V – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E PREVIDENCIÁRIA
Não existirá liberdade a partir do momento em que textos legais permitam ao homem deixar de ser pessoa e passar a ser considerado um objeto. Este é o fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana que está consagrado no art. 1º, inciso III da CF/1988 e tem como marco histórico a obra "Dos Delitos e das Penas", de Beccaria. Em 1988, a CF erigiu o princípio a valor fundamental.
Luiz Regis Prado [12] doutrina que o princípio da dignidade da pessoa humana se irradia por todo ordenamento jurídico, servindo como alicerce para todos os demais princípios penais fundamentais. A afronta ao princípio da legalidade também se considera uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
As condutas tipificadas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990, em nenhum momento comportam a reprimenda instituída nas respectivas sanções, seja pela reclusão ou detenção. É fato que o emaranhado de milhões de dispositivos tributários pode causar dúvidas a respeito de qual tributo ser pago ou de qual alíquota aplicar, ou então qual a grandeza a ser utilizada como base de cálculo. E há que se mencionar o grande e elevado número de obrigações tributárias acessórias, crescente a cada dia, e com elevada carga de dúvidas ainda persistente perante a sociedade. Vários são os motivos pelos quais as obrigações tributárias não são honradas. E nem sempre há dolo por parte do inadimplente. O bem juridicamente tutelado nos crimes ora mencionados é a arrecadação tributária [13].
A tutela penal proveniente do descumprimento das obrigações tributárias está em conflito direto com o art. 1º, inciso III da CF/1988. O objetivo dos tipos penais tributários é, indubitavelmente, a coerção para que a obrigação financeira seja cumprida. Tanto é verdade que o adimplemento de tais obrigações acarreta a extinção da punibilidade, independente da fase processual em que se encontrar a lide penal. Esta é a disposição firmada pelo art. 9º da Lei nº 10.684/2003, também reproduzida no art. 68 da Lei nº 11.941/2009.
Modernamente o Direito Penal Econômico tende a voltar aos períodos nefastos da história, eis que penas desproporcionais são aplicadas a infratores que não cometem qualquer conduta que possa acarretar malefícios à sociedade. O objetivo que Beccaria atingiu com suas célebres lições foi de permitir que houvesse uma proporcionalidade entre a reprimenda aplicada e a conduta cometida pelo infrator. Durante o transcorrer dos séculos, o Direito Penal foi utilizado como método de tortura e de graves horrores, sendo que o delinquente era tratado de modo desumano e sem qualquer direito que lhe assegurasse uma reprimenda adequada.
Os crimes tipificados nos arts. 1º e 2º têm por meta tutelar a arrecadação tributária. As condutas legalmente previstas são entendidas como o "Direito Penal do Terror", sendo certo que Beccaria sentir-se-ia desmotivado por ver sua obra cair em total ruína frente aos avanços (ou retrocessos) com a instituição do Direito Penal Econômico. No caso dos crimes contra a ordem tributária, o agente encontra a absolvição com o pagamento do tributo (mais acréscimos). Em algumas situações, o cumprimento das obrigações tributárias é o único meio de que se vale o sujeito passivo da obrigação tributária para que não ocorra aplicação de reprimenda penal.
É preciso expurgar do ordenamento jurídico textos de lei que se utilizam do Direito Penal para obter finalidade inadequada. No caso ora estudado, a sanção penal é utilizada com o intuito de compelir o sujeito passivo tributário ao pagamento do tributo. O pagamento é praticamente uma "tábua de salvação" para todos: o acusado se livra de uma reprimenda porque se considera extinta a punibilidade; o Poder Executivo aufere a renda proveniente do tributo inadimplido, mais juros de mora, atualização monetária e, por evidente, as multas (moratória, de ofício e, em alguns casos, isolada); ao Poder Judiciário há extinção de mais uma ação.
Essa prática seria perfeitamente aceitável se as obrigações tributárias sempre estivessem acometidas de legalidade e/ou constitucionalidade. O problema ocorre quando o tributo não é devido e o administrado se encontra numa situação de muito constrangimento: ou paga, ou discute a validade do tributo e tem que produzir defesa para não ser reprimido pelo Direito Penal.
A fim de aclarar a problemática, é possível citar o art. 116, parágrafo único do CTN, que outorga poderes ao fiscal de tributos para desconstituir determinadas situações praticadas pelos contribuintes e declará-las ilícitos tributários. É o que comumente ocorre com alguns planejamentos tributários que não são acolhidos pelas fiscalizações. Imediatamente após a lavratura do auto de infração ou notificação fiscal, há encaminhamento para o Ministério Público da representação fiscal para fins penais.
Situações como as que se arrolam são frequentes. A defesa do autuado/notificado pode ser realizada administrativamente, razão pela qual entendeu o STF que em determinados crimes (materiais) somente após o lançamento definitivo é que se poderá iniciar os procedimentos penais. Mas nem sempre a defesa é útil, pois nem sempre consegue demonstrar que o tributo não é devido ou a obrigação acessória não está legitimamente constituída. Um dos entraves graves que caracterizam a esfera de julgamento administrativo tributária é a impossibilidade de se afastar a aplicação de dispositivo legal sob o argumento de inconstitucionalidade ou ilegalidade. Portanto, se a única defesa do administrador for alegar a flagrante inconstitucionalidade, então a esfera administrativa não poderá comportar tal julgamento. A discussão judicial será iniciada, mas com o prejuízo de ver iniciada a ação penal, pois o tributo não foi recolhido. É um tributo inconstitucional, mas para que não haja ação penal, então o administrado deve recolher a exação.
Fato relevante que pode ser citado é a publicação da Portaria MPS/MF nº 333/2010. A Portaria foi publicada em 30.06.2010, tendo por objeto a ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária de vários segurados com data retroativa para 01.01.2010. A medida é flagrantemente inconstitucional, pois fere o princípio da anterioridade. Tal situação, contudo, não poderá ser discutida na esfera administrativa. O problema de se discutir a questão perante o Poder Judiciário é que o lançamento definitivo do tributo já permite o início da ação penal. Por essa razão, administrado que não efetuar o recolhimento retroativo da contribuição previdenciária estará cometendo crime de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP), sendo certo que o seu pagamento encerra a discussão tributária e penal. A medida, de tão inconstitucional, foi revogada pelo próprio Poder Executivo.
Como se pode perceber, nos crimes contra a ordem tributária e previdenciária, o administrado deixa de ser considerado um ser humano e passa a ser um mero objeto, um mero "pagador" que não pode e nem deve questionar a ordem estatal, sob pena de sofrer uma sanção penal.
VI – CONCLUSÃO
Em virtude dos fundamentos apresentados, os crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP estão em desacordo com a CF/1988, especialmente porque afrontam diretamente o art. 1º, inciso III (princípio da dignidade da pessoa humana).
O objetivo dos dispositivos penais citados é tutelar a arrecadação tributária, através da coerção imposta ao cumprimento das obrigações tributárias. A sanção penal é totalmente descabida porque o descumprimento das obrigações tributárias acarreta sanções de graves proporções na esfera tributária, tais como multas elevadas e restrição de diversos direitos, tais como a impossibilidade de alteração de endereço, vedação no encerramento de suas atividades, impossibilidade de redução do capital social, dentre outras penalidades. Essas medidas correspondem a reprimendas aplicáveis para que as regras de natureza eminentemente tributária possam ser cumpridas espontaneamente. Portanto, a legislação tributária possui mecanismos sancionatórios eficientes para que as regras sejam cumpridas e, não o sendo, punidas com gravidade (sanções pecuniárias).
Além da punição, a legislação tributária é estruturada de modo a permitir que os danos sejam reparados através da incidência de juros de mora e atualização monetária, tal como ocorre quando há aplicação da SELIC.
O Direito Penal, como ultima ratio, não tem autorização constitucional para tutelar condutas de ordem tributária, especialmente as previstas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP. Há sanções severas previstas na legislação tributária para tutelar o inadimplemento e buscar a reparação financeira.
O maior fundamento que prevê a limitação do Direito Penal à tutela das condutas tributárias é de que o pagamento (principal e acréscimos legais) extingue a punibilidade, independente da fase processual em que se encontra o processo judicial. O pagamento do tributo e seus acréscimos é a mais tradicional forma de extinção da obrigação tributária, pela sua própria natureza, mas não encontra respaldo científico para extinguir a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária.
Assim sendo, o Direito Penal Econômico, quando tipifica condutas como os crime contra a ordem tributária e previdenciária, é utilizado de modo flagrantemente inconstitucional, pois atua como agente com cunho meramente intimidativo a fim de viabilizar o aumento da arrecadação tributária pela instituição do "Direito Penal do Terror".
Por conseguinte, os arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e os arts. 168-A e 337-A do CP são flagrantemente inconstitucionais por afronta ao art. 1º, inciso III da CF/1988.
VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
Ariella Toyama Shiraki, A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo – Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 83, São Paulo, RT, mar-abr 2010, p. 10.
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Ariella Toyama Shiraki, A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo – Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 83, São Paulo, RT, mar-abr 2010, p. 11.
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