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A responsabilidade estatal pelo reconhecimento e regulação das uniões e do casamento homoafetivo.

O atendimento aos mandamentos constitucionais

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19/01/2011 às 19:47
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2. Solução paliativa: possível analogia com a união estável, interpretação extensiva do mesmo instituto ou criação de figura jurídica própria

A analogia [52] pode ser conceituada como um processo revelador de normas implícitas. O alicerce da analogia se encontra na igualdade jurídica, posto que o processo analógico se traduz em um raciocínio fundado em razões relevantes de similitude, baseando-se na identidade de razão, que é o fator justificador da aplicabilidade da norma em casos não previstos, mas essencialmente semelhantes. Contudo, não há o intuito de investigar o exato significado da norma, partindo apenas do pressuposto que o caso sub judice, não obstante estar fora do enquadramento legal [53], deve cair sob a égide do dispositivo, por similitude de razão. [54]

Como já referido, o Direito deve acompanhar o momento vivido pela sociedade. Observando-se os momentos históricos da Humanidade, pode-se dizer que o fato social antecede o jurídico, e a jurisprudência precede a lei. No caso da omissão legislativa, deve o julgador procurar as respostas em outras relações jurídicas, cujas circunstâncias de fato apresentem semelhança com a situação do caso concreto. Como já diria Carlos Maximiliano, "força é adaptar o Direito e esse mundo novo aos fenômenos sociais e econômicos em transformação constante, sob pena de não ser efetivamente justo – das richtige Recht, na expressão feliz dos tudescos". [55] E a analogia pode muito bem ser um instrumento valioso para o vazio legislativo existente, o já mencionado fosso assombroso que existe entre o mundo jurídico e a realidade.

Dentre todos os institutos que se encontram normatizados no ordenamento jurídico brasileiro, é indubitável a semelhança entre a união homoafetiva e a união estável. A doutrina majoritária, assim como boa parte da jurisprudência, vai pelo caminho de aplicar a normativa relativa à união estável às uniões homoafetivas, por analogia. Entretanto, a contrario sensu, há quem entenda existir impossibilidade de tratamento analógico da questão, argumentando que a lei não é omissa, em virtude do art. 226, § 3º da Constituição Federal estabelecer que: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

Essa corrente doutrinária socorre-se de vários argumentos. Indubitavelmente, o mais utilizado diz respeito à dualidade de sexo supostamente exigida pela Carta Magna, para caracterização da união estável. Todavia, se tal entendimento prosperasse, [56] oriundo de uma leitura autônoma e desconectada dos mandamentos constitucionais [57], poder-se-ia afirmar que estaria em causa a problemática das normas constitucionais inconstitucionais, teoria criada por Otto Bachof. [58] Sobre a questão, assevera o jurista português Jorge Bacelar Gouveia que são inconstitucionais "as normas constitucionais que coloquem em questão o âmbito de eficácia de outra normas constitucionais que reflictam directamente considerações axiológicas supra-positivas". [59] Entretanto esta teoria não possui aplicabilidade no Brasil.

Assim, na situação em causa, ocorre incompatibilidade entre normas constitucionais, nomeadamente entre o disposto no art. 226, § 3º e os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, entre outros. Essa "tensão" é denominada de conflito aparente [60], em virtude da presunção de que todas as normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte Originário são compatíveis entre si. [61] E em virtude do princípio da unidade da Constituição e do entendimento de que os "choques" entre as normas constitucionais em questão são aparentes, a idéia é promover uma harmonização do texto, através da interpretação do "conjunto da obra". [62] As ferramentas? Analogia ou interpretação extensiva. Desta forma, entendendo-se ou não a dualidade de sexos como requisito para configuração da união estável, a analogia ou a interpretação extensiva serão sempre cabíveis.

Há ainda quem defenda que na ocorrência desse conflito "aparente" entre uma norma constitucional (art. 226, § 3º) e os princípios que a norteiam (dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, etc.), por uma questão de razoabilidade e coerência, desde que a norma constitucional se evidencie contrária a um princípio constitucional, há-de haver prevalência do princípio. [63] Ademais, como já referia há tempos Norberto Bobbio, é lícito integrar uma "norma deficiente" [64], socorrendo-se do denominado "espírito do sistema, mesmo indo de encontro àquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal". [65]

Pode-se ainda suscitar a idéia de que existe um desajuste entre a letra da norma e o "espírito" da mesma, ou seja, entre a vontade expressa e a vontade presumida do legislador, no sentido de que a formulação da norma em questão não abarca todos os casos que o legislador intentava disciplinar. [66]

Seja pelo juízo de existência de conflito aparente das normas, seja pela idéia de que houve omissão legislativa, qualquer entendimento leva ao mesmo caminho. A aplicação da normativa referente à união estável será possível. [67]

Retirando-se o requisito da dualidade de sexo dos conviventes na união estável, não haveria disparidade alguma entre os relacionamentos heterossexuais e homoafetivos. Como bem se adverte na doutrina, ambos são vínculos que têm sua origem no afeto, havendo identidade de propósitos, qual seja a concretização do ideal de felicidade de cada um. [68] Destarte, se dois indivíduos possuem vida em comum, fundada na assistência mútua, cuja característica principal do convívio é o amor e o respeito, além do objetivo de constituir família, a identidade de sexos dos parceiros não pode constituir óbice para a outorga de direitos e obrigações recíprocas. A notoriedade, a publicidade, a coabitação, o respeito mútuo são sinais patentes de uma verdadeira comunhão de afetos. [69]

As uniões entre pessoas do mesmo sexo ainda se encontram à margem da lei, assim como também já estiveram as uniões estáveis antes do reconhecimento estatal. Até alcançar o patamar constitucional, longo foi o caminho percorrido pelo instituto da união estável. Por longos anos, as relações não oriundas do matrimônio foram o alvo de intensas críticas e discriminação por parte da sociedade.

Na seara sexual e afetiva das relações humanas, a chancela estatal sempre foi, tão-somente, conferida ao sexo dentro do matrimônio, sub-dividindo as relações em legítimas e ilegítimas. Com a mudança dos costumes e uma renovada compreensão da sexualidade humana, com base na psicanálise, tal raciocínio não perdurou. Assim, os indivíduos passaram a possuir liberdade de escolha [70] para estabelecerem seus relacionamentos afetivo-sexuais.

Não obstante essa liberdade, e também o fato de a Carta Magna reconhecer outras entidades familiares, o assunto continua envolto em preconceitos e tabus. Como afirma Rodrigo da Cunha Pereira, "é que a sexualidade é da ordem do desejo. O desejo é inconsciente e é também da ordem da fantasia e da subjetividade do sujeito". [71]

Assim, é fundamentadamente propositado o juízo de que, na falta de lei especifica, deve ser aplicada analogicamente às uniões homoafetivas a normativa relativa à união estável, em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, além dos princípios gerais de Direito.

Apesar do embaraço legislativo, o Superior Tribunal de Justiça garantiu às uniões de pessoas do mesmo sexo acesso à justiça, ao apartar a extinção do processo sob o argumento da impossibilidade jurídica do pedido. [72] Por 3 votos a 2, a 4ª Turma do STJ admitiu a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento de união estável entre pares do mesmo sexo e determinou que a Justiça do Estado do Rio de Janeiro retomasse o julgamento de ação envolvendo um brasileiro e um canadense, que foi extinta sem conhecimento do mérito. Note-se que a Corte não julgou a improcedência ou procedência da ação, mas tão somente a possibilidade jurídica do pedido. O mérito deverá ser julgado pela Justiça do RJ.

Seja fazendo analogia com a união estável, seja utilizando a interpretação extensiva, seja invocando os princípios constitucionais que garantem o direito à igualdade e o respeito à dignidade, o fato é que os avanços estão se consolidando.

Tais avanços, todavia, não suprem o direito à segurança jurídica que só a lei outorga. Destarte, existe a factual e urgente necessidade de buscar a introdução da regulação das uniões entre pessoas do mesmo sexo no sistema jurídico brasileiro. Como já referido anteriormente, o silêncio é a forma mais perversa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta alguns dos mais elementares direitos, como o direito à cidadania e à dignidade, base de qualquer Estado que se diga Democrático de Direito. [73]

Há quem entenda que a possibilidade de reconhecer as uniões homoafetivas, de fato e de direito, como uniões estáveis só acontecerá na ocorrência de uma Emenda à Constituição, com o propósito de retirar a sentença "entre o homem e a mulher". [74] Entretanto, este não é o único caminho possível a ser seguido. Note-se que obter êxito com uma PEC não constitui tarefa fácil, tendo em vista o longo e moroso caminho a ser seguido, que pode perdurar por anos.

Assim, com o objetivo de equiparação da união homoafetiva com a união estável, tramita desde 25 de Fevereiro de 2008 a ADPF [75] 132, de autoria de Sérgio Cabral, Governador do Estado do Rio de Janeiro. [76] A ação indica que foram violados, ao não se reconhecer as uniões homoafetivas, os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, além do princípio da segurança jurídica, no RJ e em outros Estados.

Existe ainda iniciativa que, com o intuito de criação de regime jurídico próprio e, em algumas situações, equiparação à união estável tramita no Legislativo brasileiro, que é o Projeto de Lei n. 2285/2007 (Estatuto das Famílias). Será esta a solução para a questão?

Sim e não. No Capítulo IV, do Título III do Estatuto, denominado "Das Entidades Familiares", está expressamente regulada a união homoafetiva. Do art. 68 do Projeto de Lei pode-se extrair o conceito desse vínculo: "É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável". É estabelecido, no parágrafo único do citado dispositivo, que, dentre os direitos assegurados, incluem-se: guarda e convivência com a prole; possibilidade de adoção; direito previdenciário e direito à herança.

Note-se que o legislador criou uma figura jurídica autônoma mas, ao mesmo tempo, equiparada à união estável. Questiona-se: e se mesmo diante da existência de tal figura, juridicamente regulamentada, um casal homossexual ainda quiser ter acesso ao instituto do casamento? Será possível? Sim, fazendo-se uso dos mesmos argumentos utilizados para defender a possibilidade de acesso ao casamento pelo homossexuais no ordenamento jurídico vigente, argumentos estes que, inclusive, seriam mais contundentes. Note-se que no art. 21 do Estatuto das Famílias está disposto que o casamento é civil e produz efeitos a partir do momento em que os nubentes manifestam a vontade de estabelecer o vínculo conjugal e a autoridade os declara casados.

A expressão "o homem e a mulher", presente no art. 1.514 do CC atual, seria substituída por "nubentes", o que evidencia um genuíno afastamento da diversidade de sexos como pressuposto do casamento. Ademais, mais uma vez, não se encontra o fato de o par ser do mesmo sexo, como impedimento matrimonial ou causa de anulabilidade ou nulidade. [77] Para além disto, como já mencionado anteriormente, o Estatuto das Famílias consagra a equiparação das entidades familiares em seu art. 5º.

Como o Estatuto das Famílias, se aprovado, apenas revogará o Livro IV do Código Civil brasileiro (Do Direito de Família), não obstante a equiparação das entidades familiares, a união estável e, consequentemente, a união homoafetiva, ainda não estarão em grau de paridade com o casamento em um aspecto: direito sucessório. [78] Desta forma, podem os homossexuais, por este motivo ou por outro (questão de equiparação semântica, questão ideológica, etc.), ainda querer o acesso ao casamento, o que parece ser viável.


3. Solução ideal: a necessidade de se conceder aos casais homossexuais o direito de contrair casamento

O direito ao casamento, em especial, e o Direito das Famílias geralmente, se relacionam de forma direta com o exercício de diversos direitos fundamentais, como o direito à liberdade, o direito à igualdade, o direito à intimidade, assim como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, todos eles derivados da dignidade da pessoa humana, que é um valor espiritual e moral inerente ao indivíduo, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais. [79] E, ao contrário do que muito pós-modernistas afirmam (como o juízo de que o processo de abertura do casamento é coercitivo), pesquisas revelam que a maioria dos homossexuais gostaria de ter o direito de casar-se, especialmente pelo fato de a regulação traduzir-se em uma maior tolerância e até aceitação por parte suas famílias, das pessoas com quem trabalham e da sua comunidade. [80]

Se posicionando contra a idéia de abertura do casamento, alguns argumentam que gays não deveriam ter acesso ao matrimônio porque o casamento homossexual enfraqueceria todo o instituto. Evocam ainda o absurdo argumento de que a mulher "domestica" o homem, fazendo o casamento funcionar. Esta idéia, além de levar um juízo êrroneo de hierarquia, nos remonta a um passado de desigualdade entre os cônjuges que não mais existe. Na verdade, o casamento é um compromisso moral, renovado todos os dias através do companheirismo, amparo mútuo, afeto, que são os fatores que, de fato, vinculam as pessoas. [81]

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Existem ainda aqueles contrários à idéia do casamento homoafetivo, com um discurso menos "irracional", como a doutrinadora argentina Graciela Medina, que assevera que o direito a casar-se é direito de todo homem e toda mulher a institucionalizar uma união monogâmica para fundar uma família legítima; qualquer que seja o método de interpretação que se utilize – gramatical, sociológico, lógico ou integrador – não é possível aceitar que o direito ao casamento possa ser estendido a pessoas do mesmo sexo; o direito a contrair casamento, regulado pelo direito positivo infraconstitucional admite regulamentações restritivas, sempre que estas não sejam arbitrárias; a regra segundo a qual o matrimônio só pode ser celebrado por pessoas de sexo distinto não é arbitrária porque existem razões de ordem sociológica, histórica, demográfica e de bem comum que a justificam; a limitação de celebração do matrimônio entre pessoas a pessoas de sexo diferente não afeta os direitos de personalidade dos homossexuais. Ainda afirma a conceituada jurista que os homossexuais não podem cumprir com os deveres sociais do casamento, como continuação da espécie, educação dos filhos e transmissão de valores culturais. [82]

Merece especial atenção o argumento supra referido da continuação da espécie como dever social do casamento. Note-se que é idéia arraigada na doutrina mundial que a procriação não constitui escopo do casamento. Se assim o fosse, casamento entre pessoas idosas ou entre pessoas inférteis seriam vedados. Do mesmo modo, não existe óbice algum ao casamento entre parceiros férteis que não desejem ter filhos, mas querem desfrutar dos benefícios e direitos oriundos da relação matrimonializada.

Na atual realidade social, os conceitos de casamento e família não mais se confundem. Já não existe base para qualquer postulado de conexão entre família e casamento. É sabido que o reconhecimento legal de uma família não se encontra mais restrito na lógica do casamento plus crianças. Existem pluri ou multiformas de se constituir família. E para se formar uma família, não se faz necessária a presença de prole, como já foi referido.

Os argumentos contrários ao casamento baseados na sua definição, na tradição e na religião acabam por caber na mesma categoria geral, porque cada argumento é autônomo: casamento deve continuar a ser exclusividade dos heterossexuais porque é aquilo que o casamento é; porque é isso que o casamento sempre tem sido, e porque as grandes tradições religiosas têm sempre entendido o casamento como sendo entre um homem e uma mulher.

Todavia, tais argumentos, que podem ter apelo para algumas pessoas, são frágeis. Não há como encontrar-se motivos racionais para a manutenção do monopólio do casamento heterossexual. Tais argumentos se centram em uma determinada compreensão de como as coisas sempre foram e como são neste momento. [83] Olvidam-se que a sociedade está em movimento constante e a lei e as normas não podem restar estáticas, enraizadas em juízos ultrapassados e em desacordo com o momento atual vivido pelos povos.

Note-se que, ao se combater a questão da definição do casamento, não se quer dizer que todas as definições são irracionais ou que a escolha de uma definição em relação a outra é puramente uma questão de fantasia. Obviamente, algumas definições têm mais utilidade do que outras para fins tais como, a facilidade e clareza da comunicação, a promoção da investigação científica ou o desejo de transmitir determinados valores, por meio da forma como as palavras são definidas. O argumento aqui, convém sublinhar, é simples. Não se está a defender que é irracional definir o casamento como sendo apenas entre homem e mulher. É de se afirmar que é irracional continuar a definir casamento como exclusivamente heterossexual, apenas e tão-somente porque o casamento é atualmente e recorrentemente definido como unicamente heterossexual, sem maiores fundamentos. [84]

O atrelamento à questão da tradição é igualmente falível. Um exame, ainda que superficial, da história da Humanidade, revela que este argumento é falacioso. A instituição do casamento civil, como a maioria das instituições humanas, sofreu enormes mudanças ao longo dos últimos dois milênios. Se casamento fosse o mesmo atualmente, como o foi nos últimos dois mil anos, seria possível casar-se aos doze anos de idade, com uma pessoa desconhecida, por via de um casamento "arranjado"; o marido ainda poderia vislumbrar a própria esposa como propriedade e dispor dela à vontade; ou uma pessoa poderia ser condenada à prisão por ter se casado com uma pessoa de raça diferente. E, obviamente, seria impossível obter um divórcio, apenas para citar alguns exemplos.

É certo que existem perigos na definição da família com base nos direitos individuais, sem ter em conta os entendimentos tradicionais. Todavia, o respeito à tradição pode constituir um motivo de precaução, não de imobilismo ou inércia. Até mesmo o notável filósofo e historiador Edmund Burke, ativo participante do grupo dos que têm alertado para as consequências de ignorar a tradição, asseverou que as instituições tradicionais podem e devem mudar. [85]

Da mesma forma, pode-se dizer que a questão da moral predominante ou concepções majoritárias tampouco pode servir de alicerce para vedação ao casamento homossexual.Neste sentido, questiona Ronald Dworkin: Será que uma "maioria moral" pode limitar a liberdade de cidadãos individuais sem uma justificação melhor do que a de desaprovar suas orientações pessoais? [86]

Tampouco pode-se vislumbrar a religião [87] como uma base racional para vedar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não se está a propor que comunidades de fé sejam obrigadas a alterar as suas definições de casamento. A questão em apreço é apenas o casamento civil. P.e., existindo a separação entre a Igreja e o Estado, algumas religiões podem proibir o divórcio. Mas divórcio civil ainda é legal.

Ressalte-se que nada disto é para dizer que as atuais definições de casamento não são razoáveis, que o respeito pela tradição é irracional ou que a oposição de algumas religiões ao casamento do mesmo sexo é ilegítimo. Mas é imperioso afirmar que a definição, a tradição e a religião, per se, não constituem bases racionais para alicerçar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Estreitamente relacionado com a religião, mas formalmente distinto dela é o Direito Natural, que segundo agurmentam, está enraizado na natureza tanto divindade, como natureza humana. Um dos nomes mais expoentes dessa corrente, John Finnis, assevera que o casamento é um bem humano intrínseco que a união homoafetiva simplesmente não consegue alcançar. O entendimento dessa corrente é maculado por problemas severos de lógica. Finnis enfatiza que gays e lésbicas não podem ter filhos um do outro. Os casais heterossexuais estéreis ou de idade avançada também não podem. Então porque proteger as relações entre heterossexuais, mas não as relações sexuais entre homossexuais? Obviamente, nenhuma das duas diz respeito a um ato reprodutivo.

Esta é uma pergunta difícil para todos os defensores deste juízo, porque nem todos os heterossexuais possuem capacidade reprodutiva, tanto que existem as técnicas de PMA. E a sugestão de que as pessoas que não possuem a capacidade de ter filhos devem ser impedidos de casamento parece tão cruel que é rechaçada por todos os lados. Desta forma, usar tal argumento como óbice ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é utilizar-se de um duplo standard, um exemplo clássido de "dois pesos e duas medidas" para a mesma situação.

Avançando-se um pouco na matéria, os argumentos mais freqüentes em defesa do reconhecimento do casamento entre casais do mesmo sexo, como já referido, se situam em três órbitas, a saber: a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade em condições de igualdade, o direito à intimidade e o direito à liberdade.

Hodiernamente, o direito a contrair matrimônio, sustenta-se na doutrina, converteu-se em uma exigência dos cidadãos de hoje. [88] Demanda esta que constitui um marco de realização pessoal, que objetiva que aqueles que possuem uma orientação afetivo-sexual por pessoas do mesmo sexo possam desenvolver sua personalidade e seus direitos em condições de igualdade. Note-se que um indivíduo optar ou não por aceder a um instituto é uma questão diferente de ter a opção - como um cidadão livre e igual - de poder casar com a pessoa de sua escolha. [89]

É suficiente uma passada de vistas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, [90] que em seu art. XVI, 1., dispõe que "os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família". Diante de tal dispositivo, algumas dúvidas emergem, a saber: quem seriam todos aqueles que possuem direito a contrair matrimônio? O homem e a mulher? Sim, isto é claro. Mas seria: apenas o homem com a mulher, a mulher com o homem? Ou qualquer deles com mulher ou homem? [91]

Nas palavras de Janet Halley [92], existem quatro formas básicas de argumentar que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é justificado pelo direito a casar. Os quatro direitos assegurados são: o direito a escolher um parceiro conjugal sem a interferência do Estado; o direito de escolher o casamento como forma de um relacionamento íntimo; o direito a ser livre de discriminação com base em sexo ou orientação sexual no acesso ao matrimônio; bem como o direito fundamental do casamento.

Há algum tempo atrás, a hipótese de aceitação do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo poderia ecoar "ao estilo de música futurista", sendo o panorama atual manifestamente distinto, em especial na seara do direito comparado. [93] Note-se que há quem entenda que o caminho trilhado para a aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, parece ser o mesmo traçado para que se atingisse a igualdade entre homem e mulher ou fosse permitido o casamento entre pessoas de raças diferentes. [94] É mister ressaltar que para essa corrente doutrinária, o sexismo, o racismo e a homofobia possuem um fator em comum: as três situações configuram exemplos de "escravatura moral". [95]

Para alguns, tal argumento poderia ser considerado falacioso. Todavia, tal analogia não é desarrazoada. À época da proibição dos casamentos interraciais, os negros (p.e.), não eram proibidos de casar. Só não o podiam fazer com pessoas de raça distinta. [96] Era a denominada doutrina "separated but equal". A mesma lógica se aplica aos homossexuais: tais indivíduos podem se casar, desde que não seja com pessoa do mesmo sexo. Em suma: factualmente não podem se casar, pois não desejam contrair matrimônio com um indivíduo de sexo distinto.

Para além disso, se o casamento for articulado além do "decreto circular" que o restringe a um homem e uma mulher, então o motivo de ser algo privatido dos heterossexuais desaparece. [97] O cerne do contrato público é uma ligação emocional, financeira e psicológica entre duas pessoas; nesse sentido, héteros e homos são iguais. A heterossexualidade seria algo intrínseco do casamento apenas se este fosse entendido como tendo a procriação como um dos seus objetivos, mas essa definição tem sido desde há muito abandonada na sociedade ocidental.

Os direitos civis e os movimentos de libertação da mulher pavimentaram o caminho para a possibilidade de abertura do casamento a casais do mesmo sexo. Em outras palavras, sem a mudança nas concepções sobre raça e gênero arraigadas na sociedade, e as consequentes reformas legais que foram trazidas pela lutas de minorias raciais, e das mulheres para a igualdade, estar discutindo sobre a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo não seria sequer possível.

Há quem sustente que a criação de figuras jurídicas próprias, como as parcerias registradas e as parcerias domésticas seria suficiente para o reconhecimento dos direitos dos homossexuais. Mas note-se que, muitas vezes, os efeitos desses institutos são limitados, se cingindo, via de regra, aos aspectos patrimoniais das relações de afeto. Todavia, a idéia não é de se fazer uma incursão num ultra-conservadorismo fundamentado na manutenção do status a quo, em virtude do "jogo" de distinções interesses versus reconhecimento, o que levaria tão-somente a uma violação dos interesses (patrimoniais) e do reconhecimento (dos homossexuais como entidade familiar fundada no afeto). Se vão existir figuras próprias [98], ótimo, pois podem conviver harmonicamente com o instituto do casamento. Que seja uma opção a mais de organização de vida dos parceiros, não a única. A prerrogativa de escolha que é conferida aos heterossexuais deve ser estendida aos homossexuais: casar ou não, ser uma questão de preferência do casal. É o princípio da liberdade se fazendo presente, traduzido na liberdade de escolha do modelo de regulação jurídica ao qual um vínculo afetivo será submetido.

E mais: a igualdade só vai existir, de fato e de direito, quando ocorrer a abertura do casamento para todos, independentemente da orientação sexual. Destarte, parece ser defensável a idéia de que os homossexuais não desejam a criação de "direitos especiais", mas sim ter acesso a direitos iguais, entre eles, o direito a casarem-se. Complementa-se ainda na doutrina que existe algo inegavelmente estigmatizante sobre os homossexuais serem excluídos do status cultural da palavra "casamento". [99]

Para além disso, quando os homossexuais evidenciam que a proibição ao casamento está a prejudicá-los legalmente, economicamente e emocionalmente, a sociedade é obrigada a explicar a razão pela qual este aspecto particular do casamento - heterossexualidade obrigatória - deve permanecer inalterado, quando tantos outros aspectos mudaram drasticamente. Uma justificação consistente parece inexistir. [100] O que emerge por todos os lados são argumentos débeis e facilmente ultrapassáveis, como os indicados no início do presente tópico.

Ademais, tal permissão traria a mensagem de que casamento homossexual é uma condição desejável, até mesmo nobre para se viver. Claramente, a sociedade transmite uma mensagem de que o relacionamento conjugal deve ser respeitado, por isso, se o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo passarem a ser permitidos, a mensagem seria que essas relações são dignas de respeito. [101]

É fato patente que existe na Constituição Federal a consagração de um direito fundamental ao casamento. A questão que se coloca é a seguinte: por que o matrimônio homossexual não está inserido no âmbito de aplicação deste direito fundamental? Quid faciendum?

3.1 Da inoperância da "teoria da inexistência" no Brasil e da inconstitucionalidade de uma suposta "proibição implícita"

Antes de mais nada, cabe salientar que o Código Civil leva à conclusão, a priori, de que o casamento é instituto exclusivamente reservado a pares heterossexuais, em virtude da locução "homem e mulher" presente em diversos dispositivos, como os artigos. 1.514, 1.517, caput, e 1.565 do referido Diploma.

Entretanto, note-se que se trata de presunção, uma vez que o CC brasileiro não possui uma definição de casamento como sendo a união entre homem e mulher. A Constituição Federal tampouco traz uma definição de casamento ou explicita que a diversidade de sexos é requisito para a existência do mesmo. Limita-se a determinar que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. [102]

Questiona-se: a simples existência dos termos homem e mulher são capazes de apartar os homossexuais da possibilidade de contraírem casamento? Existem algumas correntes sobre a questão: a que entende que o casamento civil está somente, e tão somente, reservado aos casais heterossexuais, sendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, inexistente. [103] Nesta mesma linha de raciocínio, há ainda quem argumente que existe no ordenamento brasileiro uma "vedação implícita" ao casamento homossexual.

Por outro lado, há quem defenda que o casamento civil está restrito aos pares heterossexuais por omissão legislativa e que, sendo essa omissão suprida pela interpretação extensiva da lei ou analogia, o casamento civil estaria aberto aos homossexuais. Há os que apontam uma flagrante inconstitucionalidade dos artigos supra referidos do CC brasileiro, devendo tais normas ser afastadas pelo controle difuso ou pelo controle concentrado de constitucionalidade, oferecendo-se, assim, a possibilidade de os homossexuais contraírem matrimônio. [104] Por fim, há ainda quem defenda a criação de uma figura jurídica própria, que não se confunda com o casamento, união estável ou concubinato. [105]

Boa parte da doutrina brasileira é homogênea relativamente à indicação das três hipóteses de "inexistência de casamento", a saber: a falta de autoridade celebrante, a ausência de consentimento das partes e a falta de diversidade de sexo dos nubentes. Esta última questão é a que possui basilar importância para o presente estudo.

O art. 1.514 do CC brasileiro dispõe que "o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer o vínculo conjugal, e o juiz os declara casados".

O fundamento da doutrina e jurisprudência majoritária, que entende "inexistir" o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, reside, primordialmente, na leitura do dispositivo supracitado. Entende-se que, em virtude de ausência de referência expressa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a diversidade de sexos constitui uma "condição de existência" no casamento civil. Note-se, entretanto, que mesmo os defensores da "teoria da inexistência" confirmam que não se encontra, no ordenamento brasileiro, texto legal que consagre esse juízo [106], o que deveria levar ao apartamento automático desse entendimento por patente falta de fundamento normativo que a legitime.

Todavia, pode-se alegar ainda, falaciosamente, que os pressupostos fáticos para a existência do casamento (entre eles, a dualidade de sexos), seriam tão manifestos que dispensariam qualquer referência legislativa. Tal entendimento não deve prosperar, por ferir os princípios da legalidade e da segurança jurídica. [107] Para além disso, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é proibido explícita ou implicitamente – como se verá adiante – pelo ordenamento brasileiro; assim, no desejo que tal ato jurídico não produza efeitos, o mesmo deverá ser inserido em alguma hipótese de nulidade ou anulabilidade, sob pena de não ter eficácia jurídica o afastamento dos efeitos jurídicos dele oriundos.

A teoria do casamento inexistente, no Brasil, terminou por ser arquitetada em virtude da omissão legislativa e da recusa em se conceder validade ao casamento homossexual, não obstante a inexistência de proibição para tal ato na lei, ou de um dispositivo legislativo que indique a inexistência do matrimônio, como é o caso de Portugal. Ou seja, em território brasileiro trata-se de uma construção meramente doutrinária, sem respaldo legal.

O argumento da dualidade de sexos como requisito essencial para o casamento se tornou ineficaz a partir do momento em que outros ordenamentos passaram a admitir o casamento entre duas pessoas, independentemente da sua orientação sexual. Ora, a reprodução deixou de ser finalidade do casamento e a necessidade de dualidade de sexo não está na lei brasileira. Na opinião de Maria Berenice Dias, tal exemplo até poderia servir há tempos atrás, mas hodiernamente se tornou "imprestável para tal fim". [108]

Ultrapassada a "teoria da inexistência", contrariamente ao casamento homossexual, argumenta-se ainda que um par do mesmo sexo apenas poderia contrair matrimônio se a legislação fosse expressa nesse sentido, o que não ocorre em virtude da expressão "o homem e a mulher", presente no Diploma Civil brasileiro. Diante de tal fato, vislumbra-se, portanto, uma vedação implícita, em virtude, novamente, da redação do art. 1.514 do CC, entendimento que contraria o disposto no art. 5º, II da Carta Magna brasileira. [109]

A doutrina favorável ao reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, no Brasil, fundamenta-se na lógica de que a expressão "o homem e a mulher" não possuiria o condão de impedir o casamento entre um par do mesmo sexo. Afirma-se que os impedimentos matrimoniais são as proibições expressamente elencadas pelo CC, no art. 1.521, ou em outros dispositivos esparsos que determinam a anulabilidade ou nulidade do casamento civil. Assevera-se que a referência a homem e mulher indica apenas a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso se traduza em proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, que deveria ser regulado por meio da analogia ou interpretação extensiva. [110]

É de se reafirmar que a formulação doutrinária e jurisprudencial acerca da diversidade de sexos como pressuposto do casamento, é equivocada. Como bem adverte Fachin, "a matéria desborda dessa seara e não pode ser vista à luz da conhecida teoria da inexistência matrimonial, na qual fortes são os preconceitos e a rigidez". [111] Tal pressuposto só teria razão de ser, se a capacidade procriativa do casal fosse requisito para o casamento, o que não é, reafirme-se novamente.

Como já mencionado anteriormente, em virtude da máxima constitucional da igualdade, a lei que pretenda instituir um tratamento jurídico diferenciado a determinado grupo de pessoas, deve possuir uma profunda fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação sustentada. Desta forma, a discriminação não poderá ser gratuita ou fortuita.

Ademais, cabe invocar novamente o princípio da liberdade, que, como já dizia Pimenta Bueno, no séc. XIX, é a regra geral, o princípio absoluto, o direito positivo e não a exceção. A proibição ou restrição são exceções e, por isso mesmo, necessitam serem provadas, "achar-se expressamente pronunciadas pela lei, e não por modo duvidoso, sim formal, positivo; tudo o mais é sofisma". [112]

Para além do juízo acima exposto, é de se reafirmar que, em virtude do teor do art. 5º, II da Carta Magna, não existem "proibições implícitas" no direito brasileiro, uma vez que o já citado dispositivo reza que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". No caso dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a legislação limitou-se a regulamentar um fato (casamento heterossexual), deixando outro sem regulação específica, tampouco sem vedação (casamento homossexual). Entende-se, portanto, que a tal "proibição implícita" inexiste, se tratando tão-somente de uma lacuna na lei, devendo-se aplicar o art. 4º da LICC. [113]

Assim, a doutrina favorável ao reconhecimento do casamento de pessoas no mesmo sexo no Brasil, termina por oferecer duas saídas: aplicação extensiva do art. 1.514 do CC brasileiro, ou, no caso de entendimento de que não existem duas situações idênticas (um par com dualidade de sexos e outro par com identidade de sexos), deverá ser aplicado analogicamente o dispositivo supracitado, uma vez que, as situações são idênticas ao menos na essência, uma vez que o elemento formador de ambas as uniões é um só: o afeto. [114]

Destarte, é imperioso reafirmar a inexistência no sistema jurídico brasileiro de qualquer proibição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. O que existe é exclusivamente uma lacuna que, como já foi referido, pode ser suprida pela interpretação extensiva e a analogia, sendo possível o reconhecimento do casamento homossexual, sem qualquer afronta ao ordenamento.

Seguindo essa idéia da possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, no ano de 2005 foi intentada Ação Civil Pública pelo MP Federal, com o intuito do reconhecimento do casamento civil homossexual. Na exordial [115], o Procurador da República, Dr. João Gilberto Gonçalves Filho, trouxe à baila alguns argumentos já referidos no presente estudo, tais como: a proibição da discriminação por orientação sexual, além do respeito à dignidade da pessoa humana.

O douto Procurador assevera que a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo nada mais é do que um dogma absolutamente enraizado na tradição cultural brasileira, qual seja, o de que o homem só pode casar-se com a mulher e vice-versa. Afirma ainda que, uma leitura isolada e equivocada dos §§ 3° e 5° do artigo 226 da CF e dos artigos 1.565 e 1.517 do Diploma Civil poderiam levar à contestável compreensão de que o casamento só pode ser mesmo realizado entre pessoas do mesmo sexo. Acrescenta que os dispositivos supra elencados deverão ser lidos num confronto sistemático com vários outros, também da própria Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, para que da análise conjunta de todos eles possa ser extraída a norma de direito aplicável.

Assevera ainda o membro do Parquet Federal que o direito a receber do Estado brasileiro o status jurídicode pessoa casada é uma materialização dos direitos da personalidade. O fato é que, na atualidade, heterossexuais podem casar entre si, fazendo jusa esse direito da cidadania, enquanto homossexuais não podem e lhes sendo esse direito negado. Deste modo, é indubitável que o critério para conceder a uns o direito ao casamento, negando-o a outros, é a orientação sexual dos indivíduos. Nesta situação reside patente afronta ao princípio da igualdade: o Estado Brasileiro trata os cidadãos de forma diversa sem que o critério de discriminação esteja sustentado numa razão lógica inexoravelmente relevante. [116]

Na referida ação são levantadas algumas questões importantes: que mal faz à sociedade o casamento de pessoas homossexuais? Qual o bem jurídico tutelado que faria justificar a negativa estatal ao casamento de homossexuais? Pode-se dizer que a permissão ao casamento homossexual em nada afronta a Carta Magna ou o ordenamento brasileiro.

Acrescenta ainda o Procurador que "se é objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, as pessoas devem ter liberdade para escolher seus parceiros sexuais sem que essa escolha implique injustas restrições de tratamento por parte do aparato administrativo estatal. A solidariedade pressupõe acolher e dar apoio às escolhas individuais, abrindo oportunidade a qualquer pessoa para que possa concretizar o seu direito constitucional de ser feliz, mormente quando essas escolhas não atrapalham em nada os direitos individuais das demais ou os direitos coletivos em geral, como é o caso do casamento de homossexuais". [117]

Entre os pedidos da referida ação, o autor demandou a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, com intuito de possibilitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo até o trânsito em julgado da ação. Entretanto, por não reconhecer existir periculum in mora na situação em tela, o Magistrado indeferiu a antecipação de tutela. Resta apenas esperar a sentença do caso e os eventuais (e possíveis) acórdãos que vierem posteriormente.

Note-se que a ação ainda aguarda julgamento. Entretanto, em outros processos já é possível observar manifestações de magistrados no sentido de entender ser possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo no ordenamento brasileiro. Em duas decisões, o Juiz Roberto Arriada Lorea, da 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre – RS, asseverou a possibilidade do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo no ordenamento jurídico brasileiro atual.

No primeiro caso [118], que dizia respeito à dissolução de união estável homoafetiva, o magistrado se manifestou no sentido de ser possível o reconhecimento não só da união estável, mas do casamento homossexual, nos moldes da legislação atual. [119] No segundo caso [120], o Magistrado foi ainda além, afirmando que casamento civil está disponível para todos, independentemente de orientação sexual, acrescentando que "o casamento civil é um direito humano - não um privilégio heterossexual". Ressalta, ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro veda qualquer forma de discriminação. [121]

Como bem explicita o ilustre Magistrado, sob a égide dos princípios estabelecidos na Carta Magna brasileira, não há necessidade de se justificar o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao revés, a negativa de acesso ao instituto jurídico do casamento às pessoas homossexuais é que deveria ser justificada. Na sua opinião, não há necessidade de "estender" o direito ao casamento aos homossexuais, pois esse direito já existe, [122] no seu entendimento. Para tanto, basta que haja um pedido formal de casamento [123] entre duas pessoas do mesmo sexo. [124]

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Marianna. A responsabilidade estatal pelo reconhecimento e regulação das uniões e do casamento homoafetivo.: O atendimento aos mandamentos constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2758, 19 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18305. Acesso em: 20 abr. 2024.

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