uma "norma deficiente", pois não atingiu o objetivo almejado, [28] que deve ser integrada ao espírito do sistema, mesmo indo de encontro àquilo que dimanaria de uma interpretação puramente literal. E qual o espírito desse sistema? O objetivo deste dispositivo? A expurgação da separação do ordenamento jurídico brasileiro.
Indo um pouco mais além: de acordo com a exegese que se pode fazer da nova redação que terá o art. 226 da Constituição brasileira e dos dispositivos conexos na legislação ordinária, se pode dizer que, abolida estará a discussão da culpa em sede de divórcio. Todavia, partilhando-se da ideia de Fernando José Simão, é de ser dizer que não se deve ter
a impressão de que a culpa desapareceu do sistema, ou que simplesmente se fará de conta (no melhor estilo dos contos de fada) que o cônjuge não praticou atos desonrosos contra o outro, que não quebrou com seus deveres de mútua assistência e fidelidade. A culpa será debatida no locus adequado em que surtirá efeitos: a ação autônoma de alimentos ou eventual ação de indenização promovida pelo cônjuge que sofreu danos morais ou estéticos. [29]
Como bem afirma Waldyr Grisard Filho – não obstante o autor se filie à corrente que entende subsistir o instituto da separação judicial no Brasil – o "divórcio express" elimina "obstáculos, impedimentos, prazos e atividades burocráticas (audiências, interrogatórios, pareceres, perícias, testemunhas, sentenças e recursos)", ou seja, expurga tudo o que invade a privacidade do par, que deve se subjugar tão-somente à sua vontade, como valor garantido pelo sistema jurídico, apartando uma excessiva intervenção estatal na vida privada dos indivíduos. [30]
Antes mesmo do surgimento da EC 66, a culpa já vinha perdendo espaço dentro do direito brasileiro. Como bem demonstra Paulo Lôbo: a guarda da prole não podia mais ser negada ao cônjuge culpado pela separação, pois se trata de decisão vetorizada pelo melhor interesse das crianças e/ou adolescentes envolvidos; a partilha dos bens não está condicionada à culpa de qualquer dos consortes; os alimentos devidos aos filhos não são determinados em razão da culpa de seus progenitores e até mesmo o cônjuge culpado possui direito a alimentos "indispensáveis à subsistência"; a dissolução da união estável não está condicionada à culpa dos companheiros. [31]
A perquirição da culpa traduz-se em uma imiscuição exacerbada na intimidade, na vida privada e familiar dos indivíduos. Nada mais acertado que tal ingerência só ocorra se assim uma das partes o desejar, em processo autônomo de alimentos ou em uma possível ação de reparação civil. Mais uma vez, se faz presente a promoção da autonomia da vontade, cabendo às partes e não ao legislador determinar a necessidade ou não da investigação da culpa nas suas relações pessoais.
Também afastada está toda e qualquer necessidade de lapso temporal para a obtenção do divórcio. Casaram-se ontem e desejam divorciar-se hoje? Assim o será.
Quanto às pessoas que estão separadas judicialmente, entendemos que o estado civil será mantido até que um ou ambos do par iniciem uma ação de divórcio direto, para adquirirem o status de divorciados. Relativamente às ações em andamento, entendemos que as partes deverão ser intimadas para se manifestar se querem converter a ação de separação em ação de divórcio. Caso queiram, o pleito prossegue como divórcio. Em caso contrário, há extinção do processo, por impossibilidade jurídica do pedido.