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Violência contra a mulher: um caso concreto.

Lei e justiça... um hiato longínquo

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Esta semana me deparei com uma situação extremamente difícil, em que pude questionar a sistemática normativa penal de violência à mulher e sua eficácia. Estive presente em uma audiência preliminar, designada com base no art. 16 da Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, em que a vítima, após ter relatado diversos abusos por parte do agressor, renunciou sua representação.

No momento da audiência, ninguém entendeu direito, pois a vítima havia se dirigido ao fórum pelo menos umas três vezes após o ajuizamento da ação e relatado casos de novas ameaças e agressões, o que redundou na expedição de mandado de prisão para o acusado. No entanto, desde dezembro de 2010, este não havia sido cumprido pela polícia.

Embora o acusado não estivesse presente na audiência, a vítima estava recatada, retraída, com ar sofrido e amiúda no canto da sala de audiências. Diante da compaixão ofertada pela promotora de justiça e da solidariedade prestada pelo juiz e pelo defensor público presente, a vítima acabou confirmando o que todos já imaginavam: ela continuava sendo ameaçada pelo acusado.

Relatou, então, que aquele é andarilho e que colocou-o em sua casa como forma de caridade, sendo que em nenhum momento teve qualquer relacionamento amoroso com ele. Dormiam em quartos separados e sequer dividiam as despesas. Contudo, após menos de uma semana, o acusado agrediu-a e molestou-a sexualmente.

Preso em flagrante, em seu APF, teve a felicidade de não constar qualquer menção à violência sexual. O delegado apenas tipificou o fato como lesão corporal leve e arbitrou fiança no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais). Prontamente paga, o acusado foi colocado em liberdade em menos de vinte e quatro horas após os abusos.

Depois disso, continuou ameaçando a vítima e perseguindo-a, proferindo novas agressões físicas e morais. A vítima relatou, ainda, que em um dos momentos de agressão chegou a parar uma viatura da polícia que vinha passando e, mesmo diante da decisão judicial de medida protetiva, os policiais quedaram-se inertes e nada fizeram para ajudá-la.

Em audiência, questionada, a vítima manifestou sem qualquer vacilação: "quero desistir. Fui orientada".

Em meio às insistências da promotora para que continuasse a demanda e lutasse pelos seus direitos, a vítima disse: "Me perdoem, senhora promotora e seu juiz. Eu entendo o que querem me dizer. Mas, hoje, lutar pelos meus direitos e pela minha vida significa desistir desta ação. Vocês podem falar que decretam a prisão do Pedro, mas quanto tempo ele ficará preso? Quinze dias? Um mês? Me desculpe falar, mas vocês digitam essa decisão aí no computador e depois vão para as suas casas em segurança, com suas famílias. Eu volto ao mesmo lugar de onde vim, no meio do nada, sem dinheiro e correndo um risco ainda maior. Fui orientada, busquei tanto quanto pude, mas no dia em que fui violentada e agredida a minha vida valeu apenas R$ 600,00! Por R$ 600,00 o caso ficou resolvido no mesmo dia para ele. O meu laudo de violência sexual não chegou no processo até agora. Eu vou ao IML e eles me dizem que o laudo já veio pra cá e aqui me dizem que tenho de ir lá. Me desculpem, mas não acredito na justiça. Hoje, cuidar de mim e da minha segurança significa desistir dessa ação. Quando saí de casa, passei pelo Pedro e ele disse que a minha vida estava nas minhas mãos, dependia do que eu ia dizer para o juiz nesta audiência. Então, eu repito: ‘quero desistir!’ Se as autoridades não me respeitam e não me amam, pelo menos eu tenho de me amar e tentar viver".

A promotora ainda fez mais uma tentativa, ressaltou que mesmo a vítima desistindo da ação, ainda poderia ser assassinada pelo acusado e que o fato de desistir da ação não lhe daria qualquer garantia de sobrevivência. E a vítima prontamente respondeu que sabia disso, mas tinha certeza que tinha mais probabilidades de viver se desistisse da ação do que se continuasse.

Então, como a última palavra é a sua mesmo, o que aconteceu? A vítima permaneceu firme na sua convicção e desistiu da ação. O réu teve a punibilidade extinta e a ação foi arquivada.

Podemos dizer que a vítima estava errada? Certamente que não.

A Lei Maria da Penha inegavelmente trouxe à lume a antiga discussão sobre os direitos da mulher no âmbito doméstico, notadamente no que tange às agressões físicas e psicológicas. Contudo, não traz mecanismos hábeis para assegurar sua eficácia.

Quando o magistrado promove a prisão de um indivíduo, deve fundamentá-la com base na lei. No processo penal, especificamente, sabe-se que a prisão cautelar é meio extraordinário, não servindo de regra em qualquer momento, para qualquer delito. O réu desta ação específica comentada não tinha antecedentes, não teve o crime de estupro capitulado no flagrante e sequer tinha contra si o laudo do IML. Como manter esse indivíduo no cárcere por mais de 1 mês que seja?

Ainda que o magistrado entendesse pela sua periculosidade, os crimes que lhe foram imputados possuem penas tão diminutas que, sobrevindo condenação, o réu certamente não atingiria o necessário para cumprimento de pena em regime fechado. Então, juridicamente falando, não haveriam meios de manter no cárcere esse indivíduo por tempo razoável.

Na área da ação penal, a idéia de condicionante a representação tem o condão de proteger a vítima em sua intimidade e dignidade. Contudo, nas mais das vezes lhe tolhe o próprio direito de ver a justiça ser feita. Os indivíduos ainda são hipossuficientes diante das normas e políticas públicas que lhes são deferidas.

Em que pese a máxima de Miguel Reale, que defende o fato de o nascimento da lei remontar os valores desenvolvidos pela sociedade, temos que a sua criação individualmente não basta como medida de prevenção e punição. Isso porque deve coadunar com os princípios sistêmicos do ordenamento em que se insere, de modo a não deixar a descoberto ilícito grave.

Portanto, podemos entender que esse é mais um fator de descrédito do Estado como legitimado representante do povo. Segundo os parâmetros da ciência política, o poder é exercido por duas bases: material e de crença. Naquele, é necessária a utilização de recursos coativos para que se mantenha o poder, como por exemplo a força física, as penas privativas de liberdade, pecuniárias, etc. No entanto, quando o poder é provido de crença, não se mostra viável nem necessário o uso da força, uma vez que as pessoas entendem o poder como legitimado, escorreito e o respeitam sem que precisem ser forçadas a isso.

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Coadunando os argumentos delineados, podemos concluir que a população brasileira anda tão desacreditada do Poder Público em geral que nem mesmo a coação física é capaz de lhes fazer cessar os atos atentatórios da dignidade humana. Isso porque o poder estatal, notadamente o penal, não está sendo aplicado de forma a se apresentar como poder efetivo. Nem a força punitiva (porque não é aplicada), nem a prevenção justificada na norma são capazes de fazer cessar os atos violentos da comunidade.

O caso da vítima representado neste artigo é de extremo valor reflexivo, na medida em que nos mostra que a simples edição de norma condenatória não é capaz de fazer cessar ou, ao menos, diminuir significativamente os ilícitos que tipifica. Muitas das vezes, há mais barulho do que trabalho efetivo.

Há iminente confronto entre valores individuais, aplicação das normas legais e direitos humanos considerados como um todo. De um lado, a população requer punição para os atos que entende ilegítimos. De outro, há a norma que apenas tipifica o delito, sem se debruçar efetivamente sobre as nuances jurídicas sobre o assunto. E, por fim, há os ferrenhos defensores dos direitos humanos que, imbuídos do sentimento de compaixão desenvolvido sobre o sistema penitenciário brasileiro, entendem que todo o ser humano necessita de outras chances ou, pelo menos, de mais um período de liberdade para evitar se aperfeiçoar como um efetivo delinqüente.

É certo que todos os entendimentos aqui expostos merecem atenção. Contudo, são fatores que devem se unir para que juntos possam criar uma sensação de justiça social.

O caso concreto aqui demonstrado é um claro exemplo de impotência estatal criada pelos defeitos nos seus próprios agentes operadores, nas normas embasadoras e na exacerbada sede de aperfeiçoamento. A vítima aqui representada teve de encontrar o seu meio pessoal de justiça privada para escapar putativamente das agressões que vinha sofrendo. Nitidamente, o Estado acobertou os direitos humanos do acusado em preterição aos da vítima.

É óbvio que podemos apontar erros na lavratura do APF, que não logrou tipificar o estupro; na autoridade policial que arbitrou a fiança sem analisar as nuances da situação e incorrida no erro da tipificação; no magistrado que deferiu a soltura inicialmente e não observou a necessidade de emenda da tipificação; neste ainda quando não diligenciou no cumprimento do mandado de prisão expedido há tempos; no Ministério Público que passou despercebido pelo equívoco cometido pela autoridade policial; ainda quando não exerceu fielmente sua atividade de controle externo dessa atividade; no fato de a Comarca não possuir acessibilidade a programas de proteção à vítima; e assim por diante.

Apesar disso tudo, o fato é que a própria vítima teve de fazer a sua justiça. Ela mesma teve de encontrar meios de se proteger, uma vez que se viu desprovida de qualquer amparo pelo Estado, seu guardião. Tudo isso nos faz refletir sobre a responsabilidade social que envolve o trabalho que cada cidadão, no menor de seus trabalhos. O problema aqui relatado não começou naquela delegacia específica, mas vem de longe, através de todo o modelo estatal que vimos alimentando.

Frequentemente nos queixamos das governanças, dos agentes políticos, mas não fazemos nada de concreto para que a situação mude. A ação não deve e nem precisa ser grandiosa, como nos candidatarmos ao cargo de liderança ou fazermos concurso para o agente detentor do poder, mas podemos começar no momento de votar, no momento de conscientizar nossos filhos e as próximas gerações no sentido, no momento de entender como nosso o problema do semelhante (porque pode vir a ser nosso)... Não podemos mais nos deixar levar por uma imagem de bondade representada por palavrinhas bonitas escritas numa lei, palavras que prometem repreender o agressor de um cônjuge sem termos a absoluta certeza de isso efetivamente ocorrerá conforme o panorama sistêmico brasileiro.

Que Deus abençoe a vítima aqui relatada que é um caso real... espero sinceramente que sua medida tenha sido válida pelo menos para mantê-la viva. E que este exemplo sirva de lição para todos nós que, de alguma forma, operamos o Direito e para todos aqueles que pretendem contribuir para um mundo melhor!

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Sobre a autora
Lívia Cristina Carvalho Araújo do Nascimento

pós-graduada em Direito Penal, servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Lívia Cristina Carvalho Araújo. Violência contra a mulher: um caso concreto. : Lei e justiça... um hiato longínquo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2816, 18 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18716. Acesso em: 8 nov. 2024.

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Título original: "Lei e justiça... um hiato longínquo".

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