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O sistema de registro de preços e o "carona"

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Resumo: O presente artigo aborda, de forma sucinta, o sistema de registro de preços, procedimento especial de licitação, apresentando sua disciplina legal e características mais relevantes. Trata, também, da figura do ‘carona’, cuja utilização tem sido objeto de constantes abusos pelos administradores públicos, mas que, se aperfeiçoado, pode constituir importante instrumento para o Poder Público realizar suas contratações de forma mais ágil e econômica.

Palavras-chave: Licitação. Sistema de registro de Preços. Carona.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo trata do procedimento especial de licitação denominado ‘sistema de registro de preços’, muito utilizado pelo Poder Público para adquirir bens e contratar serviços.

Num primeiro momento discorre-se sobre sua disciplina legal e características mais relevantes. Em seguida, trata, também, da figura do ‘carona’, que tem sido objeto de muita polêmica devido aos abusos praticados pelos administradores públicos.

Por meio da análise de posições doutrinárias e jurisprudenciais, procurou-se verificar a legalidade e a constitucionalidade da base legal e infralegal existente, na tentativa de demonstrar, ao final, que a prática do "carona" tem suas vantagens, mas precisa ser aperfeiçoada, sobretudo no aspecto legislativo, por constituir importante instrumento para o Poder Público realizar suas contratações de forma mais ágil e econômica.


2. O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS. DISCIPLINA LEGAL E CARACTERÍSTICAS GERAIS.

O Estado é o titular dos serviços públicos prestados aos cidadãos. A sua execução, todavia, pode ocorrer diretamente pelo ente estatal, por meio dos seus próprios recursos (humanos e financeiros), ou indiretamente, por um particular, que assume a prestação do serviço sob a supervisão do Estado.

Mesmo quando a prestação do serviço público é realizada diretamente pelo Estado este, para se desincumbir dos deveres outorgados pelo ordenamento jurídico, necessita buscar na iniciativa privada os bens ou serviços que não produz ou executa.

Essa contratação de bens ou serviços produzidos ou prestados pela iniciativa privada deve ocorrer, necessariamente, mediante a realização de procedimento administrativo formal destinado à seleção da proposta mais vantajosa ao ente público. Trata-se do procedimento denominado licitação.

A licitação é procedimento obrigatório para a contratação de obras, serviços, compras e alienações realizadas pela Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios, conforme determina a Constituição Federal (art. 37, XXI), cabendo ao ente licitador assegurar a igualdade de condições a todos os particulares interessados em com ele contratar.

Atualmente o procedimento é regulado pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que dispõe sobre normas gerais de licitações e contratos da Administração Pública. A essas normas estão subordinados a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, além dos fundos especiais, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas, das sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente por aqueles.

No que tange especificamente às compras, segundo o disposto no art. 15. da lei mencionada, deverão, sempre que possível, atender ao princípio da padronização e ser processadas por "sistema de registro de preços".

Art. 14. Nenhuma compra será feita sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe tiver dado causa.

Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:

I - atender ao princípio da padronização, que imponha compatibilidade de especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condições de manutenção, assistência técnica e garantia oferecidas;

II - ser processadas através de sistema de registro de preços;

III - submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado;

IV - ser subdivididas em tantas parcelas quantas necessárias para aproveitar as peculiaridades do mercado, visando economicidade;

V - balizar-se pelos preços praticados no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública.

§ 1º O registro de preços será precedido de ampla pesquisa de mercado.

§ 2º Os preços registrados serão publicados trimestralmente para orientação da Administração, na imprensa oficial.

§ 3º O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:

I - seleção feita mediante concorrência;

II - estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;

III - validade do registro não superior a um ano.

§ 4º A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações, sendo assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de condições.

§ 5º O sistema de controle originado no quadro geral de preços, quando possível, deverá ser informatizado.

§ 6º Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.

§ 7º Nas compras deverão ser observadas, ainda:

I - a especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca;

II - a definição das unidades e das quantidades a serem adquiridas em função do consumo e utilização prováveis, cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas de estimação;

III - as condições de guarda e armazenamento que não permitam a deterioração do material.

§ 8º O recebimento de material de valor superior ao limite estabelecido no art. 23. desta Lei, para a modalidade de convite, deverá ser confiado a uma comissão de, no mínimo, 3 (três) membros.

Art. 16. Será dada publicidade, mensalmente, em órgão de divulgação oficial ou em quadro de avisos de amplo acesso público, à relação de todas as compras feitas pela Administração Direta ou Indireta, de maneira a clarificar a identificação do bem comprado, seu preço unitário, a quantidade adquirida, o nome do vendedor e o valor total da operação, podendo ser aglutinadas por itens as compras feitas com dispensa e inexigibilidade de licitação.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica aos casos de dispensa de licitação previstos no inciso IX do art. 24.

Segundo a doutrina especializada o sistema de registro de preços "é um procedimento especial de licitação que se efetiva por meio de uma concorrência ou pregão sui generis, selecionando a proposta mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, para eventual e futura contratação pela Administração" 1. Trata-se de um "contrato normativo, constituído como um cadastro de produtos e fornecedores, selecionados mediante licitação, para contratações sucessivas de bens e serviços, respeitados lotes mínimos e outras condições previstas no edital" 2.

Para Antônio Roque Citadini "o Registro de Preços constitui-se num meio operacional para a realização de compras, gêneros e equipamentos de uso comum, o qual se concretiza mediante prévio certame licitatório, visando obter os melhores preços e condições para a Administração 3.

Vale dizer, pelo sistema de registro de preços o ente público realiza a licitação (mais comumente utiliza-se a modalidade pregão) e, ao final, edita um documento, denominado "ata de registro de preços", no qual ficarão registrados, por um determinado período, os preços oferecidos pelos interessados em fornecer bens e prestar serviços, que serão adquiridos ou contratados pela Administração apenas quando for conveniente.

Embora a lei se restrinja às "compras", tem prevalecido o entendimento, com o qual concordamos, de que não há incompatibilidade lógica na utilização do sistema de registro de preços também para os "serviços", não sendo razoável, neste caso, interpretar o silêncio do legislador como uma vedação implícita 4. O fato de não haver disposição legal expressa não impede, por exemplo, o registro de preços, para eventual e futura contratação dos serviços de reprografia e encadernação de documentos, chaveiro, plotagem, confecção de uniformes, fornecimento de ‘coffee breaks’ em eventos, locação de equipamentos de sonorização e iluminação, manutenção de equipamentos, rádio-táxi, entre outros. E como se verá a seguir, o ato regulamentar expedido pela União prevê a possibilidade de registro de preços de serviços 5.

Em se tratando de procedimento especial de licitação (e não de uma modalidade como as previstas no art. 22) a ele se aplicam todas as normas gerais previstas na Lei nº 8.666/93, sobretudo os princípios mencionados no art. 3º, quais sejam, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

Criado por norma geral, o sistema de registro de preços deve ser regulamentado por cada ente federativo, mediante decreto, de acordo com as peculiaridades regionais e observadas, contudo, as seguintes condições: a) seleção feita mediante concorrência 6; b) estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados; c) validade do registro não superior a um ano.

No âmbito da União foi editado o Decreto nº 2.743, de 21 de agosto de 1998, posteriormente revogado pelo Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, que, por sua vez, sofreu as alterações introduzidas pelo Decreto nº 4.342, de 23 de agosto de 2002.

O sistema de registro de preços tem como característica singular – o que confere a mencionada especialidade ao procedimento – o fato de a Administração não estar obrigada a contratar com o licitante vencedor, conforme dispõe o § 4º do art. 15. da Lei nº 8.666/93. Ou seja, o registro de preços não produz contratação necessária e imediata, na medida em que a Administração apenas firmará um compromisso (ou pré-contrato) com o licitante vencedor. Se precisar do bem ou serviço, adquirirá daquele que ofereceu a proposta mais vantajosa, condicionando esse compromisso ao período máximo de um ano.

Assim, de um lado a Administração tem a garantia de que não está obrigada a contratar; de outro, o licitante tem a certeza de que o compromisso tem prazo determinado.

Com o registro de preços a Administração tem a oportunidade de reduzir sensivelmente o número de licitações, sobretudo as que versarem sobre objetos semelhantes e homogêneos, porquanto à medida que necessitar contratar poderá lançar mão dos preços então registrados para formalizar, com rapidez, as contratações, ficando dispensada, assim, de promover uma licitação a cada vez que precisar contratar e evitando o desperdício com a manutenção de estoques.

No que se refere especificamente à definição do objeto e da sua quantidade 7, é certo que, no registro de preços, ao contrário do que ocorre em uma licitação para aquisição ou contratação imediata, a Administração deve fazer constar do ato convocatório apenas uma estimativa das quantidades mínima e máxima dos bens ou serviços, que serão adquiridos de acordo com a sua necessidade. Trata-se de uma expectativa de consumo, fixada com base em prévio estudo interno sobre a demanda do bem a ser adquirido ou do serviço a ser contratado, uma vez que não é possível saber com absoluta certeza quando nem em que quantidade um bem ou serviço deverá ser adquirido ou contratado.

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Na medida em que se exige de ambas as partes um compromisso efetivo, consubstanciado, de um lado, na garantia do preço registrado e, de outro, na possibilidade de se exonerar o licitante vencedor se houver desequilíbrio na equação econômico-financeira, conclui-se que o sistema de registro de preços exerce forte influência sobre o mercado. Não se admitem, por isso, quantificações indeterminadas, nem que se relegue tal decisão ao exclusivo critério subjetivo da Administração, sob pena de se dar margem a abusos e afetar a credibilidade do sistema.

Marçal Justen Filho, ao tratar da necessidade de fixação de quantitativos mínimos e máximos, assim assevera:

A incerteza sobre quantitativos mínimos e máximos se reflete no afastamento dos empresários sérios e na elevação dos preços ofertados à Administração. Basta um pequeno exemplo para evidenciar o problema. É possível formular um juízo aplicável a qualquer objeto, numa sociedade industrial razoavelmente desenvolvida. Trata-se do princípio da escala, que significa que quanto maior a quantidade comercializada tanto menos o preço unitário dos produtos fornecidos. Assim, o preço unitário não será o mesmo para fornecer um quilo de açúcar ou dez toneladas.

(...)

Por outro lado, a fixação de quantitativos máximos é imposição essencial, derivada das normas orçamentárias, do princípio da isonomia e da economicidade. (...) O princípio da isonomia impõe que todos os potenciais interessados tomem ciência da extensão das contratações que a Administração pretende realizar. Não é possível que uma licitação aparentemente irrelevante, que não desperta atenção e competição entre os empresários do setor, seja transformada em uma fonte inesgotável de contratações para o licitante que a venceu 8.

No entanto, superadas as estimativas da Administração e esgotado o limite máximo previsto no edital, e desde que não tenha sido possível ao ente público prever a demanda extraordinária, por se tratar justamente de fato superveniente à estimativa inicial, ou, ainda, ante a impossibilidade de prorrogação do prazo do registro de preços e não tendo sido possível concluir o novo certame licitatório, deve-se permitir o acréscimo da quantidade inicial em até 25% (vinte e cinco por cento), com amparo na regra do § 1º art. 65. da Lei nº 8.666/93, aplicada por analogia ao sistema de registro de preços, já que este não constitui um contrato propriamente dito.

Vale dizer, em circunstâncias excepcionais, não se afiguraria razoável vedar a aplicação da regra contida no § 1º do art. 65. – sobretudo se o acréscimo beneficiar o mesmo ente ou órgão –, até porque não há qualquer disposição, expressa ou implícita, decorrente da legislação em vigor, que possa levar a essa conclusão.


3. O EMPRÉSTIMO DA ATA DE REGISTRO DE PREÇOS. A FIGURA DO ‘CARONA’.

Delimitado o objeto da nossa análise, pode-se, agora, abordar a prática do "carona" (ou, como preferem alguns, empréstimo de registro de preços a órgãos ou entes não-participantes), adotada por diversos órgãos e entes públicos e objeto de muita polêmica.

Segundo Jorge Ulisses Jacoby Fernandes 9 os usuários da ata de registro de preços podem ser classificados em dois grupos: a) órgãos participantes, aqueles que, no momento da convocação do órgão gerenciador, comparecem e participam da implantação do sistema do registro de preços, informando os objetos pretendidos, a qualidade e a quantidade; b) órgãos não participantes (caronas), aqueles que, não tendo participado na época oportuna, informando suas estimativas de consumo, requerem ao órgão gerenciador, posteriormente, o uso da ata de registro de preços.

A figura do "carona" foi criada pelo Decreto nº 4.242/2202, que introduziu o § 3º ao artigo 8º do Decreto nº 3.931/2000, que, por sua vez, regulamenta o sistema de registro de preços no âmbito federal. Assim dispõe art. 8º:

Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.

§ 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.

§ 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.

§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.

Atente-se para o fato de que desde 19 de setembro de 2001, quando editado o Decreto nº 3.931, a figura do "carona" já estava prevista no texto do ato regulamentar (caput), sem que houvesse, em princípio, qualquer restrição a sua utilização. Somente em 23 de agosto de 2002, com a edição do Decreto nº 4.342, é que foi estabelecido um limite para as aquisições ou contratações adicionais, que ficaram "restritas" a cem por cento, por ente ou órgão que viesse a se utilizar da ata de registro de preços, da quantidade inicialmente registrada.

Assim, embora não exista previsão legal sobre a utilização da ata de registro de preços por órgãos ou entes não participantes da fase preparatória da licitação, a partir da edição do Decreto nº 4.342/2002 essa prática passou a ser incorporada aos regulamentos sobre registro de preços de diversos Estados e Municípios 10.

Em nosso sentir a prática limitada do carona não fere os princípios da legalidade e da obrigatoriedade de licitação, como afirmam autores como Joel Menezes Niebuhr 11, Thiago Dellazari Melo 12 e Luiz Claudio Santana 13.

Não fere o princípio da legalidade porque a própria Lei nº 8.666/93 conferiu a cada ente federativo a prerrogativa de regulamentar o seu sistema de registro de preços, de acordo com as peculiaridades regionais ou locais. E a prática do carona, embora não tenha sido prevista na lei geral, decorre da dinâmica do procedimento licitatório e da execução da ata de registro de preços, razão pela qual não pode ser considerada inovação indevida por parte do Chefe de Executivo.

Igualmente não fere o princípio da obrigatoriedade de licitação, pois, embora o ente ou órgão não participante do certame, ao "tomar carona" em ata alheia, deixe de realizar a sua própria licitação, o bem ou serviço registrado e o seu fornecedor foram selecionados mediante procedimento licitatório promovido pelo ente que empresa a sua ata de registro de preços, pelo que a afirmação de que a "carona" equivaleria a uma dispensa indevida de licitação não parece correta.

É certo que a utilização da ata pelo participante ‘carona’ implicaria, em tese, a redução da disponibilidade para os participantes originais, razão pela qual cabe àquele (o "carona") justificar porque não integrou desde o início a licitação (quando se tratar de órgão do mesmo ente licitador). Entretanto, havendo expressa concordância por parte dos órgãos ou entes participantes e, sendo necessário o acréscimo no quantitativo, este não ultrapasse o limite de 25% (vinte e cinco por cento), não haverá óbice à utilização da ata de registro de preços por outro ente ou órgão.

O grande problema decorre dos abusos que têm sido cometidos pelo Poder Público, gerando discussões sobre o desvirtuamento do instituto.

Com base na regra prevista no art. 8º do Decreto nº 3.931/2000, especialmente a do § 3º (regra essa que vem sendo repetida pelos regulamentos estaduais e municipais), qualquer órgão ou ente da Administração que não tenha participado da licitação poderá utilizar a ata de registro de preços, sendo que as aquisições ou contratações adicionais não poderão exceder a cem por cento, por órgão ou ente "carona", da quantidade registrada originalmente.

Segundo Marçal Justen Filho "a prática conhecida como ‘carona’ consiste na utilização por um órgão administrativo do sistema de registro de preço alheio. Como se sabe, o registro de preços é implantado mediante uma licitação, promovida no âmbito de um ou mais órgãos administrativos. Essa licitação é modelada de acordo com as necessidades dos órgãos que participam do sistema. A "carona" ocorre quando outro órgão, não participante originariamente do registro de preços, realiza contratações com base no dito registro. Essa contratação adicional não é computada para efeito de exaurimento dos quantitativos máximos previstos originalmente por ocasião da licitação. O único limite a ser respeitado seria a observância, por órgão não participante originalmente do sistema, do limite de 100% dos quantitativos registrados"14.

A título de exemplo, suponha-se que a licitação tenha sido realizada visando o registro de preços de galões de água mineral, com quantidade inicial estimada em mil unidades, para atender à demanda de um determinado ente federal. Findo o certame e publicada a ata de registro de preços, outros cinco entes da Administração Pública (seja do âmbito federal, estadual ou municipal), para atender a sua própria demanda, lançam mão da ata existente e solicitam, cada um, a aquisição de mil unidades, o que representa um acréscimo de 500% (quinhentos por cento) sobre a quantidade inicial.

Tal acréscimo, em princípio, encontraria amparo na regra prevista no § 3º do art. 8º do Decreto nº 3.931/2000. Não obstante, parece evidente a tentativa de burlar o princípio da obrigatoriedade da licitação 15, uma vez que, regra geral, cada ente deve promover a sua própria licitação quando necessitar adquirir bens ou contratar serviços.

Um caso emblemático foi objeto de análise pelo Tribunal de Contas da União, cujo excerto do acórdão nº 1487/2007, proferido nos autos TC-008.840/2007-3 – Plenário, por sua relevância, vai a seguir transcrito:

(...)

3. Quanto às questões de fundo em discussão no que se refere às fragilidades identificadas na sistemática de registro de preços, tenho-as por pertinentes.

4. Entendo, na mesma linha defendida pelo Ministério Público, que o Decreto nº 3.931/2001 não se mostra incompatível com a Lei nº 8.666/93 no que tange à utilização do registro de preços tanto para serviços como para compras. Ademais, o art. 11. da Lei nº 10.520/2002 admite a utilização do sistema de registro de preços previsto no art. 15. da Lei de Licitações nas contratações de bens e serviços comuns.

5. O parecer do Parquet ilustra esse ponto com abalizada doutrina que interpreta o sistema normativo de modo a demonstrar a compatibilidade entre o registro de preços e os contratos de prestação de serviços, consoante transcrito no Relatório que antecede este Voto. Ademais, lembra o ilustre Procurador que em diversos julgados o Tribunal expediu determinações/recomendações com a finalidade de estimular a utilização da sistemática de registro de preços por parte dos órgãos da Administração Pública.

6. Diferente é a situação da adesão ilimitada a atas por parte de outros órgãos. Quanto a essa possibilidade não regulamentada pelo Decreto nº 3.931/2001, comungo o entendimento da unidade técnica e do Ministério Público que essa fragilidade do sistema afronta os princípios da competição e da igualdade de condições entre os licitantes.

7. Refiro-me à regra inserta no art. 8º, § 3º, do Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, que permite a cada órgão que aderir à Ata, individualmente, contratar até 100% dos quantitativos ali registrados. No caso em concreto sob exame, a 4ª Secex faz um exercício de raciocínio em que demonstra a possibilidade real de a empresa vencedora do citado Pregão 16/2005 ter firmado contratos com os 62 órgãos que aderiram à ata, na ordem de aproximadamente 2 bilhões de reais, sendo que, inicialmente, sagrou-se vencedora de um único certame licitatório para prestação de serviços no valor de R$ 32,0 milhões. Está claro que essa situação é incompatível com a orientação constitucional que preconiza a competitividade e a observância da isonomia na realização das licitações públicas.

8. Para além da temática principiológica que, por si só já reclamaria a adoção de providências corretivas, também não pode deixar de ser considerada que, num cenário desses, a Administração perde na economia de escala, na medida em que, se a licitação fosse destinada inicialmente à contratação de serviços em montante bem superior ao demandado pelo órgão inicial, certamente os licitantes teriam condições de oferecer maiores vantagens de preço em suas propostas.

(...)

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Representação da 4ª Secex, apresentada com base no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno, acerca de possíveis irregularidades na ata de registro de preços do Pregão nº 16/2005, da Coordenação-Geral de Recursos Logísticos do Ministério da Saúde, consoante o decidido no Acórdão nº 1927/2006-1ª Câmara.

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante das razões expostas pelo Relator, em:

9.1. conhecer da presente representação por preencher os requisitos de admissibilidade previstos no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno/TCU, e considerá-la parcialmente procedente;

9.2. determinar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão que:

9.2.1. oriente os órgãos e entidades da Administração Federal para que, quando forem detectadas falhas na licitação para registro de preços que possam comprometer a regular execução dos contratos advindos, abstenham-se de autorizar adesões à respectiva ata;

9.2.2. adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n.º 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão;

(grifei)

No caso acima, como se vê, o TCU não se opôs à utilização da figura do carona, limitando-se apenas a determinar a fixação de limites para a utilização de atas de registro de preços por outros entes ou órgãos 16.

O Tribunal de Contas do Estão de São Paulo, por sua vez, ao apreciar caso semelhante, determinou ao ente licitador que se abstivesse de admitir a figura do ‘carona’ em suas licitações para registro de preços e anulou o procedimento considerado irregular 17:

(...)

Não se desconhece, no sistema de registro de preços, a possibilidade de haver a conjugação de interesses de determinados órgãos participantes, sob a coordenação de um gerenciador, sendo-lhes facultada a utilização de uma mesma ata de registro de preços para eventuais e futuras contratações. Na prática, atendido o dever de prévio planejamento, a Administração cuida de pesquisar, anteriormente à realização da licitação, as necessidades de cada órgão, para que, estimada determinada quantidade, seja realizado certame para o registro de preço em ata, da qual podem, futuramente, se aproveitar os entes envolvidos na licitação.

Atualmente, por força não de lei, mas de disposição contida em Decreto, há quem admita a utilização da ata de registro de preços por quaisquer outros órgãos não participantes do processo licitatório, bastando, para tanto, consulta ao órgão gerenciador e consentimento do fornecedor, bem por isso denominados "caronas".

(...)

Advogam os defensores da figura do "carona" que a possibilidade de adesão tardia a uma ata de registro de preços, já válida e existente, confere às contratações públicas maiores celeridade e eficiência, evitando-se a realização desnecessária de diversos certames licitatórios para o mesmo propósito. Esquecem-se, no entanto, de que todo e qualquer meio que vise a assegurar a desejada eficiência na atividade da Administração deve obediência ao princípio da legalidade e da segurança jurídica, pilares do Estado de Direito. A figura do "carona", nos termos ora instituído por decreto, burla a regra de extração constitucional (artigo 37, XXI), segundo a qual "ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados, mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes".

Na boa companhia de doutrinadores, também penso que afronta os princípios da legalidade, isonomia, economicidade, vinculação ao instrumento convocatório e competitividade.

Não foi sem razão que o E. Tribunal de Contas da União, no acórdão n. 1487/2007, em sessão de 01-08-07, ao analisar representação contra edital de registro de preços promovido pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, acolhendo considerações expostas no voto do Ministro Relator Valmir Campelo, resolveu determinar que: "adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n. 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão".

Na visão de MARÇAL JUSTEN FILHO, o "TCU não proibiu formalmente a prática da ‘carona´ — até seria duvidosa a sua competência para adotar uma vedação com efeitos gerais e abstratos, vinculante para toda a Administração Pública. Mas daí não se segue que a prática da "carona" seja uma escolha que se configure como válida e legítima para os órgãos administrativos. O TCU incorporou razões jurídicas que devem ser tomadas em conta quando se pretender adotar a prática da ‘carona’. O Acórdão 1487/2007 demonstra que a contratação adicional, não prevista originalmente, é potencialmente danosa aos cofres públicos. Daí se segue que a sua adoção envolve a assunção do administrador público do risco de produzir uma contratação equivocada. A comprovação de que a prática da "carona" produziu enriquecimento injusto e indevido para o fornecedor privado deve conduzir à severa responsabilização dos agentes estatais que a adotaram". Ademais, a "carona" é campo fértil para o administrador ímprobo que, na perspectiva de adquirir bens ou serviços, poderá negociar com contemplados(s) em ata(s) realizar licitação ou optar por celebrar o contrato com aquele que lhe ofereça vantagem ilícita, em grave afronta aos princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade.

(...)

2.4 Diante do exposto, por entender que as dificuldades de ordem legal e operacional impedem a adoção do sistema de registro de preços quando se tratar de hipótese de prestação de serviços de natureza continuada, determino seja anulado o certame.

As decisões acima expostas demonstram que a prática do "carona", da forma como vendo sendo utilizada pelos entes públicos, é perniciosa e merece ser coibida. Por outro lado, detectados os vícios decorrentes da utilização abusiva do "carona", soa mais razoável criar mecanismos de controle para corrigir as imperfeições (mediante a expedição de regras gerais, por exemplo) do que simplesmente expurgá-lo do ordenamento jurídico.

Por fim, e de forma a evitar abusos como os acima apresentados, o uso da ata de registro de preços deve ser formalizado em processo administrativo específico do órgão ou ente que solicita o empréstimo da ata, a ser instruído com, no mínimo 18: a) cópia da decisão de homologação da licitação promovida pelo ente público e da publicação da ata de registro de preços; b) justificativa da necessidade de aquisição do bem e comprovação da vantajosidade da aquisição por meio da adesão ao sistema de registro de preços de outro ente público; c) comprovação de que o preço a ser pago é compatível com o praticado no mercado à época da adesão à ata; d) documento que ateste a concordância do ente gerenciador em empresar sua ata de registro de preços; e) documento que ateste a concordância do beneficiário da ata (fornecedor) em fornecer o bem ou serviços.

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Sobre o autor
Sérgio Veríssimo de Oliveira Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Procurador do Município de Londrina (atualmente na área de licitações e contratos administrativos). Ex-Procurador-Geral do Município de Londrina. Sócio do escritório Correia, Kodani e Oliveira - Advocacia & Consultoria. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Municipal. Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA FILHO, Sérgio Veríssimo. O sistema de registro de preços e o "carona". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2813, 15 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18671. Acesso em: 22 nov. 2024.

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