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Presunção de enriquecimento ilícito na Lei de improbidade administrativa

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3 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 exerceu influência determinante no formato e conteúdo das políticas públicas. O texto constitucional trouxe um conjunto de aspirações da sociedade no tocante à participação e à transparência na gestão pública.

A previsão expressa dos princípios democráticos e do Estado de Direito, estabeleceu uma número significativo de normas voltadas a fundamentar a adoção de institutos participativos na Administração Pública.

3.1 O Estado Democrático de Direito

Afirmar que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito significa dizer que o legislador constituinte quis imprimir ao Estado brasileiro uma nova ordem normativa, um novo conceito relacionado a uma verdadeira transformação social baseada nos ideais inseridos nos incisos do artigo 1° da Constituição Federal, in verbis:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (BRASIL, 1988).

Ao erigir o Estado Democrático de Direito como pilar da nova ordem constitucional, toda a estrutura estatal passou a ter como objetivo a concretização de um conjunto de valores e princípios ali inseridos.

O Estado Democrático surge com a intenção de reduzir as diferenças econômicas e sociais, através da aplicação dos preceitos constitucionais, que representam o interesse da maioria. Assim, o conceito de democracia está relacionado à soberania popular, divisão de poderes e controle da autoridade.

A submissão de todos, governantes, autoridades e indivíduos, à lei e, principalmente à Constituição Federal constituem a base do Estado de Direito, mas agrega em si também o sentido de justiça e paz social.

A separação dos poderes é a base da Administração Pública e esta é parte integrante da organização estatal. Assim, o modo de ser do Estado influencia diretamente a sua Administração, ou seja, para a compreensão do Direito Administrativo faz-se necessário conhecer os aspectos do Estado em questão.

Medauar (1999, p. 26) ressalta que:

O direito administrativo vincula-se à concepção de Estado de direito, justamente porque fixa normas para as atividades da Administração, que é um dos setores do Estado. Somente sob inspiração da idéia de Estado de direito seria possível fixar preceitos que protegem direitos dos indivíduos, perante a Administração, limitando o poder das autoridades.

A Administração Pública exerce importante papel na estrutura política, mas encontra limites na própria ordem constitucional, que prevê as regras e os princípios que a regem.

3.2 Princípios da Administração Pública

Para o Direito, os princípios constituem o alicerce no qual se estruturam os institutos e as normas jurídicas. De acordo com Medauar (1999, p. 135), princípios são "preceitos gerais que informam amplos campos de atuação".

A natureza jurídica dos princípios é delineada por Alexy (apud GARCIA, 2010):

Os princípios são normas jurídicas que ordenam que se realize algo na maior medida possível, em relação com as possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandados de otimização que se caracterizam por que podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida ordenada de seu cumprimento não depende só de possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O campo das possibilidades jurídicas está determinado por meio de princípios e regras que jogam em sentido contrário (ALEXY, apud GARCIA, 2010).

Os princípios são a base e fundamento de todo o sistema jurídico e, num primeiro momento orientam o intérprete da lei a preencher as lacunas deixadas pelo legislador. É o que observa Rangel Jr. (2001, p. 49):

Como regras jurídicas de caráter genérico, que visam à supressão de insuficiências hermenêuticas das normas, os princípios vêm a serviço de impedir-se que tais insuficiências, quando da aplicação dessas normas, possam dar espaço a arbitrariedades do intérprete ou do contexto social. O princípio é o tipo de regra jurídica voltada a proteger o ordenamento do risco de o hermeneuta favorecer que subjetividades individuais suas (ideologias, preconceitos e que tais) e objetividades coletivas (estatísticas de opinião pública, meios de comunicação etc.) sejam arbitrárias, na tentativa de revelação do Direito. Trata-se, assim, de regra promotora da moralidade na aplicação do Direito.

Para o Direito Administrativo, os princípios constituem regras que regem e orientam o agente público para a realização de uma boa e "correta" administração, apontam o caminho correto a ser seguido para a boa gestão dos interesses coletivos, pois são fundamentos da atividade administrativa.

Os princípios a que se submete Administração Pública podem estar tanto expressos quanto implícitos no ordenamento jurídico, como será visto a seguir.

3.2.1 Princípios expressos

A Constituição Federal do Brasil sujeitou, explicitamente, toda a Administração Pública direta e indireta a determinados princípios previstos no artigo 37, caput, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...] (BRASIL, 1988).

Os princípios acima constituem o alicerce de toda a atividade administrativa e, segundo Meirelles (2006, p. 87), "por esses padrões é que deverão se pautar todos os atos e atividades administrativas de todo aquele que exerce o poder público".

3.2.1.1 Legalidade

Este princípio decorre do Estado Democrático de Direito, pois submete toda a atividade público-administrativa à observância da lei. Desse modo, o administrador público só é autorizado a realizar, em nome da Administração, o que o ordenamento jurídico permite.

Numa visão clara e tradicional acerca do assunto, mas também um tanto ultrapassada, Fagundes (2005, p. 3) já lecionava: "administrar é aplicar a lei de ofício". Neste sentido, o Direito seria apenas um limitador dos atos administrativos.

Acerca deste princípio, Pazzaglini Filho (2002, p. 25-26) ensina que:

O princípio da legalidade, pois, envolve a sujeição do agente público não só à lei aplicável ao caso concreto, senão também ao regramento jurídico e aos princípios constitucionais que regem a atuação administrativa (...). A legalidade é a base matriz de todos os demais princípios constitucionais que instruem, condicionam, limitam e vinculam as atividades administrativas. Os demais princípios constitucionais servem para esclarecer e explicitar o conteúdo do princípio maior ou primário da legalidade.

Assim, a lei, e não a vontade do administrador, é responsável por orientar e delimitar a atuação da Administração Pública, característica esta que se encontra presente nos governos democráticos e que evita o abuso de poder. Mello (2009, p. 89) preleciona que:

O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes [...]. O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da cidadania.

O Estado de Direito submete todos, administradores e administrados, às determinações legais. A atividade administrativa, portanto, tem na lei seu suporte e seu limite.

3.2.1.2 Impessoalidade

Embora seja analisado sob diversos ângulos, por doutrinadores diversos, o princípio da impessoalidade traz em si o sentido de que os atos e atividades administrativas estão ligados à função exercida, e não à pessoa que a exerce, e sua finalidade, portanto, deve estar destituída de toda e qualquer razão ou relação pessoal.

Este princípio visa, como observa Medauar (1999, p. 141), "obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, nepotismo, favorecimentos diversos, muito comuns em licitações, concursos públicos, exercício do poder de polícia".

3.2.1.3 Publicidade

Como característica de um governo democrático, a "transparência" de toda a atividade administrativa é a regra, e o sigilo, por sua vez, a exceção. Assim, por este princípio, os atos da Administração Pública, direta e indireta, devem ser amplamente divulgados, salvo os casos em que a própria lei traz a previsão de sigilo.

Os atos administrativos dizem respeito ao interesse da coletividade, portanto devem ser acessíveis a todos e, conforme Mello (2009, p. 102):

Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1°, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.

Outra característica deste princípio relaciona-se à necessidade de divulgação dos atos e atividades administrativas, pois os mesmos somente produzirão efeitos após sua publicação oficial pelo órgão competente.

3.2.1.4 Eficiência

O princípio da eficiência foi inserido no rol dos princípios da Administração pública com a edição da Emenda Constitucional 19, de 04/06/1998. Este princípio tem por escopo garantir que os atos administrativos, além de legais, sejam céleres e eficazes.

O modo de atuação dos agentes públicos e a organização da Administração são os responsáveis pela qualificação da atividade administrativa. Uma "boa administração" é aquela que produz resultados com rapidez e de maneira satisfatória para a sociedade.

A eficiência, na Administração Pública corresponde, portanto, ao dever de bem gerir o patrimônio público através da prestação de serviços adequados e voltados ao interesse coletivo.

3.2.1.5 Moralidade

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A moralidade administrativa está ligada ao conceito de ética, uma vez que todos os atos da Administração devem estar pautados em condutas honestas e adequadas a sua finalidade.

Segundo Rangel Jr. (2001, p. 10), "a moral se traduz num sistema de regras valorativas que regulam os limites da conduta social".

Assim, para que os atos administrativos sejam válidos é necessário que, além da conformidade com a lei, os mesmos estejam em consonância com a ética da própria instituição. Como já diziam os romanos: "Non omne quod licet honestum est", ou seja, nem tudo o que é legal também é honesto.

Este princípio, por ser de fundamental importância para o entendimento do tema proposto no presente trabalho, será estudado em capítulo específico.

3.2.2 Princípios implícitos

Alguns princípios, embora não mencionados pela Constituição Federal de 1988, decorrem da própria organização e objetivos do Estado brasileiro e foram incorporados ao Direito Administrativo mediante previsão legal, jurisprudência e trabalhos doutrinários.

Apesar da ausência de previsão expressa na Carta Magna, estes princípios não são menos importantes que aqueles previstos no caput do artigo 37, serão aqui citados alguns deles a título exemplificativo, pois o presente trabalho não tem a pretensão de esgotá-los.

- Razoabilidade

Este princípio está intrinsecamente ligado a idéia de proporcionalidade, pois esta implica na busca do meio menos gravoso para a consecução de determinado resultado.

A razoabilidade administrativa diz respeito, principalmente, aos atos revestidos de discricionariedade, pois estes dão ao administrador certa margem de liberdade na tomada de decisões.

O princípio da proporcionalidade, segundo Medauar (1999, p. 146), "aplica-se a todas as atuações administrativas para que sejam tomadas decisões equilibradas, refletidas, com avaliação adequada da relação custo-benefício, aí incluído o custo social".

- Supremacia do interesse público

Por este princípio, os interesses da coletividade devem prevalecer sobre os interesses individuais. Assim, os atos administrativos devem estar voltados para o "corpo social", além de estarem em conformidade com a lei.

A supremacia do interesse público relaciona-se à finalidade do ato administrativo, como observa Mello (2006, p. 87), "a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade".

Toda a atividade administrativa está diretamente vinculada a este princípio, pois, o bem estar coletivo é a razão de ser do Estado.

- Motivação

A Administração pública tem o dever de expor e explicar os motivos que determinaram a execução de seus atos, apontando os fundamentos de fato e de direito que os justificam. Como característica de um governo democrático, este princípio coloca a vontade da lei acima da vontade do administrador público.

Bielsa (apud MEIRELLES, 2006, p. 100) leciona a respeito que "no Direito Administrativo a motivação deverá constituir norma, não só por razões de boa administração, como porque toda autoridade ou Poder em um sistema de governo representativo deve explicar legalmente, ou juridicamente, suas decisões".

A obrigação de motivar os atos administrativos é o fundamento da teoria dos motivos determinantes, sistematizada por Gastón Jèze, em 1926. Segundo esta teoria, os efeitos jurídicos do ato praticado vinculam-se aos motivos que o justificaram, sob pena de se tornarem inválidos.

Acerca desta teoria, Campos (apud MEIRELLES, 2006, p. 197) manifesta que:

A teoria dos motivos determinantes me parece de irrecusável procedência quando estabelece que os atos do Governo, se a lei os legitima mediante certos motivos (atos vinculados) ou quando o próprio governo, podendo praticá-los sem motivo declarado (atos discricionários), declara, entretanto, o motivo, que, de acordo com a lei, é necessário para legitimá-los, ou o motivo invocado ou declarado pelo Governo não contém a realidade ou se verifica improcedente por não coincidir com a situação de fato em que se consistia o seu pressuposto.

Assim, conclui-se que, durante todo o período de vigência, o ato administrativo vincula-se aos motivos que lhe deram origem. Se os motivos não forem pertinentes, por conseqüência, o ato é nulo.

- Indisponibilidade do interesse público

Por este princípio é vedado ao administrador público dispor de interesse que não se lhe é próprio, mas da coletividade. Em regra, motivo algum é plausível para que o agente tome ou retarde providências relevantes ao atendimento do interesse público.

O administrador público atua em nome do Estado, portanto os interesses que defende são coletivos, como observa MELLO (2006, p. 62):

A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses classificados como próprios da coletividade - internos ao setor público-, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão legislativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever- na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis (MELLO, 2006, p. 62).

Apesar de ocuparem "posição de destaque", os princípios acima descritos não são os únicos que regem as atividades da Administração Pública. No entanto, os demais princípios não serão aqui tratados, sob o risco de o presente trabalho estender-se demasiadamente.

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Sobre a autora
Karline dos Santos Nascimento Paié

Funcionária pública. Licenciada em Pedagogia. Bacharel em Direito. Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil. Bacharelanda em Administração Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAIÉ, Karline Santos Nascimento. Presunção de enriquecimento ilícito na Lei de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2800, 2 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18607. Acesso em: 26 abr. 2024.

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