Artigo Destaque dos editores

Conflitos transfronteiriços por recursos hídricos.

Estudo comparativo entre tratados internacionais da Bacia Amazônica, da Bacia do Congo e da Bacia do Jordão

Exibindo página 2 de 4
14/12/2010 às 08:22

Resumo:


  • O problema da alocação de recursos hídricos pode conduzir a cenários de cooperação ou conflito, sendo a cooperação internacional uma ferramenta eficaz para a construção da paz e prevenção de conflitos por água.

  • Entidades supranacionais para gerenciamento conjunto das águas de bacias hidrográficas compartilhadas, como OTCA e CICOS, são importantes para a promoção de soluções cooperativas na gestão de recursos hídricos.

  • A questão hídrica global sugere que a escassez de água não levará diretamente a guerras abertas, mas sim a problemas como a escassez de alimentos, disseminação de doenças, aumento da pobreza e violência, e migrações em massa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

ANÁLISE DE TRATADOS DAS MAIORES BACIAS HIDROGRÁFICAS MUNDIAIS

Inicialmente, entender o debate sobre a soberania é relevante para o estudo da cooperação entre os Estados, principalmente quando o objeto dos tratados é a gestão conjunta de recursos hídricos transfronteiriços, uma vez que os recursos naturais não reconhecem as fronteiras políticas dos Estados e sua mera existência ocasiona uma interdependência física entre países vizinhos. A cooperação desponta como a opção mais eficiente para solucionar problemas conjuntos relativos aos recursos naturais transfronteiriços. No entanto, a cooperação deve ser compatibilizada com a soberania dos Estados, pois a soberania pode muitas vezes se tornar um obstáculo para o aprofundamento da cooperação. [48]

Nas teorias tradicionais a cooperação está ocorrendo quando os atores ajustam o seu comportamento de acordo com as preferências atuais ou antecipadas dos outros, através de um processo de coordenação política, dentro de um sistema anárquico e hobbesiano. [49] Conforme a cooperação entre os Estados se tornou mais ampla e mais comum surgem novas teorias como a dos regimes internacionais e o construtivismo. Atualmente, as novas teorias da cooperação vêm esta como um processo aberto, descentralizado, não-linear e repetitivo, que pode ter um impacto de transformação nos atores e no funcionamento do sistema internacional. [50]

Mikael Roman [51] (apud SANT’ANNA, 2007), em sua análise da implementação do TCA, caracteriza este como um regime internacional, que deve ser entendido como um processo gradual não-linear e aberto que sofre influência de fatores domésticos e internacionais, os momentos formativos (formative moments), e que pode causar transformações nos próprios atores e no sistema internacional. Estes momentos corresponderiam às condições necessárias para que uma mudança na evolução do regime ocorra, razão pela qual eles podem passar por momentos de inatividade até que as condições necessárias para sua evolução surjam, o que dilata o tempo necessário para sua implementação, devido à interferência desses diversos fatores. [52]

A necessidade de cooperação para solucionar os problemas dos recursos hídricos, tem sido extensivamente aplicada com resultados altamente positivos, a tal ponto que é expressa na Convenção Internacional sobre a Utilização de Rios Internacionais para Fins Diferentes da Navegação, de Nova Iorque (1997), em seu artigo sexto, da seguinte maneira: "Estados ribeirinhos devem cooperar com base na igualdade soberana, integridade territorial, benefício mútuo e boa fé, a fim de obter a melhor utilização e a proteção adequada dos cursos de água internacionais". [53] Esta convenção apesar de não ter entrado em vigor tornou-se importantíssima em razão de ser a iniciativa vestibular da era dos grandes tratados sobre recursos hídricos, pois ela apresenta como princípios gerais: a utilização racional e eqüitativa dos recursos hídricos levando em conta fatores relevantes; a participação da sociedade nas decisões sobre a utilização destes; a obrigação de não causar dano significativo a outro país; a obrigação de cooperar; a troca regular de dados e informações sobre o curso d’água ou bacia transnacional; a relação entre os diferentes tipos de uso da água. No entanto, nenhum país amazônico assinou esta convenção internacional até a presente data, exceção feita à Venezuela que assinou a Convenção em 22 de setembro de 1997, contudo até a presente data não efetuou o depósito junto ao secretariado-geral da ONU. [54]


O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA

A Amazônia é central nesta discussão sobre recursos hídricos transfronteiriços devido à abundância de água na floresta, o que a coloca em uma posição estratégica. Todavia, esta abundância também está ameaçada pelo desflorestamento e pela poluição, frutos do crescimento econômico insustentável. [55]

Entre as causas da deterioração da qualidade da água na Amazônia estão os resíduos e produtos usados na mineração, como o mercúrio, os resíduos da atividade madeireira, a extração de materiais para a construção civil, os efluentes das termoelétricas e o próprio esgoto das cidades e vilas. Além disso, outro fator que tem contribuído para a diminuição da quantidade de água, com a diminuição das chuvas e o assoreamento dos rios, é o desmatamento. [56]

O Brasil sempre sustentou que a liberdade de navegação na parte que lhe pertence de um rio internacional só pode ser concedida por meio de convenção especial ou por ato seu próprio. Com relação ao Amazonas, o primeiro ato internacional por ele celebrado, em confirmação dessa doutrina, foi a Convenção Especial de Comércio, Navegação e Limites, de 1851, com o peru. [57]

Depois deste, vários outros foram assinados com os vizinhos, sempre na linha da tese de que os assuntos referentes a rios internacionais deveriam ser tratados apenas de forma bilateral, no máximo no âmbito regional, mas nunca no plano multilateral do tipo universal. [58]

É de se reparar como a posição do Brasil relativa às bacias do Prata e do Amazonas sempre foi diferente. Enquanto a primeira foi aberta à livre navegação em 1857 (inclusive para seus afluentes), o rio Amazonas só foi aberto à navegação internacional dez anos depois, e mesmo assim com exclusão dos afluentes, exceto o Madeira e o Negro em alguns trechos. [59]

Essa diferença de tratamento talvez explique a relutância histórica do governo brasileiro em concordar com uma regulamentação internacional e uniforme para os rios internacionais, pois os interesses que o Brasil defende na Amazônia são diferentes dos defendidos no Prata. [60]

Por outro lado, estamos passando por um momento histórico no qual o sentido da soberania é rediscutido, quando contraposto à sobrevivência humana. Portanto para alguns, a Amazônia não pode ser objeto da soberania de alguns Estados, mas deveria ser encarada como patrimônio mundial, i.e. internacional, devido a seus recursos naturais, dentre os quais os recursos hídricos.

No Brasil, em 1946, o engenheiro-químico brasileiro Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro propôs a criação de um centro de pesquisas na Amazônia. Esta proposta, encampada pela UNESCO, resultou num projeto de tratado internacional para a criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA). Mas foi no período pós-Segunda Guerra que o movimento se intensificou. [61]

Este projeto, entretanto, naufragou diante das críticas exacerbadas que sofreu, ao ser considerado uma ameaça à soberania nacional. A sociedade da época, imbuída de forte espírito nacionalista, mobilizou-se junto ao Congresso Nacional, à imprensa e aos segmentos significativos do país para pressionar o Governo Vargas que, para escapar da repercussão negativa, criou o INPA, em substituição ao IIHA. [62]

O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia foi criado em 29 de outubro de 1952, por meio do Decreto nº 31.672, do Presidente da República, Getúlio Vargas, embora sua implantação só tenha ocorrido em 27 de julho de 1954, dois anos após sua criação. [63]

Porém, em tempos recentes, o medo da internacionalização e o interesse dos países amazônicos em desenvolver economicamente suas respectivas porções da bacia resultaram na assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica, por apenas oito dos nove países da região: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Tendo como principal objetivo afastar a ameaça da internacionalização, reafirmando as soberanias nacionais dos países sul-americanos sobre a região, o Tratado excluiu a Guiana Francesa, que, geograficamente, está em território amazônico. [64] Este aspecto político do tratado faz com que a cooperação acabe sendo preterida em favor dos interesses individuais de cada nação. [65] A partir da década de 1970, no entanto, começa a haver uma maior percepção da necessidade de uma base cooperativa entre as nações. Nas relações internacionais, surge a teoria da interdependência, baseada na compreensão de que os países se relacionam de formas diversas, a fim de conseguir seus objetivos, e que o equilíbrio baseado na correlação de forças é instável. Para os teóricos da interdependência, a cooperação seria a melhor forma das nações alcançarem seus interesses, estabelecendo "novas estruturas de relações (os regimes internacionais), onde a ação dos Estados ficaria reduzida e onde, numa visão grociana ou kantiana [66], a capacidade de se promoverem situações de vantagens multilaterais, eclipsando as concepções de jogos de soma zero, acabaria prevalecendo de forma definitiva". [67]

É neste contexto que o Brasil se volta para os países do terceiro mundo, procurando estabelecer relações cooperativas com seus vizinhos sul-americanos. Isto implica numa diminuição da desconfiança que havia quanto às intenções expansionistas brasileiras. [68]

O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi assinado em Brasília, em 03 de julho de 1978, referendado no Brasil pelo Decreto Legislativo 69/78, sendo depositado em Brasília, em 3 de julho de 1980, o derradeiro instrumento de ratificação, através do Governo da Venezuela, passando a vigorar após a edição do Decreto Presidencial n° 85.050 [69], em 3 de agosto do mesmo ano. [70]

No entendimento de AMAYO ZEVALLOS [71] (apud FILHO, 2009), "a importância do TCA reside no reconhecimento da soberania de cada um dos países signatários sobre a parte que lhe corresponde da Amazônia – a isto se chama regionalização, como conceito oposto à internacionalização – permitindo também discussão e tomada de posição sobre a problemática do conjunto". [72]

Este entendimento está explícito no art. IV do TCA:

"Artigo IV - As Partes Contratantes proclamam que o uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais em seus respectivos territórios são direitos inerentes à soberania do Estado e seu exercício não terá outras restrições senão aquelas que resultem do Direito Internacional". [73]

Em 1978, quando da assinatura do TCA, ainda não existia a Convenção sobre Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação (ONU, 1997) e o Brasil se opunha ao texto em elaboração na Comissão de Direito Internacional, que adotava o conceito de bacia de drenagem internacional e a soberania múltipla sobre os cursos d´água transfronteiriços. [74]

A oposição brasileira se fundamentava no fato de que a Carta Magna de 1967 estabelecia em seu art. 4°, § 2º que o patrimônio da União "compreende as vias de água que servem de fronteira com outros países ou que se estendem para território estrangeiro", ao que corresponde uma soberania plena sobre seus recursos hídricos. [75] A Constituição de 1988, em seu art. 20, III, [76] manteve o mesmo texto, acrescentando como bens da União as águas que provenham de outros territórios. [77]

Ainda que o TCA evoque o Direito Internacional como restrição ao exercício pleno da soberania, no que tange aos recursos hídricos, o nosso texto constitucional e a inexistência de um Tratado Internacional específico, como a Convenção sobre a Utilização dos Cursos d´Água para fins Distintos da Navegação, não impunham ao Brasil, nem aos outros países, qualquer restrição. [78]

A ausência da noção de bacia de drenagem internacional, privilegiando-se o aspecto político, no que tange à adesão ao tratado, bem como a falta de uma definição de ações concretas para sua consecução, faz do TCA um instrumento pouco eficiente para a cooperação, no que concerne aos recursos hídricos. [79]

Isso pode trazer problemas para o Brasil, que, como já vimos, está em uma situação desprivilegiada por não ter o controle das cabeceiras dos principais formadores do Amazonas.

Como se sabe, as hidrelétricas são as fontes de energia mais comuns na América do Sul. A situação é preocupante, pois são "979 barragens de médio e grande porte", [do que] "resulta lógico concluir que, nestes países, em muitas de suas principais bacias fluviais, o rio mestre e afluentes importantes foram barrados, e que alguns trechos de rios quase inteiros foram praticamente monopolizados para a produção de eletricidade". [80]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Se considerarmos o total de hidrelétricas cadastradas pelo WCD 2000 [81] como grandes barragens, na Bolívia (06 usinas), no Peru (43 usinas), Equador (11 usinas), e Colômbia (94 usinas), é provável que, conforme o país, uma boa parte, metade, ou quase todas estas barragens estejam localizadas nas vertentes orientais dos Andes onde se formam muitos rios amazônicos. [82]

Esta situação pode ainda não ser comprometedora, mas serve de alerta para uma possível diminuição da vazão dos rios amazônicos, que chegam em território brasileiro após terem percorrido o melhor trecho para o aproveitamento hidrelétrico. [83]

Para evitarmos incidentes diplomáticos entre os países do Tratado de Cooperação Amazônica e para que haja um jogo de soma positiva entre eles, é preciso que se compreenda a bacia como uma unidade geográfica, de abrangência internacional, a fim de que se possam estabelecer políticas coordenadas de gestão e atribuir responsabilidade jurídica aos Estados ribeirinhos pelos danos causados aos demais países da bacia. [84]

Portanto, considerando o amadurecimento no Direito Internacional e os avanços nas relações entre os Estados amazônicos, há que se entender o artigo IV do TCA de uma nova maneira, tornando o artigo V uma norma de eficácia plena. Para isso, seria preciso fazer uma leitura conjunta do TCA com a Convenção sobre a Utilização dos Rios Internacionais para Fins Distintos da Navegação, que adota o conceito de bacia de drenagem internacional e elenca os direitos e deveres dos Estados que compartilham de uma mesma bacia. No entanto, entre os países do TCA, somente a Venezuela aderiu à Convenção da ONU, o que lhe confere legitimidade para, talvez, iniciar este processo de reavaliação do Pacto Amazônico. [85]

O conceito de soberania clássico não serve mais a um mundo cada vez mais interdependente. E, no que tange aos problemas ambientais, a soberania compartilhada é a forma mais adequada de se promover a cooperação entre os Estados na solução de problemas. Conforme nos ensina LE PRESTRE [86], "no referente aos problemas ambientais, que contêm efeitos transfronteiriços, os Estados não podem explorar os recursos naturais sem ter em conta seus vizinhos". [87]

A utilização racional dos recursos hídricos não pode ser entendida como uma questão de conveniência para cada um dos países que compartilham dos cursos d´água de uma bacia. Implica, sim, no uso dos recursos hídricos, atendendo às suas múltiplas funções, e com respeito ao direito de uso daqueles que estão à jusante do curso d´água. [88]

Outro passo importante para o fortalecimento institucional do tratado e para o aprofundamento da cooperação foi em 1998, quando os países amazônicos assinam um Protocolo de Emenda criando a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que entra em vigor em 2002. Esta organização possui uma sede permanente em Brasília, uma Secretaria Permanente, e seu órgão decisório máximo continua sendo a Reunião de Ministros das Relações Exteriores. Também foram criados, desde a assinatura do TCA, outros órgãos como o Conselho de Cooperação Amazônica, e as Comissões Especiais de Meio Ambiente, Educação, Ciência e Tecnologia, Saúde, Transporte, Infra-estrutura, Comunicação e Energia, Assuntos Indígenas, Turismo. [89]

A OTCA é uma organização internacional regional que procura através da cooperação desenvolver projetos para a solução dos problemas comuns que os países amazônicos enfrentam. A temática ambiental é a que está mais presente nos projetos da OTCA desde sua criação. Por isso, esta organização empreendeu esforços no sentido de desenvolver um projeto para a gestão dos recursos hídricos transfronteiriços na Amazônia. [90] A cooperação para o uso sustentável dos recursos naturais exige uma nova visão sobre a soberania, pois é preciso que a soberania seja compatível com a cooperação, para que os problemas ambientais sejam solucionados pelas ações conjuntas dos países.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Alfredo Rodrigues de Oliveira

Assessor Jurídico em Manaus, Habilitação em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Alfredo Rodrigues. Conflitos transfronteiriços por recursos hídricos.: Estudo comparativo entre tratados internacionais da Bacia Amazônica, da Bacia do Congo e da Bacia do Jordão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2722, 14 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18026. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos