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Função social da propriedade em face da Administração Pública

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Introdução.

A Constituição Federal de 1988, no seu extenso rol de direitos e deveres individuais e coletivos presente no art. 5º, garante, no inciso XXII do mesmo dispositivo, o direito à propriedade e, ato contínuo, no inciso seguinte, determina que "a propriedade atenderá a função social". Também no artigo 170, inciso II, a Carta Política de 1988 elevou a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica.

Ao tratar da propriedade urbana, a Constituição Cidadã, em seu artigo 182, parágrafo 2º, impõe que "a propriedade urbana cumpre sua função quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor". E, por último, ao tratar da política agrária e fundiária da reforma agrária, a atual Lei Maior dispõe que, em seu artigo 184 in limine que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, (...)."

Inicialmente, o presente artigo tem o escopo de analisar, em apertadas linhas, a noção de propriedade, a evolução do Direito Civil da Idade Moderna para o Direito Civil contemporâneo (chamado por alguns de Direito Civil-constitucional) e neste contexto o surgimento da função social da propriedade.

No momento seguinte, discorreremos sobre a noção de Administração Pública e, finalmente, analisaremos a possibilidade de obediência à função social da propriedade até mesmo pela Fazenda Pública, diante da análise sistemática da Constituição, seus princípios constitucionais, dos direitos fundamentais, do Direito Civil-constitucional e do Direito Administrativo. Constitui, em nossa ótica, questão nodal se o fato de um bem público estar afetado ao serviço público e, conseqüentemente, servindo ao interesse público, se tal bem está excluído de render respeito ao princípio da função social da propriedade ou, em outros termos: constitui a observância ao interesse público e à função social da propriedade um bis in idem?


Noção de propriedade. Evolução do Direito Civil para o Direito Civil-constitucional. Função social da propriedade.

A propriedade é o direito real por excelência, encerrando o mais extenso feixe de direitos do titular do direito sobre uma res. Para VENOSA, "é o direito mais amplo em relação à coisa" [01]. BEVILÁQUA o definia (art. 524, Código Civil revogado) como "o direito de usar, gozar e dispor dos bens, e de rehave-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua" [02]. O mestre cearense confessou a influência romana de tal conceito, onde, para os latinos, "dominium est jus utendi, fruendi et abutendi re sua, quatenus juris ratio patitur" [03]. O código civil atual (art. 1228) o descreve como "o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha", mantendo a noção de domínio como o direito de usar, gozar e dispor da coisa, além de prever o direito de reaver a coisa (direito de seqüela) diante da injusta posse ou detenção.

Assim a propriedade encerra esse feixe – como dissemos linhas atrás – sobre a coisa. Tem o dono a faculdade de exercer sobre a coisa o direito de usá-la, "colocando a coisa a seu dispor sem alterar-lhe a substância" [04]. Já gozar significa usufruir a coisa, beneficiar-se dela, captar as vantagens, colher da coisa seus frutos, quer naturais, quer civis. VENOSA [05] aponta a faculdade de dispor como o "poder de consumir o bem, alterar-lhe sua substância, aliená-lo ou gravá-lo". O direito de seqüela é a faculdade que o proprietário tem de reaver a coisa de quem a injustamente a possua, legitimando aquele a ajuizar a ação reinvidicatória.

Feita uma singela exposição do direito de propriedade e seus aspectos, passemos à análise da evolução do Direito Civil – assim como seus institutos, como a própria noção de propriedade – sofreu no último século, incorporando à noção de domínio o elemento intrínseco da função social.

A função social como atributo da propriedade não era conhecido no Código Napoleônico – documento de índole eminentemente individualista e liberal - que definia a propriedade – como afirma TEPEDINO eSCHREIBER [06] - como "o direito de usar e dispor da coisa ‘de la manière plus absolute’" ou, em outros termos, propriedade é o direito de usar, gozar e abusar da coisa. Na época do Código de Napoleão, a Europa tinha abandonado o modelo feudal de produção e de organização social, surgindo os primeiros "Estados Modernos". Neste contexto histórico - Idade Moderna – vigorava o pensamento liberal que, no seu aspecto econômico, tinha como seu principal defensor Adam Smith, que pregava o Estado Mínimo", absenteísta ou não-intervencionista: segundo ele, o Estado deveria não atuar na economia: esta que se conduzisse por suas próprias forças e leis de mercado, que se deixasse que a "mão invisível" da economia tangesse seus rumos de forma livre, não devendo o Estado intervir. No aspecto filosófico, surgiram novas correntes filosóficas como o iluminismo e o antropocentrismo, onde o homem passava a ser "o centro do universo". O homem se libertava Idade Média, época de escuridão, para ingressar na "Idade das luzes". Diante deste panorama, o Código Civil Francês foi fortemente influenciado pelos ideais liberais, enaltecendo a figura do homem enquanto indivíduo isoladamente considerado (individualismo, também presente na doutrina liberal) e a valorização do patrimônio, notadamente o bem imóvel.

Influenciado pelo Code Napolèon, o Código Civil brasileiro de 1916 tratou a propriedade "apenas em seu aspecto estrutural, como um feixe de poderes atribuídos ao proprietário", conforme observa TEPEDINO eSCHREIBER [07]. O Código Civil de Beviláqua era um diploma patrimonialista e individualista, condição esta perfeitamente compreensível diante do contexto histórico em que tal Código surgiu: além de influenciado pelo já mencionado Código Civil francês, o Brasil era um país com indústria praticamente inexistente, de predominante atividade rural, com formação latifundiária, sendo a produção rural a mola propulsora da economia. Além disso, o estado brasileiro tinha abolido a escravatura há pouco tempo, além da também recente proclamação da República. Ademais, o projeto do Código Civil revogado passou décadas em tramitação no Poder Legislativo.

Neste contexto do início do século XX, a propriedade era concebida como direito de usar, gozar e dispor da coisa ilimitadamente, com a função de atender aos interesses particulares do proprietário, ainda que o uso do domínio implicasse em situações de abuso do direito, de atos emulativos e de situações de, no mínimo, excesso. Sobre tais atos, a doutrina civilista aponta alguns casos que serviram para o desenvolvimento da teoria do abuso de direito. Na França, um proprietário construiu sobre sua casa uma falsa, volumosa e inútil chaminé, defronte à janela de um vizinho, visando tapar-lhe a entrada de luz. O Tribunal ordenou a demolição do construído, e, ao mesmo tempo, deixou a salvo o direito do vizinho ao ressarcimento. Outro caso, mais célebre, foi o caso em que um proprietário de um imóvel que instalou longas hastes pontiagudas para rasgar os balões dirigíveis que partiam de um hangar no imóvel vizinho.

Se a Constituição vigente à época do Código de 1916 – a de 1891, nossa primeira Constituição republicana, de nítida influência estadunidense – também era de índole liberal, tal panorama mudou com a crise do Constitucionalismo liberal, onde a influência da Constituição de Weimar de 1919 foi facilmente percebida em relação à Constituição brasileira de 1946 – de condição intervencionista e assistencialista, conforme leciona BONAVIDES [08].

Neste sentido, TEPEDINO eSCHREIBER [09] afirmam que com o constitucionalismo social inserido no Brasil após a década de 30, surgiu no ordenamento "a preocupação com a funcionalização da propriedade ao interesse social", sendo repetida tal preocupação na Constituição de 1967 e ganhando ampla dimensão na atual Carta Política, conforme os ditames constitucionais acima transcritos. No texto constitucional, não há garantia à propriedade, mas garantia à propriedade que cumpra a função social.

A partir do constitucionalismo social e com o relevo deste na Constituição Federal de 1988, os institutos jurídicos de direito privado passaram a sofrer uma nova leitura. Se antes a interpretação das normas e institutos do Direito Civil se fazia em seu próprio sistema hermético – alheios aos ditames constitucionais - como se o Direito Privado fosse um sistema apartado do sistema constitucional, sendo o Código Civil o "centro do ordenamento" e neste orbitavam os diversos microssistemas de direito privado, atualmente a interpretação das normas de Direito Civil passa inevitavelmente pela Constituição Federal de 1988. Temos assim o fenômeno denominado pela melhor doutrina de "constitucionalização do direito civil" ou publicização do direito privado".

Entre os institutos de Direito Civil que sofreram tal releitura temos a propriedade – direito real por excelência - até então concebida como direito de usar, gozar e dispor da coisa, temos que não se admite o uso da propriedade de forma ilimitada, sem que seu exercício pudesse gerar para o proprietário um resultado útil, bem distante do que ocorria nos casos de atos emulativos acima enumerados.

Pode-se dizer que hoje o direito à propriedade perdeu seu ranço individualista, uma vez que mesmo a propriedade particular deverá atender à função social, que pode ser entendida como um princípio que impõe ao proprietário o atendimento às normas constitucionais e ao interesse da coletividade, uma vez que o proprietário deve dar à coisa destinação, utilidade econômica e social à coisa ao invés de quedar-se inerte objetivando a especulação imobiliária decorrente da valorização do bem. Há quem entenda que a propriedade teria perdido a sua feição privatística, se aproximando seu regime ao Direito Público, como o regime de Direito Administrativo. Outros afirmam que o Constitucionalismo Social trouxe para o conceito de domínio uma nova limitação, onde para a ordem constitucional vigente, propriedade merecedora de proteção é aquela que cumpre sua função social. Preferimos compreender a função social como novo elemento estrutural da propriedade do que dar àquela o rótulo de limitação ao direito de propriedade.

Sobre a função social da propriedade privada, não paira qualquer dúvida sobre seu alcance: a propriedade urbana ou rural que não cumpra sua função social não será merecedora de proteção do ordenamento, podendo, inclusive, sofrer sanções de fundamento constitucional, como a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública e a progressividade extrafiscal.


Administração Pública. Propriedade dos entes da Administração Pública e Patrimônio Público. Obediência à função social

Vencidas as noções de propriedade e de função social, resta-nos a análise do que é Administração Pública, conceito que a doutrina, majoritariamente aponta dupla acepção. Em um sentido objetivo, material ou funcional, a administração pública corresponde a um conjunto de funções e atividades públicas, convencionando-se a dar a este conceito letras minúsculas ("administração pública"). Nos interessará o outro sentido, subjetivo, formal ou orgânico, no qual a Administração Pública (maiúscula) encerra um conjunto de pessoas, órgãos ou agentes que desempenham atividade pública.

Antes de responder a questão capital deste artigo (a propriedade das pessoas integrantes da Administração Pública se sujeita à função social?), merece ser elucidado o problema de quais pessoas integram a Administração que, na sua acepção de subjetiva, formal ou orgânica, como dissemos

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"corresponde a um conjunto de pessoas ou entidades jurídicas (de direito público ou de direito privado), de órgãos públicos e de agentes públicos, que formam o aparelhamento orgânico ou estrutura formal da Administração. Vale dizer, leva em conta o sujeito da Administração." [10]

DI PIETRO [11] leciona que a Administração Pública compreende a Administração Pública Direta, composta pela União, estados-membros, Distrito Federal e municípios; e a Administração Pública Indireta, formada pelas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, todas também dotadas de personalidade jurídica própria e, como observa MELLO [12], estas duas últimas dotadas de personalidade jurídica de direito privado.

No tocante às sociedades de economia mista e as empresas públicas que exercem atividade econômica, não nos parece restar dúvida que a propriedade dessas pessoas jurídicas deverá respeitar sua função social, inclusive se sujeitando às sanções que a Constituição prevê diante de seu para o seu atendimento, como a desapropriação-sanção (com o pagamento em pouco atrativos títulos da dívida pública) e a progressividade extrafiscal de alguns impostos, uma vez que seus bens são particulares e por isso sujeitos ao arcabouço normativo-constitucional da função social [13].

Questão espinhosa é a analise da função social dos bens dos entes da Administração direta, autárquica e fundacional, todas pessoas de direito público interno, sujeitas inteiramente ao regime jurídico administrativo e com tratamento de Fazenda Pública. Favoravelmente posicionam-se TEPEDINO eSCHREIBER [14]

Neste sentido, conclui-se que também a chamada propriedade pública tem uma função social. A referência corriqueira à "função social da propriedade privada" explica-se pelo fato de que é, neste âmbito, que a funcionalização opera de forma mais revolucionária, afastando a tradicional noção da propriedade privada como espaço de liberdade individual e tendencialmente absoluta do titular do domínio. A propriedade pública, ao contrário, já se dirige, em tese, ao atendimento dos interesses de todas as pessoas e, por isso mesmo, referir-se à sua função social costuma parecer dispensável, uma repetição inútil daquilo que já lhe é reconhecido como essencial. A verdade, todavia, é que a propriedade pública é, por definição, voltada não ao interesse social, mas ao interesse público, e o reconhecimento de sua função social impõe uma verificação de conformidade entre estes dois interesses, cuja importância não pode passar despercebida ao intérprete. [...]

Bastante elucidativas as luzes dos autores acima em destacar que o bem público, por estar vinculado ao interesse público, existindo para servir a tal interesse, pareceria dispensável o atendimento ao interesse social. Tradicionalmente, se admite a função social da propriedade privada, uma vez que no bem público este já teria o interesse público a ser observado. Além disso, a norma constitucional que impõe que "a propriedade atenderá a função social" está no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, isto é, no capítulo da Constituição que trata dos direitos e deveres do cidadão, muitas vezes em face do Estado. Ocorre que há um princípio de hermenêutica em que onde o legislador não diferenciou não cabe ao intérprete fazê-lo. Logo a Constituição Federal estatui que a "a propriedade atenderá sua função social", não excluindo a afirmação a propriedade pública. Os autores ainda arrematam afirmando que

O controle de conformidade entre o público e o social torna-se necessário na medida em que o Estado passa a ser reconhecido não mais como um fim em si mesmo, mas como instrumento a serviço do desenvolvimento da pessoa humana. Portanto, também a propriedade pública, estatal, deve cumprir sua função social, sendo empregada não apenas no atendimento do interesse do Poder Público, mas no atendimento dos interesses sociais privilegiados pelo texto constitucional. Sob este aspecto, contudo, a experiência jurisprudencial não revela a necessária vigilância. A função social vem correntemente invocada como forma de legitimar a atuação restritiva da Administração Pública sobre a propriedade privada, mas não é normalmente invocada como forma de controle do exercício que a própria Administração Pública faz da sua propriedade. Note-se que não se trata de uma duplicação da coibição do desvio de finalidade na utilização de bens públicos: o desvio de finalidade deriva da utilização de um bem público para fins particulares; o controle que a função social vem permitir é o do próprio emprego dado pelo Estado a um bem público, de forma aparentemente legítima e sem especial consideração de quaisquer interesses privados. O controle do exercício da propriedade do bem público abrange não apenas a sua utilização, como a sua não-utilização, e a sua eventual disposição, ou seja, sua transferência do âmbito público para o âmbito privado, por meio da chamada privatização.

Também admitindo a função social da propriedade pública temos DI PIETRO [15] para quem a função social da propriedade é adotada expressamente pela Constituição e é agasalhada, de maneira menos clara, a função social da propriedade pública, destacando, neste sentido, o princípio da função social da cidade, que impõe para o Poder Público um dever e para os cidadãos um direito de natureza coletiva. Ainda para a autora a idéia de função social, envolvendo o dever de utilização, não é incompatível com a propriedade pública.

O direito brasileiro consagrou a classificação tripartite dos bens públicos utilizando o critério da destinação ou afetação dos bens, disposta nos incisos do art. 99 do Código Civil de 2002: de uso comum do povo serão os bens destinados ao uso coletivo, por natureza ou por lei, como as praças e praias, sendo bens de acesso franqueado ao administrado; os de uso especial são os bens destinados aos objetivos estatais, como a realização dos serviços públicos, sendo portanto bens necessariamente afetados; e por bens dominicais ou dominiais são aqueles sem destinação pública específica, podendo ser aplicados pelo Poder Público para obtenção de renda ou outra finalidade de interesse público, pois, diferentemente das duas espécies anteriores, os bens dominiais encontram-se desafetados e encontram-se sob o regime jurídico de direito privado parcialmente derrogado pelo direito público. As duas primeiras espécies estão sujeitas ao regime de direito público e são inalienáveis, enquanto os bens dominicais são alienáveis através da modalidade licitatória denominada leilão.

Não se trata de bis in idem considerar que a propriedade pública, já sujeita ao interesse público, tenha que também cumprir sua função social. Não é pelo fato de que os bens públicos são insusceptíveis de usucapião [16] que os tornam isentos de cumprir sua função social pois, como observa GUIMARÃES [17], se deve entender que tais bens devam cumprir sua função social pois, citando Cristiana Fortini afirma que

A Constituição da República não isenta os bens públicos do dever de cumprir função social. Portanto, qualquer interpretação que se distancie do propósito da norma constitucional não encontra guarida. Não bastasse a clareza do texto constitucional, seria insustentável conceber que apenas os bens privados devam se dedicar ao interesse social, desonerando-se os bens públicos de tal mister. Aos bens públicos, com maior razão de ser, impõe-se o dever inexorável de atender à função social.

GUIMARÃES [18] tem, a nosso ver, postura ousada ao admitir usucapião de bem público que não cumpra sua função social, fundamentando a prevalência da norma-princípio da função social da propriedade em face da norma regra da vedação do usucapião de bens públicos e, afirma que os bens públicos – de uso comum do povo, de uso especial e dominicais – estes estariam mais sujeitos ao não cumprimento da função social e por, conseqüência mais suscetíveis de serem usucapidos. Não ousamos tanto: cremos que é possível a tutela jurisdicional diante de um bem público que não atende sua função social, quer seja de uso comum, especial ou dominial, até porque a Constituição da República garante a inafastabilidade da jurisdição. Porém, não nos parece a ação de usucapião cabível em face do ente da Fazenda Pública que não cumpre a função social.

Em opinião oposta está ABE [19] que fundamenta a sua posição de que a função social deve ser atendida por todos os particulares e não pelo Estado por conta de que o Estado não se submete às sanções que os particulares possam sofrer diante do descumprimento da função social: o parcelamento ou a edificação compulsória feriria o princípio federativo, assim como a desapropriação [20]. Em outra linha, não caberia ao município, por exemplo, impor o Imposto Predial Territorial Urbano progressivo no tempo por conta imunidade tributária presente no art. 150, VI, a da Constituição da República. Fundamenta ainda a autora, afirmando ser patente a inaplicabilidade das sanções jurídicas previstas para o descumprimento da função social aos entes públicos, o fato de que os bens públicos se sujeitam a regime diferenciado em relação aos bens dos particulares, embora admita que os bens públicos devem atender aos interesses coletivos.

Embora sejam sólidos os fundamentos propostos, preferimos a corrente de que a função social da propriedade pública deve ser atendida por diversos argumentos, aqui já expostos, reforçados pelo argumento hermenêutico de que a Constituição Cidadã diz que a propriedade atenderá a sua função social, não restringindo tal exigência a propriedade privada.

Apesar da impossibilidade, na nossa concepção, de usucapião de bens públicos e de que o manejo de tal ação não é possível, consideramos que, uma vez configurado o não atendimento da função social da propriedade pública, é possível o ajuizamento de ação judicial para impor ao Poder Público a obediência ao ditame constitucional. Temos que o direito do cidadão de ter os bens públicos e particulares que o cercam cumprindo a sua função social é um direito fundamental de 3ª. Geração, vinculados ao princípio da solidariedade, como resume STUDER e OLIVEIRA [21]

direitos de terceira dimensão: são os direitos meta-individuais, direitos coletivos e difusos, direitos de solidariedade, seu titular não é mais o homem individual (tampouco regulam as relações entre os indivíduos e o Estado). Dizem respeito à proteção de categorias ou grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem no público, nem no privado, podemos classificar a função social da propriedade como um direito de terceira dimensão;

Direitos difusos são os direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. A função social da propriedade é um direito de terceira dimensão, meta-individual, difuso, sendo possível o manejo das ações coletivas como a ação civil pública para a sua proteção e efetivação, esta, por sua vez, é uma espécie de ação coletiva, prevista na lei federal nº 7347/85 (LACP), que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

A ação civil pública é uma ação judicial que visa tutelar os direitos e os interesses difusos, inicialmente para fins de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados por dano ao meio-ambiente; ao consumidor; à ordem urbanística; a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; por infração da ordem econômica e da economia popular. Poderíamos enquadrar o direito à função social da propriedade no âmbito do dano causado à ordem urbanística ou ainda na seara da proteção à ordem econômica, quando a propriedade exercida sem função social representar abuso do poderio econômico do proprietário.

Dissemos que a ação civil pública é cabível para a defesa do direito difuso da função social da propriedade, inclusive a propriedade pública, porque a ação civil pública tanto pode veicular uma tutela de reparação de dano moral ou patrimonial quanto uma tutela específica de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Neste sentido, o art. 3º, LACP.

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Sobre o autor
Cláudio Henrique Leitão Saraiva

advogado em Fortaleza (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAIVA, Cláudio Henrique Leitão. Função social da propriedade em face da Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2756, 17 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18286. Acesso em: 22 nov. 2024.

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