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Prisão preventiva para garantir execução de medida protetiva de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher

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4. A prisão cautelar para assegurar a observância da medida protetiva

De pronto, não há como admitir que o inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal seja interpretado de maneira isolada, isto é, não há como justificar constitucionalmente a medida excepcional da prisão preventiva, mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, apenas e tão-somente com o intuito de assegurar a execução de medida protetiva. Se assim fosse, teríamos o retorno a uma hipótese automática de decretação de prisão processual, o que seria incompatível com a necessária cautelaridade que deve informar a medida restritiva.

A tarefa, então, que se põe ao intérprete é compatibilizar, harmonizar, a prescrição inserta no referido inciso IV do artigo 313 com a sistemática das prisões processuais no ordenamento pátrio.

A leitura do referido inciso guarda relação apenas e tão-somente com a prisão preventiva. Assegurar a execução das medidas protetivas de urgência – sejam as que obrigam o agressor, seja as que se referem à ofendida (artigos 22 a 24 da Lei Maria da Penha) – em nada se refere com as circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva atinentes à asseguração da aplicação da lei penal ou à conveniência da instrução criminal. Em verdade, a previsão do inciso IV só guarda pertinência com a garantia da ordem pública.

Isso não quer dizer que seja possível tomar, ipso facto, a garantia da ordem pública como decorrência dos casos em que presente violência doméstica e familiar contra a mulher. O caso é de apreciação conjugada da necessidade de observância da medida protetiva em face da exigência de resguardo da ordem pública, de sorte a autorizar a prisão preventiva.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra situação que permite intelecção assemelhada. Com efeito, a Lei 7.492, de 1986, veio à lume para definir os crimes contra o sistema financeiro. Seu artigo 30 dispõe o seguinte: "Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada". A leitura isolada do dispositivo legal daria a entender que seria possível a decretação da prisão preventiva apenas diante da presença de crime que tivesse lesão de magnitude.

No entanto, diante de caso concreto, que noticiava a prática de crime com lesão financeira de grande magnitude, a Corte Constitucional forneceu ao dispositivo exegese que exigia a sua compreensão conjugadamente com as razões de prisão preventiva estabelecidas no art. 312 do Código de Processo Penal, sob pena de se incorrer inadvertidamente em caso de antecipação evidente da pena. No julgamento do HC 80.717/SP, a Ministra Elen Gracie salientou expressamente a melhor leitura do dispositivo "(…) significa que a magnitude da lesão não é razão autônoma para decretação da preventiva, mas que essa dimensão deve ser considerada, quando presentes os pressupostos que a autorizam" (STF, Tribunal Pleno, julgado em 13/6/2001, Ementário 2142-5/707). Nesse mesmo julgamento, salientou o voto condutor do acórdão que a garantia da ordem pública não se resume a evitar a ocorrência de outros delitos, mas abarca a necessidade de resguardar a credibilidade e a respeitabilidade das instituições públicas. Ainda, destacou que as condições pessoais hão de ser igualmente sopesadas na consideração da necessidade de resguardo da ordem pública.

Essa intelecção conjugada do dispositivo há de ser transportada para os casos de exegese do inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal. A necessidade de assegurar a execução das medidas protetivas de urgência, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, configura justamente situação a reclamar garantia: em outras palavras, trata-se de minudenciamento casuístico, pelo próprio legislador, de uma das hipóteses autorizativas ao magistrado de vislumbrar, na espécie, situação que permite a medida extrema da prisão preventiva, justamente para assegurar a ordem pública.

Assim como ocorre com a leitura do art. 30 da Lei 7.492/86, a jurisprudência há de emprestar intelecção que conjugue a necessidade de assegurar a execução da medida protetiva de urgência com os pressupostos, circunstâncias e requisitos legais da prisão preventiva para resguardo da ordem pública. Daí, portanto, a necessidade de superação de postulados que, fixados abstratamente, não permitem incidência naqueles casos de patente descumprimento pelo agressor da medida protetiva de urgência fixada judicialmente.

Vale lembrar que são medidas protetivas de urgência em face do agressor: suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição de determinadas condutas; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; prestação de alimentos provisionais ou provisórios. As condutas que poderão ser proibidas, enumeradas em rol aberto (artigo 22, § 1.º), incluem: aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida.

Já as medidas protetivas de urgência em relação à ofendida são as seguintes (artigo 23): encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; determinar a separação de corpos. O artigo 24 menciona especificamente as medidas de interesse patrimonial, que poderão ser expedidas liminarmente: restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Para uma abordagem geral da Lei Maria da Penha, confira-se nosso trabalho anterior em SUXBERGER: 2007.

Nesse particular das medidas protetivas de urgência, é evidente a inspiração no direito norte-americano, em que são comuns os mandados de restrição (restraining orders), com restrição de nítida preocupação prevencional à liberdade ambulatória do agressor. Se a inspiração veio do direito norte-americano, parece igualmente virem a reboque as preocupações que lá existem a respeito da mal resolvida eficácia de tais medidas. De qualquer sorte, registre-se que a utilização de restrições de natureza cível revela-se de logo muito mais vantajosa que daquelas de natureza criminal. A propósito, é precisa a contribuição de Carolyn Ko (2002), que distingue as chamadas restraining orders das protective orders. A partir da clareza dessa distinção, as particularidades de cada uma das medidas previstas na Lei Maria da Penha se tornam melhor compreensíveis, inclusive para se vislumbrar a necessidade de, em caso de descumprimento, decretar a medida extrema da prisão preventiva para resguardo da ordem pública.

Desse modo, fixada a medida protetiva de urgência por decisão judicial e o agressor, devidamente intimado, incorre em descumprimento – ainda que a conduta daí resultante, em relação à sua tipicidade jurídico-penal, não traga preceito ensejador de, ao final, recolhimento à prisão –, a hipótese autorizará, mediante decisão fundamentada, a decretação da prisão preventiva, como medida de resguardo da ordem pública, se patente o risco de frustração da medida (de proteção ou de restrição) pelo agressor.

A Lei Maria da Penha é cristalina, em seus preceitos, em sua principiologia, bem assim em seus vetores político-criminais, no sentido de não admitir a reiteração de condutas violentas (aqui considerados os diversos tipos de violência estabelecidos no artigo 7.º do diploma legal) em desfavor da mulher em contexto familiar ou doméstico.


Conclusão

A Lei Maria da Penha não surgiu de esforço imaginativo isolado do legislador. Muito pelo contrário: decorreu das obrigações expressas assumidas pelo Estado brasileiro no sentido de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O contexto brasileiro é igualmente credor desse tratamento, quando se tem em conta a crueldade das estatísticas que demonstram ser o Brasil um dos países mais violentos do mundo em relação à prática de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Longe de se tratar de um ponto de partida para a interpretação jurídica de seus dispositivos, o diploma legal em referência – a Lei 11.340 de 2006 – há de ser compreendido como a culminação das lutas sociais duramente efetivadas ao longo do tempo no sentido de tornar visível o contexto de dominação e violência contra a mulher. A Lei, que isso fique claro, substancia garantia – não só jurídica, mas política, cultural, social etc. – de que todos os agentes públicos responsáveis pela realização do sistema de justiça e também da promoção da segurança pública passem a atuar consoante a visualização desse contexto e a partir de um compromisso ético de modificação dessa realidade.

Não se cuida de um voluntarismo político ou mesmo opção pessoal dos agentes públicos: a positivação dessa opção política do Estado brasileiro – nos planos internacional, constitucional e legal – não deixou margem para a criação judicial de soluções de casos concretos dissociada dessa preocupação de desestabilização e transformação dessa realidade. É hora de se compreender o enfrentamento da violência doméstica e familiar praticada contra a mulher a partir do respeito à complexidade do próprio tema (violência), bem assim da compreensão de que é hora de ofertar resposta multidisciplinar que vá além da resposta repressiva, mas que desta também não se olvida.

A prisão processual, no Brasil, para coadunar-se com as disposições constitucionais, só pode ser compreendida a partir de sua cautelaridade. A prisão preventiva, espécie principal das prisões processuais, reclama a observância de pressupostos (fumus comissi delicti e periculum libertatis), de requisitos legais (dispostos no art. 313 e 314 do Código de Processo Penal) e de circunstâncias autorizadoras (garantia da ordem pública, da conveniência da instrução criminal e da aplicação da lei penal).

A inserção do dispositivo processual, pela Lei Maria da Penha, que autoriza a prisão preventiva para assegurar a execução de medida protetiva de urgência fixada nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher não admite interpretação isolada. Exige-se que o referido dispositivo (inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal) seja interpretado a partir de uma conjugação, isto é, a partir de sua leitura conjunta com os autorizativos da prisão preventiva para garantia da ordem pública. Nesse particular, merece destaque essa circunstância autorizadora da prisão preventiva pode ser compreendida: (i) na necessidade de resguardo da integridade física ou psíquica do agressor ou de terceiros (no caso, a mulher ofendida); (ii) no objetivo de impedir a reiteração das práticas violentas contra a mulher em situação doméstica e familiar, desde que lastreados em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; (iii) na exigência de assegurar a credibilidade das instituições públicas – aqui, o respeito à decisão judicial que estabeleceu a medida protetiva ou restritiva – no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal.

É essa a leitura da compreensão atual do Supremo Tribunal Federal a respeito da prisão preventiva para garantia da ordem pública, adaptando-se as categorias lançadas pela Corte Constitucional aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. As razões de homogeneidade ou proporcionalidade, que levadas ao extremo impediriam tout court a imposição de custódia cautelar na maior parte dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que iterativa, estão a reclamar do intérprete leitura contextualizada e, principalmente, vinculada as razões do próprio Direito penal instrumentalizado na persecução penal.

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Acreditamos que, assim, o operador do Direito – nos tormentosos casos em que se depara com o fenômeno da violência de gênero – poderá afirmar o respeito à vinculação das condições de produção do conhecimento ao que se efetivamente se produz como conhecimento, reconhecer que a intelecção por ele realizada atende a uma função social emancipatória e, principalmente, comprometida com as consequências reais decorrentes do funcionamento do sistema de justiça criminal na vida das pessoas.


Referências bibliográficas

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Notas

  1. O raciocínio, levado ao seu extremo, permite a conclusão de que a prisão preventiva seria inviável nos casos em que o crime admitisse suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95) ou mesmo autorizasse, por ocasião da aplicação da pena, a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos (artigo 44 do Código Penal).
  2. A prevalecer a adoção da homogeneidade, tout court, em situações de violência doméstica, o que teríamos? Um simples exemplo é relevante (o exemplo, simplório, ocorre diariamente no Brasil): marido pratica lesão corporal leve em desfavor de sua esposa. Esta obtém medida protetiva de afastamento do lar e proibição de contato. No dia seguinte, o marido vai ao local de trabalho da esposa e pratica em desfavor dela injúria real e ameaça. Tanto o primeiro quanto os crimes subsequentes, por conta do quantum previsto em seus preceitos sancionadores, não ensejam recolhimento à prisão. O que fazer? A esposa busca, uma vez mais, polícia, Ministério Público e Judiciário. Obtém nova medida protetiva, agora, de aproximação, com fixação de distância mínima. O agressor, uma vez mais, aproxima-se da esposa, pratica nova ameaça (suponhamos, agora, com o uso de arma de fogo), injúria e difamação em desfavor dela. E então? A pergunta é: até que ponto o Estado deve tolerar o descumprimento de suas mandamentos injuntivos para obstar a mantença da violência contra a mulher? Ou, que interpretação é essa que convive com a falta de efetividade de garantias fixadas em todos os níveis normativos do Estado brasileiro (plano internacional, Constituição, lei federal) em favor da mulher que sofre violência doméstica e familiar?
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Sobre o autor
Antonio Henrique Graciano Suxberger

Promotor de Justiça no DF (MPDFT).Mestre em "Direito, Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (2005) e Doutor em "Direitos Humanos e Desenvolvimento" pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha, 2009).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Prisão preventiva para garantir execução de medida protetiva de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2840, 11 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18874. Acesso em: 4 mai. 2024.

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