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Objetivo histórico das sociedades

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5. Legislação brasileira atual como evidência do objetivo lucrativo-distributivo das sociedades

A legislação brasileira atual que dispõe materialmente sobre sociedades é composta basicamente pelo Código Civil [13] e pela Lei das Sociedades por Ações, o primeiro regulando todos os tipos societários, inclusive os por ações no que a legislação específica for omissa, e a segunda regulando as sociedades por ações, aplicando-se por analogia aos demais tipos nas omissões do Código Civil, como concluíram as jornadas I [14] e III [15] do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, respectivamente, nos enunciados 70 e 231, entre outros.

Desses diplomas diversas disposições guardam pertinência com o tema abordado, sendo interessante notar que algumas dessas transparecem a distribuição de resultados aos sócios como objetivo das sociedades.

Nesse sentido, ganham especial destaque os artigos 981 do Código Civil e 202 da Lei das Sociedades por Ações, o primeiro dispondo que o contrato de sociedade é aquele em que as pessoas se obrigam a contribuir para uma atividade comum e partilhar os resultados, e o segundo assegurando dividendos mínimos obrigatórios aos acionistas de sociedades anônimas.

Pela posição em que consta o artigo 981 na estrutura do Código Civil não se pode olvidar o fato de que o legislador deu-lhe uma extensão geral, aplicável a todos os tipos de sociedades, localizando a norma dentre as disposições gerais sobre as sociedades.

Certamente não andou bem o legislador ao tratar a matéria dessa forma, dispondo que a relação entre sócios seria de uma forma geral de natureza contratual, pois a natureza jurídica do vínculo estabelecido entre sócios é debatida indefinidamente pelos estudiosos do direito comercial, propiciando uma das mais controvertidas discussões acadêmica entre contratualistas e institucionalistas, havendo ainda outras tantas correntes que buscam explicar o fenômeno.

Contudo, deixando de lado essa crítica, verifica-se que o legislador bem sintetizou o fim das sociedades, que não consiste apenas no lucro social, mas na retribuição ao sócio pelo investimento feito.

Voltando ao assunto da natureza jurídica do vínculo societário, é de se observar que hodiernamente parte da doutrina aponta no sentido de que o vínculo pode ser realmente de duas espécies, a contratual e a institucional, sendo institucional o vínculo entre acionistas e contratual os demais tipos de vínculos societários, de forma que institucional seria apenas o vínculo estabelecido em sociedades por ações.

Com tal ponderação e ainda levando em conta o disposto nos artigos 1.088 à 1.092 do Código Civil, se poderia argumentar que o artigo 981 não se aplica às sociedades por ações, haja vista que essas são regidas primordialmente por legislação especial e não originam vínculos contratuais entre os sócios, mas vínculos institucionais.

Nem por isso, contudo, estariam as sociedades por ações desvinculadas do objetivo comum de remunerar os sócios pelos seus préstimos ao empreendimento coletivo, sendo, pelo contrário, ainda mais latente esse objetivo nas sociedades anônimas, tipo societário que garante um dividendo mínimo obrigatório ao sócio, que poderá deixar de recebê-lo apenas em casos específicos, além de outras inúmeras garantias de remuneração que não estão previstas no trato geral do direito societário brasileiro.

Particularmente quanto às sociedades anônimas, vale registrar que, o estágio atual de desenvolvimento do mercado de valores mobiliários torna extremamente atrativa a condição de sócio por parte de investidores que não buscam vantagem primordialmente na distribuição ordinária dos lucros sociais, mas no possível ganho de capital em futura alienação das ações, o que não desnatura a finalidade distributiva da sociedade, mas apenas a finalidade do investimento de alguns acionistas, sendo certo que o controlador, acionista cuja vontade prepondera, exteriorizando-se, no direito brasileiro, como a vontade da própria pessoa jurídica, normalmente, tem na distribuição de resultados seu principal objetivo.

Ademais, a posição do acionista especulador, e seu relativo desprezo à distribuição do resultado aos sócios, não destoa do que se destaca no presente como finalidade da sociedade, pois ao alienar sua participação com ganho de capital o especulador também obtém um lucro individual por razão, ao menos em tese, do sucesso do empreendimento comum, posto que o ganho na alienação é economicamente possível apenas se a sociedade está ascendendo na perspectiva do adquirente, de modo que o lucro social, ou ao menos a sua perspectiva, acresce ao patrimônio do especulador.

Outrossim, vale salientar que o objetivo das sociedades, que consiste sempre no lucro, não se confunde com o objeto das mesmas, pois o último consiste na atividade em que se lança o esforço conjunto, através do qual se almeja alcançar o primeiro. Expõe a questão expressamente tratando da distributividade ínsita às sociedades o Doutor Erasmo Valadão [16]:

Com efeito, a temática do moderno direito societário abrange o estudo das associações em sentido amplo (CC, art. 44, §2º), isto é, das associações em sentido estrito e das sociedades. […] Em sentido amplo, o fim comum abrange o escopo-meio (ou objeto) e o escopo-fim (ou objetivo). Na realidade, o escopo-meio ou objeto (empresa, no caso da sociedade empresária) é a atividade a qual a organização societária se dedica, servindo, entre outras coisas, para distinguir as sociedades empresárias das sociedades não-empresárias (CC, art. 982, caput). Por outro lado, o escopo-fim ou finalidade é elemento que serve para distinguir as sociedades das associações em sentido estrito: nas sociedades a finalidade é a partilha dos resultados da atividade social entre seus membros (CC, art. 981), algo que não pode jamais suceder na associação (CC, atr. 53), sob pena de desnaturá-la em sociedade.

Salienta-se, neste diapasão, que a substancial diferença estabelecida pela Lei entre sociedades e associações em sentido estrito não é a lucratividade da pessoa jurídica considerada de per si, mas apenas o caráter distributivo, podendo a associação, assim como as demais pessoas jurídicas de direito privado previstas no artigo 44 do Código Civil, apresentar resultados positivos em seus exercícios, "lucros sociais", sem que isso resulte em qualquer irregularidade, desde que nenhum dos membros aproprie-se desse resultado. Afinal, uma pessoa jurídica, mesmo sem a finalidade lucrativa, deve sempre ter como custear suas próprias despesas, sendo coerente que acumule riquezas para esse fim em uma economia capitalista.

Vale nota, ainda, a distinção entre sociedades empresárias e não-empresárias, que nada tem haver com a finalidade lucrativa e distributiva da conjugação de recursos, comum em ambas, consistindo a diferença no escopo-meio, objeto social, que nas sociedades empresárias confunde-se com o exercício de uma empresa, e nas sociedades não-empresárias coincide com o exercício de atividade intelectual, conforme o artigo 966, parágrafo único, do Código Civil.

Bem assim, ressalta-se a importância que o ordenamento jurídico pátrio atribui à função social da empresa, que deverá sempre prevalecer nas oportunidades em que colidir com a finalidade lucrativa da constituição de uma sociedade, sem que isso importe na desvirtuação do seu primordial objetivo, distribuição do lucro social, que apenas terá detrimento em favor da função, do bem comum, da paz social, entre outros objetivos maiores de todo o arcabouço normativo nacional, que devem restringir não apenas os direitos originados em uma sociedade empresária, mas todo e qualquer direito subjetivo.

Com efeito, apresenta-se a sociedade prevista na legislação brasileira atual como um meio de obtenção de lucros aos que nela investem, viabilizando a união de esforços e recursos de pessoas diversas, sendo certo que o instituto decorre da evolução histórica da burguesia, servindo aos interesses desta classe desde seu surgimento na idade média, passada a fase embrionária da antiguidade, alcançando relevo na modernidade e substancial importância na contemporaneidade, tempo em que a economia sequer pode ser imaginada desvinculada do instituto.


6. A problemática do interesse social no debate contratualismo "vs." institucionalismo: um falso problema para a descoberta do objetivo das sociedades

Com a evolução das sociedades por ações estudiosos de todos os países capitalistas passaram a tentar explicar o vínculo existente entre os sócios e o fenômeno societário, surgindo, como ja citado, um intenso debate doutrinário entre as correntes contratualista italiana e institucionalista alemã, que influenciam as legislações societárias por todo o mundo.

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Ambas as correntes buscam explicar e solucionar a questão do interesse social e, assim, os conflitos de interesse existentes nas sociedades, mas o contratualismo italiano clássico contrapõe-se contundentemente ao intitucionalismo clássico alemão, o primeiro buscando fazer sempre prevalescer o interesse dos sócios e o segundo buscando fazer prevalescer o interesse de uma administração social neutra.

O institucionalismo alemão, segundo o Doutor Calixto Salomão Filho [17], teve seu inicio com a doutrina de W. Rathenau após a primeira guerra mundial, quando o país enfrentava uma severa crise financeira, o que levou o referido teórico a ver nas grandes empresas nacionais uma solução para o problema macroeconômico, solução essa que para ser efetivamente implementada precisava resguardar a atividade econômica da sociedade do interesse dos sócios, dando autonomia e soberania à administração, que, na teoria, poderia expressar o interesse autônomo da própria sociedade.

Já o contratualismo italiano buscava justamente refutar essa visão, prevalescendo nessa corrente sempre as deliberações da assembléia em face do órgão de administração. Essa corrente, na lição do Professor Calixto Salomão, tinha seu expoente em P. G. Jaeger, mas sua representação mais sugestiva pode ser encontrada na doutrina de A. Asquini [18], que em seu artigo "I batteli del Reno" apresenta a famosa frase atribuída a um administrador da empresa alemã Nordeutscher Llyod, "il quale avrebbe dichiarato in forma polemica che scopo della sua societá era non distribuire untili agli azionisti, ma di fase andare i batteli sul Reno (o sui mari)".

Diante dessa contraposição e da idéia adotada no presente trabalho no sentido de que o objetivo da sociedade é retribuir aos sócios, aos leitores menos atentos pode parecer o presente artigo fundamentado na teoria contratualista, o que não é o caso, pois o debate acerca do qual se degladeiam as teorias não envolve a finalidade das sociedades, mas o interesse social, ou seja, o interesse da sociedade desvinculado do interesse de seus membros como solução para um conflito entre os interesses desses.

Em ambas as teorias a finalidade das sociedades permanece a mesma, retribuir aos sócios pelo investimento através da distribuição de lucros, destoando as teorias apenas quanto à melhor forma de resguardar o cumprimento da função social da empresa e a sua preservação, em face da relevante relação de tais valores para a macroeconomia.

Nesse contexto, o institucionalismo entende que os administradores são os mais aptos para tanto e o contratualismo deixa a cargo dos sócios essa responsabilidade, enquanto novas teorias, como a do contrato organização, passam a citar a colaboração entre os órgãos internos e demais interesses externos, ex. credores e órgãos públicos, como a melhor alternativa para o resguardo do interesse social, ou seja, para o cumprimento da função social da empresa e para a sua preservação.

Como já registrado anteriormente, a função social da empresa não pode ser confundida com sua finalidade, sendo a função social da empresa algo maior, que diz respeito a toda a coletividade de uma civilização, à própria macroeconomia, devendo a finalidade lucrativa dos sócios se submeter á função social da empresa, busca maior do interesse social, que deve almajar chegar ao fim - distribuir lucros - através dos meios idôneos para tanto - observando a função social da empresa e as demais regras cogentes de direito.

Entender o institucionalismo como uma corrente que defenda não ser objetivo da sociedade a distribuição de lucros é acompanhar os mais extremados argumentos desrazoados do contratualismo clássico, em que os defensores buscam fazer sua teoria prevalecer difamando a teoria contrária, apontando o institucionalismo como um sistema em que os administradores tenham poder suficiente para deixar de distribuir lucro aos sócios.

Se assim fosse certamente a Alemanha teria percebido uma grande recessão antes da segunda guerra mundial, quando o institucionalismo clássico foi positivado através do Aktiengesetz 1937, posto que os capitalistas daquele país deixariam de investir nas empresas, já que não teriam mais garantia de retorno, mas o que se observou naquela economia foi justamente o contrário, um grande crescimento capaz de financiar a maior guerra já vista pela humanidade.


Notas

  1. FERREIRA, Luís Pinto. Teoria geral do estado. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1975. t. 1. p. 91.
  2. CARVALHO, Armando José da Costa. Direito, Primeiras Informações. ed. rev. e atua. de acordo com o novo Código Civil. Recife: s/e, 2005. p. 13.
  3. VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 301. v. 1.
  4. VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 224-227. v. 1.
  5. BRASIL. Lei n. 6.404,15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 dez. 1976. Seção 1, p. 21.
  6. LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: pressupostos, elaboração e modificações. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 24. v. 1.
  7. LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: pressupostos, elaboração e modificações. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 25-29. v. 1.
  8. REQUIÃO, Rubens Edmundo. Curso de direito comercial. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 3. v. 2.
  9. BAPTISTA, Silvio Neves. Ensaios de direito civil. São Paulo: Método, 2006. p. 49.
  10. REQUIÃO, Rubens Edmundo. Curso de direito comercial. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 4. v. 2.
  11. COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 377. v. 2.
  12. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Do direito do acionista ao dividendo. São Paulo: Obelisco, 1969, p. 257.
  13. BRASIL. Lei 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. p. 1.
  14. ROSADO, Ruy (org.). I Jornada de Direito Civil. Disponível em http://www2.cjf.jus.br/portal/publicacao/engine.wsp?tmp.area=115. Acesso em 19 de set. de 2010.
  15. III Jornada de Direito Civil. Ruy Rosado (org.). Brasília: CJF, 2004. 507 p. ISBN 85-85572-80-9.
  16. FRANÇA, Erasmo Valadão Azevedo e Novaes. "Affectio Societatis": um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de "Fim Social". In: FRANÇA, Erasmo Valadão Azevedo e Novaes. Temas de direito societário, falimentar e teoria da empresa. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 43.
  17. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 3 ed. rev e amp. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 25.
  18. A. Asquini, "I battelli del Reno", in Rivista delle societá, 1959, p .617.
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Sobre o autor
Bruno Caraciolo Ferreira Albuquerque

Graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Bruno Caraciolo Ferreira. Objetivo histórico das sociedades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2759, 20 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18308. Acesso em: 20 abr. 2024.

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