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Algumas notas acerca da delação premiada

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Historicamente condenada no plano da moral e da ética, a figura do delator ou alcagüete vem hodiernamente recebendo tratamento privilegiado e até mesmo sendo estimulada no campo do processo penal, por intermédio de inovações legislativas que lhe conferiram benefícios penais que podem chegar até mesmo à extinção da punibilidade por meio do perdão judicial (art. 107, IX do CPB).

Em que pese a valorização da delação como meio de prova remeter à Inquisição, sua utilização sistemática com a concessão de benefícios aos delatores é historicamente mais recente, surgindo com a legislação de combate à máfia na Itália, como expressão do chamado direito penal emergencial, que não costuma respeitar direitos e garantias individuais.

No Brasil, o citado instituto foi positivado a partir do advento da famigerada Lei n° 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, bem como outras disposições legislativas permitiram sua aplicação, com algumas nuances distintas, aos crimes de lavagem de capitais (art. 1°, §5° da Lei n° 9.613/98), extorsão mediante seqüestro (art. 159, §4° do Código Penal, com a redação da Lei n° 9.296/96), cometidos por organizações criminosas (art. 6° da Lei n° 9.034/95), de tráfico de drogas (art. 41 da Lei n° 11.343/06), além da sua previsão na Lei de proteção às vítimas e testemunhas (arts. 13 e 14 da Lei n° 9.807/99).

A despeito de sua previsão legal, a delação premiada enfrenta graves resistências por parte da doutrina, posto que sua aplicação baseia-se no estímulo a uma conduta altamente reprovável que é a traição.

De fato, é de causar espanto a visão utilitarista e pragmática de estimular um erro (a traição) a pretexto de combater outro (o crime). Aplica-se a discutível máxima de que os fins justificam os meios e se coloca o ordenamento jurídico, o qual é fundado em valores éticos na posição de instigador da traição para atingir seus objetivos.

Nesse sentido, leciona Luiz Flávio Gomes [01], in verbis:

"A delação premiada, com efeito, assenta-se na traição. A lei citada, como bem enfatizou Damásio E. de Jesus, não é pedagógica, porque ensina que trair traz benefícios. Sendo eticamente reprovável (ou, no mínimo, muito discutível), deve a delação premiada ser restringida o máximo possível. Só teria cabimento em situações muito especiais e em nenhum outro delito mais. E, de qualquer modo, requer muita cautela, porque pode haver incriminação puramente vingativa. Surgiu, como se sabe, em primeiro lugar, para combater as organizações terroristas. É, portanto, "ilha" do Direito Penal excepcional italiano e depois acabou incorporando-se ao direito comum, provocando sua "corrosão".

O Direito, para ser duradouro, tem que se assentar em vigas éticas firmes. O Direito é um conjunto normativo eminentemente ético, e é por isso que é acatado e respeitado. Ele existe em função de alguns valores, hoje postos explicitamente no frontispício da nossa Constituição (dignidade do ser humano, justiça, igualdade, liberdade, segurança etc.). Em determinadas circunstâncias até se compreende o prevalecimento de um valor sobre outro, mas o que não dá para entender é a transformação do Direito em instrumento de antivalores. Colocar em lei que o traidor merece prêmio é difundir uma cultura antivalorativa. É um equívoco pedagógico enorme. Ainda que o valor perseguido seja o de combater o crime, mesmo assim constitui um preço muito alto tentar alcançar esse fim com um meio tão questionado. O fim, em última instância, está justificando os meios.

Em nome de um controvertido Direito Penal funcionalista, utilitário e pragmático, que só se preocupa com o resultado final e simbólico (só com seu "rendimento", em suma), estão pretendendo, no Brasil, enraizar a "delação premiada". Semelhante propósito configura a mais viva expressão política ou instrumental do poder coativo da era pósindustrial, que, menosprezando valores fundamentais como "justiça", "eqüidade" e "proporcionalidade", procura a todo custo difundir e impor a cultura do "direito emergencial ou de exceção", pouco se importando com a "erosão" do direito liberal clássico, voltado para a tutela do ser humano. Na base da delação premiada, como vimos, está a traição, daí a censura de Damásio de Jesus, Alberto Silva Franco e outros. A lei, quando a concebe, está transmitindo uma mensagem antivalorativa: seja um traidor e receba um prêmio! Se nem sequer o "código" dos criminosos admite a traição, é muito paradoxal e antiético que ela venha a ser valorada "positivamente" na legislação dos chamados "homens de bem". Sempre que sabemos que alguém de qualquer grupo é um delator, imediatamente ele perde a confiança e a fé. Nós reprovamos duramente a delação nas nossas relações. Como podemos, agora, concebê-la como instrumento de apuração de responsabilidade penal?"

Além do evidente dilema ético-moral, também se argumenta que a delação premiada é o reconhecimento da incapacidade do Estado de promover a persecução penal, transferindo a responsabilidade do órgão acusador de provar a materialidade e autoria de um delito para o réu, que se transmuda na relação processual (ou ainda na fase inquisitorial) de um pólo a outro na relação jurídica.

Outrossim, o instituto tende a gerar uma "acomodação" da autoridade incumbida de apurar o fato, bem como ensejar o risco de um desvio inadequado de linha investigativa em sua decorrência, se absorvida acriticamente. [02]

Também impõe-se o reconhecimento de que sua utilização não pode ser banalizada e, principalmente, não pode ser considerada prova suficiente para sustentar uma condenação, posto que fruto de verdadeira chantagem estatal sobre um acusado fragilizado e beneficiário direto do que afirmar em detrimento de outros.

Nesse diapasão, válida a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [03], que aduz:

"O pior é que o resultado da delação premiada — e talvez a questão mais relevante — não tem sido questionado, o que significa ter a palavra do delator tomado o lugar da "verdade absoluta" (como se ela pudesse existir), inquestionável. Aqui reside o perigo maior. Por elementar, a palavra assim disposta não só cobra confirmação precisa e indiscutível como, por outro lado, deve ser sempre tomada, na partida, como falsa, até porque, em tais hipóteses, vem do "grande bandido". Trata-se, portanto, de meia verdade e, assim, de uma não-verdade, ou seja, uma inverdade, pelo menos a ponto de não enganar quem tem os pés no chão; e cabeça da Constituição."

Também o Superior Tribunal de Justiça vem relativizando o valor probatório do instituto admitimdo que "A delação premiada, por implicar traição do corréu ao comparsa do crime, não pode servir de instrumento a favor do Estado, que tem o dever de produzir provas suficientes para o decreto condenatório". [04]

Inicialmente, a delação fora concebida para aplicar-se apenas aos crimes de maior gravidade e cometidos por organizações criminosas, o que também fora objeto de intensa polêmica, na medida em que não conferia o citado benefício para todos os acusados e privilegiaria justamente os supostamente mais perigosos. [05]

Contudo, com o advento da Lei 9.807/99, sua aplicação foi possibilitada a qualquer espécie de delito, uma vez que entre seus requisitos não está o tipo penal. Tal ampliação enseja então o questionamento sobre o acerto de sua aplicação.

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A nosso ver, não há sentido em se aplicar a delação apenas a algumas espécies de delitos e, nesse sentido, é positiva a inovação trazida pela legislação. Contudo, se não se vislumbra razão para isolar as espécies de crime para tal fim, por outro lado, entende-se como inadequada a existência do instituto em si, em razão das flagrantes violações que enseja ao sistema acusatório [06] e da subestimação dos valores éticos em nome de um pragmatismo incompatível com o Direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p. 7-9, fev. 2006.

GOMES, Luiz Flávio Gomes. CERVINI, Raúl. OLIVEIRA, William Terra de. Lei de Lavagem de Capitais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

MARCÃO, Renato. Delação Premiada. In http://www.conamp.org.br/Lists/artigos/DispForm.aspx?ID=117. Consultado em 17/02/2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

PRADO, Geraldo. Da delação pemiada: aspectos de direito processual. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p. 10-12, fev. 2006.


Notas

  1. GOMES, Luiz Flávio Gomes. CERVINI, Raúl. OLIVEIRA, William Terra de. Lei de Lavagem de Capitais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
  2. MARCÃO, Renato. Delação Premiada. In http://www.conamp.org.br/Lists/artigos/DispForm.aspx?ID=117. Consultado em 17/02/2011.
  3. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p. 7-9, fev. 2006.
  4. STJ 5° Turma. HC 97509/MG. Relator Ministro Arnaldo Esteves de Lima. DJe 02/08/2010.
  5. GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit.
  6. PRADO, Geraldo. Da delação pemiada : aspectos de direito processual. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p. 10-12, fev. 2006.
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Sobre o autor
Geraldo Vilar Correia Lima Filho

Defensor Público Federal. Professor Universitário. Chefe Substituto da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Mestrando em Direito pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Geraldo Vilar Correia. Algumas notas acerca da delação premiada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2801, 3 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18612. Acesso em: 24 abr. 2024.

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