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Limitar a responsabilidade do empresário individual é juridicamente possível?

Análise crítica da limitação da responsabilidade do empresário individual mediante separação patrimonial

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25/01/2011 às 08:17
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4 – SEPARAÇÃO PATRIMONIAL DE FATO

4.1 – Considerações iniciais

O objeto de nosso exame neste instante é responder a questão "a" do item 3.6 retro, para saber se o patrimônio do empresário singular pode ser dividido em dois, o que resultaria num patrimônio especial pertinente a sua atividade empresarial e num segundo, o patrimônio pessoal, sem que haja contato entre ambos.

Esse, porém, tema será analisado sob dois focos. O primeiro foco diz respeito a uma análise econômica da divisão patrimonial, para demonstrar que de fato a sua divisibilidade é admissível. E o segundo foco é afeto à elaboração de um substrato jurídico ao que de fato já existe.

Apesar de ambos os prismas se referirem ao mesmo objeto, iremos analisá-los apartadamente, pois cada um possui peculiaridades próprias.

Neste ínterim, tendo por escopo fazermos o exame do primeiro foco, abordaremos a teoria do jurista italiano, Alberto Asquini, denominada de "teoria poliédrica da empresa", porque nela é estudado, entre outros temas, o fenômeno da separação patrimonial no exercício da atividade empresarial.

Iremos analisar, portanto, essa teoria.

4.2 – Precedentes doutrinários quanto ao conceito jurídico da empresa

A formulação dessa teoria, pelo citado jurista, teve por pressuposto as grandes divergências doutrinárias ocorridas no seu tempo quanto ao conceito jurídico do instituto da empresa.

Verificaremos alguns exemplos de tais divergências para melhor entendermos essa teoria.

Foi com a implementação do Código Comercial Francês de 1804 que os juristas da época iniciaram o questionamento quanto ao conceito jurídico da empresa, pois no artigo 632 daquele diploma legal eram enumerados desde os atos de comércio até as empresas que as praticavam, porém, não existia um conceito legal da empresa. 52

Os doutrinadores franceses não obtinham muito sucesso ao definir a empresa, porque, geralmente, o conceito de empresa era desenvolvido em torno da ideia de atos de comércio, em que cada um possui aspectos particulares e outros similares, mas nunca há uma igualdade, o que permite conceitos diferentes. 53

Mesmo assim, muitas iniciativas se desenvolveram no sentido de definir a empresa enquanto instituto jurídico.

Na mesma Itália, outro jurista, Vivante, conceituou a empresa como sendo"[...] um organismo econômico que sob o seu próprio risco recolhe e põe em atuação sistematicamente os elementos necessários para obter um produto destinado à troca." 54

Já para o professor Alfredo Rocco, após analisar as várias espécies de empresas elencadas no artigo 3º do Código Civil Italiano, entende que o elemento "organização do trabalho de outrem" é o que melhor define o que seja empresa, devido estar presente em todas aquelas espécies. 55

Em Portugal, o já citado Antonio de Arruda Ferrer Correia, "pelo menos num certo momento de seu pensamento, equiparou a empresa ao estabelecimento comercial [...]". 56

No Brasil, em 1933, J. X. Carvalho de Mendonça definiu a empresa como sendo, ipsis littris:

"[...] a organização technico-economica que se propõe a produzir, mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresário, isto é, daquele que reúne, coordena e dirige esses elementos sob a sua responsabilidade". 57

Todas as definições acima expostas, ao que nos parece, não são convergentes. Uns se referem a "organismo econômico" ou "organização do trabalho de outrem", como sendo os elementos definidores do fenômeno chamado empresa, outros remontam a termos distintos, como "a organização technico-economica que se propõe a produzir" ou equiparam a mesma ao "estabelecimento".

Essas, então, são algumas das divergências que precederam e que fomentaram a formulação da teoria poliédrica da empresa.

4.3 – Aspectos relevantes dos precedentes doutrinários e a teoria poliédrica da empresa

Examinamos os precedentes doutrinários tendentes à conceituação da empresa, no entanto, apesar de existir muita divergência, podemos, mediante minuciosa atenção, abstrair do conteúdo deles algumas peculiaridades relevantes, que são:

a)os doutrinadores citados não se utilizam de institutos jurídicos para definir a empresa;

b) mas todos fazem uso de conceitos puramente econômicos para a realização desse fim.

Esses dois aspectos estão em consonância com a constatação de que a empresa não é um fenômeno jurídico, mas econômico e, por conseguinte, a inexistência de elementos jurídicos para conceituá-la é uma conclusão necessária.

Sylvio Marcondes Machado elucida melancolicamente a mesma constatação, ipsis litteris:

"E de concluir-se pela inexistência de componentes jurídicos que, combinados aos dos econômicos, formem um conceito genérico de empresa; ou, considera a constância do substrato econômico, pela inexistência de um conceito de empresa como categoria jurídica". 58

A empresa, portanto, é um fenômeno econômico.

Entretanto, essa conclusão não é a única, outro aspecto relevante é que esse fenômeno é complexo ou multifacetado.

Quanto a esse aspecto Alberto Asquini ensina que, ipsis litteris:

"O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado. Esta é a razão da falta de definição legislativa; é esta, ao menos em parte, a razão da falta de encontro das diversas opiniões até agora manifestada na doutrina. Um é o conceito de empresa, como fenômeno econômico; diversas as noções jurídicas relativas aos diversos aspectos do fenômeno econômico". 59

Assim, não é possível e admissível um conceito jurídico amplo de empresa, porque sempre lhe faltará algo.

4.4 – Teoria poliédrica da empresa

A conclusão de que a empresa é um instituto das ciências econômicas e que possui múltiplas facetas é o que possibilitou Alberto Asquini criar a teoria poliédrica da empresa.

Essa teoria consiste no conjunto de constatações que tendem a individualizar cada aspecto econômico da empresa.

A empresa, sob seu aspecto econômico, possui no mínimo quatro faces, que são: a subjetiva, relativa ao empresário; a funcional, pertinente à empresa num sentido estrito; a patrimonial, correlata ao estabelecimento; e, por último, a corporativa, que caracteriza a empresa como instituição.

Segundo Alberto Asquini, a primeira face, a subjetiva, emerge do próprio artigo 2.082 do Código Civil Italiano, no qual está expresso que é "[...]empresário quem exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada, tendo por fim a produção ou a troca de serviços". 60

Quanto ao perfil funcional, ele entende que a empresa "aparece como aquela força em movimento que é a atividade empresarial dirigida para um determinado escopo". 61

O perfil patrimonial se erige no momento do exercício da atividade empreendedora, o que possibilita "a formação de um complexo de relações jurídicas", que uma vez expressado na seara patrimonial, "dá lugar a um patrimônio especial distinto para o seu fim, do remanescente patrimônio do empresário [...]". 62

E o corporativo é a análise da empresa como instituição, ou seja, a união de empresário e seus empregados e colaboradores.

4.5 – Aspectos relevantes à pesquisa

O exame da teoria poliédrica da empresa, quanto ao perfil instrumental, nos possibilita depreender que, na medida em que o empresário exerce a sua atividade econômica, surge um patrimônio sui generis em relação ao seu patrimônio particular.

Essa é uma conclusão que deflui da analise dessa teoria, porém, devemos verificar se ela é realmente verdadeira.

4.6 – Análise do patrimônio separado sob a ótica econômica

Toda pessoa física que se predispõe a exercer a atividade empresarial deve, de imediato, reunir os meios necessários para tal fim, angariando e organizando um conjunto de bens que possam dar base ao empreendimento.

Esse conjunto de bens, recursos e valores destinados ao exercício da atividade empresarial é denominado de estabelecimento empresarial.

Sob o prisma econômico, a formação do estabelecimento empresarial depende da conjugação de três elementos básicos, que são: o capital, o trabalho e a organização.

Oscar Barreto Filho ensina que para a consecução do objetivo econômico é indispensável, inicialmente, a aplicação de dinheiro (capital) na aquisição de bens atinentes ao exercício da atividade econômica (máquinas, matérias-primas, mercadorias e etc), mas esclarece também que isso não é suficiente, porque se não existir a conjugação de um elemento dinâmico, o trabalho, toda essa operação não se efetiva. 63

O trabalho é o elemento central entre aqueles que formam o estabelecimento, pois é o que possibilita, efetivamente, a produção de bens e serviços, ou seja, a mão-de-obra contratada pelo empresário manuseia e se utiliza dos bens que formam o estabelecimento comercial tendo por fito produzir bens ou prestar serviços.

O citado autor acrescenta, ainda, que os bens e os serviços são conjugados em razão do fim colimado, e daí surge, por consequência, o elemento estrutural (a organização), porque não basta "a coexistência desordenada de fatores de produção em uma quantidade qualquer; é preciso que os diversos elementos se encontrem em certa proporção, consoante a sua finalidade". 64

Visto isso, devemos nos atentar que o exame do estabelecimento do empresário singular permite constatar algumas peculiaridades que o difere do patrimônio pessoal do mesmo.

A primeira diz respeito à característica do estabelecimento empresarial ser um todo muito valorizado e que, por conseqüência, adquire autonomia em face do patrimônio pessoal do empresário.

Um exemplo são as marcas e patentes de determinadas empresas que são bens imateriais e que podem adquirir valores expressivos no mercado e se tornarem ícones de referencia para toda e qualquer pessoa.

Muitos empresários pagam caro para a aquisição do direito de uso, mediante contrato de franquia, dessas marcas e patentes (artigo 2º da Lei nº 8.955, de 15 de dezembro de 1994). 65

Esse exemplo nos demonstra que o estabelecimento pode ter mais valor do que o resto do patrimônio pessoal do empresário e, por via reflexa, ser considerado uma unidade distinta e autônoma.

Outra peculiaridade se refere ao fim a que o estabelecimento comercial está destinado e que o distingue visivelmente.

O jurista Geraldo Magela Leite explica que o estabelecimento comercial é um todo ou um complexo formado por bens materiais, imateriais ou de relações jurídicas, e que é voltado para um determinado fim, a realização do comércio. E sob esse aspecto entende que há uma similitude entre ele e o patrimônio separado, pois tanto um como o outro tem uma característica singular, a especialidade. Característica essa que faz com que o próprio estabelecimento não se confunda com os de mais direitos patrimoniais do mesmo sujeito e que obriga ao legislador a dar-lhe tratamento especifico. 66

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A terceira peculiaridade é atinente à administração desses complexos de bens, pois, por muitas vezes, o estabelecimento é administrado separadamente. Um profissional qualificado pode ser contratado para geri-lo, ou mesmo o empresário o administra, mas tanto um como o outro o administram de forma autônoma do patrimônio não-empresarial mediante a discriminação dos bens que o formam e a criação de um balanço contábil próprio, entre outros.

Tendo em vista esses aspectos, podemos concluir que há de fato, e não juridicamente, uma linha tênue que separa o patrimônio particular e o patrimônio empresarial.

Alberto Asquini também analisou esse aspecto e ensina que, ipsis litteris:

"Tal patrimônio especial do empresário tem sido portanto, particularmente, estudado pela doutrina frente as seguintes considerações: que se trata de um patrimônio resultante de um complexo de relações jurídicas heterogêneos (reais, obrigacionais, ativas ou passivas) tendo objetos heterogêneos (bens materiais. Imóveis, móveis, bens imateriais, serviços); que o conteúdo de tal patrimônio especial é separado de tal maneira que nas relações que o regulam e nas quais não atua a lei, (como nos casos de gestão compulsória), mas a vontade privada (gestão voluntária, transferência etc.), esta pode abranger ou restringir o conteúdo de tal patrimônio discricionariamente (patrimônio bruto, patrimônio liquido dos débitos ou de alguns débitos etc.); que, enfim a característica eminente de tal patrimônio é a de ser resultante de um complexo de relações organizadas por uma força em movimento – a atividade do empresário – que tem o poder de desmembrar-se da pessoa de empresário e adquirir por si mesma um valor econômico (organização, aviamento); assim, tal patrimônio surge como uma entidade dinâmica, e não estática. A este patrimônio é dado o nome de estabelecimento concebido como universitas iurium". 67

Apesar disso, para fins de responsabilidade, tal separação patrimonial não existe, porque o empresário individual estará sempre sujeito ao regime jurídico constante do artigo 591 do Código de Processo Civil 68, respondendo com seus bens indiscriminadamente. 69 Mas mesmo não se reconhecendo essa separação patrimonial para fins de responsabilização, o nosso ordenamento jurídico institui um regime jurídico que dá tratamento ao estabelecimento do empresário singular como se fosse um patrimônio separado.

No artigo 1.143 do Código Civil está expresso que o estabelecimento pode ser "objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza".

Com tal tratamento, o estabelecimento é considerado uma universalidade de fato, que é um complexo de direitos e deveres reunidos e considerados como um todo para uma destinação especifica (artigo 90 do Código Civil).

Segundo o regramento exposto no artigo acima mencionado, o empresário pode desagregar todos os bens, direitos e deveres atinentes a sua atividade econômica de seu patrimônio, sem considerar os demais bens pessoais que o formam, tendo por fito alienar essa massa patrimonial mediante o trespasse.

Ademais, o mesmo diploma legal estabelece que o empresário singular, no exercício de sua atividade, deve usar um instrumento denominado de Diário, que é um livro no qual escriturará com individuação, clareza e caracterização, dia a dia, por escrita direta ou reprodução, todas as operações relativas ao exercício da empresa e, ainda, lançará nele o balanço patrimonial e o de resultado econômico, devendo ambos ser assinados por técnico contábil legalmente habilitado e pelo próprio empresário (artigo 1.184 do Código Civil e § 2º do mesmo artigo).

Esses direitos outorgados e os deveres impostos ao empresário individual são relativos somente ao seu estabelecimento empresarial, sem considerar o seu patrimônio particular e, por conseguinte, está claro que o Código Civil dá tratamento jurídico diferenciado a essa massa patrimonial. 70

4.7 – Considerações finais

A principal finalidade da teoria objetiva é a separação patrimonial de modo que o empresário singular possua duas esferas patrimoniais distintas, a particular e a empresarial.

Economicamente isso é admissível.

O patrimônio formado pelo empresário para dar base ao seu empreendimento é denominado de estabelecimento, e, na medida em que este é usado por aquele, ganha autonomia ou, por assim dizer, se torna um patrimônio especial ou separado.

Seus elementos têm uma grande valorização no mercado e são avaliados por terceiros de forma dissociada em relação aos demais elementos do patrimônio pessoal do empresário. Também se diferencia em razão da finalidade a que é destinado, que é a atividade empresarial. E, por fim, possui regime jurídico totalmente diferente.

Essa separação patrimonial, entretanto, é apenas funcional, o que significa que juridicamente o estabelecimento não é considerado um patrimônio separado e a regra da responsabilidade ilimitada persiste.

Com efeito, nos caberá adiante coletar elementos jurídicos suficiente para dar um substrato jurídico a essa separação patrimonial econômica ou de fato, bem como respondermos a questão "a" exposto no tópico 3.6.

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Sobre o autor
Luciano Batista de Oliveira

Advogado sócio do escritório Oliveira & Mattisen Advocacia especializada. Graduado em Direito pela Universidade São Francisco em 2008 e especialista em Direito Imobiliário pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) em 2010. Pós-graduando em Engenharia do Meio Ambiente pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). Membro da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP). Ex-Aluno da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) em 2008, apresentando monografia sobre o tema: A caracterização da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelo Supremo Tribunal Federal. Ex-monitor a Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) em 2011, no curso: Constituição e Política, sob a supervisão do Prof. Me. Daniel Wei Liang Wang. Ex-monitor de Direito Empresarial, sob a supervisão do Prof. Me. Sérgio Gabriel, na Universidade São Francisco, 2008.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luciano Batista. Limitar a responsabilidade do empresário individual é juridicamente possível?: Análise crítica da limitação da responsabilidade do empresário individual mediante separação patrimonial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2764, 25 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18346. Acesso em: 26 abr. 2024.

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