IV – O poder diretivo sobre os instrumentos corporativos
Prevalece, também, o entendimento de que o empregador poderia monitorar inclusive os dados pessoais acessados pelo empregado por meio das estações de trabalho que lhe são disponibilizadas pelo empregador.
Para tanto, dentre outros argumentos, defende-se que, quando o empregado acessa os seus dados pessoais em computadores corporativos, acaba renunciando ao seu direito de privacidade, porquanto ciente de que aquele instrumento se destina exclusivamente ao desempenho de atividades de caráter laboral.
Em que pese a força desse argumento, entendo que, nessas situações, a questão da possibilidade ou não de monitoramento é um pouco mais delicada, basicamente por dois motivos: um de ordem ontológica, ligado à natureza dos dados acessados; e outro de ordem lógico-jurídica, ligado à extensão dos efeitos imanentes a uma relação jurídica.
É que, por primeiro, os dados pessoais acessados por meio das estações de trabalho são total e ontologicamente diferentes daqueles "dados de conteúdo pessoal" produzidos por intermédio dos e-mails corporativos, a ponto de desaconselhar, ao menos de antemão, a adoção do mesmo raciocínio.
Como acima sustentei, inclusive pedindo vênia aos entendimentos em contrário, a própria ferramenta de e-mail corporativo faz com que os dados nela transitados, independentemente de seu conteúdo, transcendam a figura do empregado, passando também a abranger a figura da própria empresa, o que significa dizer que o veículo de materialização daqueles dados (caixa de e-mail), porquanto de caráter corporativo, acaba determinando a natureza corporativa dos próprios dados, ainda que possam vir a apresentar "conteúdo pessoal". Não é o mesmo, contudo, do que se sucede na hipótese ora discutida, pois, diferentemente do que ocorre com aqueles dados que se materializam por intermédio do uso de e-mails corporativos, aqui os dados pessoais são ou foram "produzidos" por veículos pessoais (ex. e-mails pessoais, sites privados, etc.), tendo sido apenas "acessados" por intermédio de estações de trabalho, sem interferir na natureza e na estrutura do dado.
Diante dessas peculiaridades, embora até reconheça que a questão possa, em determinadas situações, ser analisada sob o ângulo de uma eventual renúncia, por parte do empregado, de seu direito ao sigilo de seus dados pessoais, via de regra a análise deve ser feita à luz de um juízo de proporcionalidade do poder fiscalizatório, mais especificamente de um juízo por meio do qual se investigue a disponibilidade ou não de outros meios menos onerosos e igualmente capazes de evitar o uso irregular dos equipamentos de trabalho por parte do empregado.
Isso porque, quando o empregador não implementa mecanismos para impedir o acesso, por parte do empregado, a dados pessoais, e existem meios aptos a tanto, não me parece razoável afastar uma esfera de privacidade materialmente "consentida" (ainda que não o seja formalmente, nos termos de eventual regulamentação em sentido contrário) em prol de um monitoramento a posteriori de tais dados. Em outras palavras, não se afigura razoável cogitar de quebra de sigilo dos dados pessoais acessados no ambiente de trabalho, se existentes meios menos onerosos a impedir, desde logo, o seu acesso. Faltaria, nesses casos, o elemento "necessidade" a que alude a doutrina alemã ao estruturar o princípio da proporcionalidade (conhecido, no direito norte-americano, como princípio da razoabilidade) [12]. De ordinário, pois, há de prevalecer o direito ao sigilo, passível de quebra apenas sob a cláusula de reserva de jurisdição a que alude o art. 5° da Constituição.
Para que isso fique ainda mais claro, basta imaginar a hipótese em que o empregado acessa sua conta bancária a partir de sua estação de trabalho, e o empregador, a pretexto de investigação de desvio de verbas por parte de seu empregado, tenta opor-lhe seu poder de monitoramento, buscando acesso aos dados bancários acessados. Nesse caso, caso assim aja o empregador, ainda que por suspeitas supostamente fundadas, terá ele praticado flagrante ato ilícito, conforme inclusive já se decidiu:
RECURSO DE REVISTA. DANOS MORAIS. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. EMPREGADO DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. OFENSA AO ARTIGO 5.º, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO PROVIDO. Quanto à questão relativa ao reconhecimento do dano moral em situações que envolvem a quebra do sigilo bancário de empregados de instituições financeiras, tem esta Corte entendido que o procedimento constitui conduta arbitrária adotada pelo empregador, sendo verificada a invasão à vida privada do empregado e ofendidas as disposições do artigo 5.º, inciso X, da Constituição Federal. Recurso de Revista conhecido e provido para restabelecer a sentença quanto à condenação ao pagamento de indenização por danos morais e seus consectários. ( RR - 96000-49.2002.5.12.0029 , Relatora Ministra: Maria de Assis Calsing, Data de Julgamento: 23/09/2009, 4ª Turma, Data de Publicação: 09/10/2009)
Esse, então, é o primeiro dos argumentos a que acima me referi, aquele que anunciei como sendo de ordem ontológica. O outro, por sua vez de ordem lógica, está relacionado à própria extensão dos efeitos imanentes a uma relação jurídica. É que, ainda que eventualmente se reconheça o direito do empregador de monitorar os dados pessoais acessados por seus empregados no ambiente de trabalho, não se pode simplesmente ignorar o direito de privacidade de terceiros, sobretudo daqueles que, por exemplo, encaminham uma mensagem pessoal ao e-mail pessoal do empregado. Como a relação empregatícia se traduz num vínculo obrigacional, restrito, portanto, à esfera jurídica das partes contratantes, parece-me que o terceiro estranho à relação não pode ser de qualquer forma atingido pelo poder de fiscalização daquele empregador perante o seu empregado, mesmo porque não possui meios de antever o local em que o e-mail por ele enviado será acessado por seu destinatário.
V – O poder diretivo como indispensável à precaução de riscos pelo empregador
Ainda no tocante à discussão acerca da possibilidade ou não de o empregador monitorar os dados pessoais acessados nas estações de trabalho disponibilizados aos seus empregados, parte da doutrina, ao se posicionar pela possibilidade de monitoramento, lança como justificativa o argumento da necessidade de o empregador de se precaver contra os riscos inerentes à sua responsabilização (objetiva) pelos atos ilícitos eventualmente praticados por seus prepostos.
Embora esteja de acordo com essa posição, tenho uma certa preocupação com a sua adoção irrestrita e acrítica, pois, ao partir da inferência de que um fim de "proteção contra o risco e a responsabilização" justificaria o meio "monitoramento de dados" em ordem a "privar" a privacidade do monitorado, ela se assenta num mutualismo de meios e fins cuja potencialidade lesiva a História já comprovou à exaustão.
Do ponto de vista formal abstrato, a logicidade dessa inferência me parece inatacável, até porque me faz lembrar – ainda que longinquamente - daquela consagrada "máxima" de MAQUIAVEL de que "os fins justificam os meios", hoje revigorada no Direito com a chamada "teoria dos poderes implícitos" [13] (teoria essa, aliás, que admito com reservas, por motivos que ora prefiro omitir por não guardarem pertinência estrita com a presente discussão).
Todavia, partindo de uma concepção garantista e humanista de Estado, de Direito, e ipso facto de sociedade, que é o que exige o nosso sistema jurídico-político, essa inferência se afigura um tanto quanto incompleta, haja vista que, a rigor, os fins só justificam os meios na medida em que os meios também o sejam justificáveis em termos de proporcionalidade/razoabilidade; em outras palavras - desta vez fazendo alusão aos elementos estruturantes do princípio da proporcionalidade tal como concebido pela doutrina alemã -, os meios, para serem proporcionais, devem não só ser "adequados", isto é, aptos para atingir o fim pretendido, como também "necessários" – leia-se: o menos oneroso possível -, e "proporcionais em sentido estrito", é dizer, justificáveis à luz do sacrifício de direitos.
Logo, embora seja sustentável a afirmação de que o poder de monitoramento dos instrumentos de trabalho tem por fundamento a necessidade de o empregador se precaver contra os riscos, esse fundamento não é por si só suficiente para justificar possibilidade, por vezes drástica, de intervenção na esfera pessoal do empregado.
VI – Da necessidade de regulamentação da matéria
Em vista de todas essas celeumas e complexidades, penso que não resta outra saída senão admitir a premente necessidade de regulamentação da matéria, sobretudo para fins de maior segurança das relações jurídico-laborais.
Porém, considero importante fazer outra advertência, de certo modo semelhante à que fiz no tópico anterior: a tão-só observância, por parte do empregador, a essa eventual regulamentação não pode ser considerada suficiente, por si só, para obstar o reconhecimento de eventuais afrontas aos direitos de privacidade do empregado; mesmo que existente regulamentação formal, e mesmo que as suas determinações sejam observadas em sua totalidade, ainda assim não se tem uma garantia completa de proteção da esfera de privacidade do empregado, nada impedindo que eventualmente se reconheça a ocorrência de eventual "privação" indevida de sua privacidade em determinadas circunstâncias, tudo a depender, insista-se, de cada situação concreta.
Repetindo, para que fique ainda mais claro, concordo com a estipulação de regulamentações e diretivas gerais, desde que se tenha consciência de que isso não é suficiente para definir peremptória e exaustivamente quando haverá e quando não haverá "privação" indevida da privacidade.
Afinal, nunca é demasiado lembrar a antiga lição jusfilosófica de que "não se criam fatos com palavras, ainda que essas palavras saiam da boca da lei", em que se deixa assente a impossibilidade de o legislador prever, numa simples fattispecie geral e abstrata, toda a gama e variedade de situações do mundo da vida, sobretudo no contexto dessa nossa "era digital", hoje e mais do que nunca fomentada por um "Capitalismo Selvagem", que faz com que os fatos muitas vezes se transformem mais rapidamente do que os seus próprios valores.
VII - Conclusões finais:
Resumindo:
a)em princípio, devem ser reconhecidos ao empregador "poderes" de controle e de direção perante seus empregados, porque, além de tais poderes serem ínsitos ao vínculo de subordinação que caracteriza toda relação de trabalho, podem ser justificados no fato de o empregador assumir os riscos do negócio (art. 2° da CLT c/c art. 932, III, do CCB), e no fato de monopolizar a propriedade dos meios de produção.
b)porém, qualquer que seja a relação social de que faça parte, a pessoa humana deve, antes e acima de tudo, ser considerada e tratada como tal, e, por isso, também nas relações de trabalho há de ser reconhecida e assegurada ao empregador uma esfera de privacidade passível de proteção jurídica, até porque a Constituição não faz ressalva alguma – quer de ordem circunstancial, quer de ordem temporal, quer de ordem espacial – no tocante à necessidade dessa proteção.
c)logo, os dois direitos devem se equilibrar reciprocamente na medida dos limites e das possibilidade de sua harmonização em cada situação concreta da vida, sempre sob as balizas de um juízo de ponderação orientado pelo princípio da proporcionalidade/razoabilidade.
d)como essa harmonização depende necessariamente das especificidades de cada situação concreta, conclusões tomadas a priori tornam-se desaconselháveis, seja no sentido de reconhecer a privacidade do empregado como uma barreira intransponível à ingerência do empregador, seja no sentido de definir, de antemão, que o direito à privacidade de um empregado deva sempre e necessariamente ceder completamente perante o poder fiscalizatório do empregador.
e)com relação aos e-mails corporativos, em princípio as mensagens que nele transitam a título de envio ou de recebimento não dizem respeito ao patrimônio individual do empregado enquanto pessoa, e, portanto, não se enquadram no âmbito protetivo da cláusula constitucional da privacidade (art. 5°, XII, da CRFB), podendo ser monitoradas e fiscalizadas, formal e materialmente, pelo empregador, independentemente de seu conteúdo (pessoal ou profissional), desde que tenha adotado uma política clara de restrições quanto ao uso das aludidas ferramentas, deixando expressamente consignada a possibilidade de seu monitoramento.
f)esse poder de monitoramento sobre o e-mail corporativo abrange inclusive as mensagens pessoais encaminhadas por terceiros, contanto que seja constatável, segundo um padrão de diligência mediana, que o endereço de e-mail destinatário seja de cunho corporativo.
g)por outro lado, com relação ao acesso a e-mail pessoal ou a sites não relacionados com as atividades laborais, não se justifica a sucumbência do direito de privacidade do empregado quando o empregador dispõe de mecanismos para impedir o acesso, e não os implementa, caso em que o poder de monitoramento se revelaria desproporcional, pela existência de meio menos oneroso de monitoramento.
h)não bastasse, ainda com relação às situações do item anterior, há casos em que merece ser preservado o direito de privacidade do terceiro que encaminha mensagens pessoais ao e-mail (pessoal) do empregado, seja porque, em regra, não pode ele ser atingido por um poder decorrente de uma relação da qual não faz parte (relação entre o destinatário da mensagem e o seu empregador), seja porque não possui condições de antever o local em que a sua mensagem será acessada pelo destinatário (no caso, o empregado).
i)embora seja sustentável a afirmação de que o poder de monitoramento dos instrumentos de trabalho tem por fundamento a necessidade de o empregador se precaver contra os riscos, esse fundamento não é por si só suficiente para justificar possibilidade de intervenção na esfera pessoal do empregado, porque os fins só justificam os meios na medida em que os meios também o sejam justificáveis em termos de proporcionalidade/razoabilidade.
j)embora razões de segurança jurídica recomendem a regulamentação da matéria, deve-se alertar para o fato de que a tão-só observância, por parte do empregador, a essa eventual regulamentação não pode ser considerada suficiente, por si só, para obstar o reconhecimento de eventuais afrontas aos direitos de privacidade do empregado.