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Ação renovatória: uma releitura da proteção do fundo de comércio sob seu aspecto funcional

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15/04/2011 às 17:33
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5. COMPARAÇÕES COM O MODELO FRANCÊS

A legislação brasileira acerca da renovação contratual das locações comerciais guarda extensa identidade com o estipulado no Código Comercial Francês, o que nos permite deduzir que este foi uma de suas principais fontes de inspiração. Pertinente, portanto, a comparação ora proposta.

Foi nesse sistema, denominado propriedade comercial que o legislador brasileiro procurou a inspiração para elaborar o nosso direito positivo. Semelhante na aparência, mas distinto na realidade, o direito brasileiro representa uma tentativa ousada, ao passo que o direito francês se mantém em uma atitude mais respeitosa às tradições do individualismo jurídico; enquanto o direito nacional confere uma renovação compulsória, o direito francês se limita a autorizar a renovação facultativa [22].

Contudo, o direito francês, mesmo admitindo um direito absoluto do proprietário em reaver o seu imóvel [23], possui algumas peculiaridades que não encontram correspondência em nosso sistema jurídico, e que, no entanto, conferem maior coerência, justeza e eficiência à solução do problema da renovação contratual dos contratos de locação comercial.

A constante referencia à obra do professor Alberto Buzaid no presente trabalho não se dá por comodismo. Efetivamente, poucos doutrinadores se debruçaram sobre o estudo das origens da proteção do fundo de comércio como o destacado jurista, sendo assim sua pesquisa valiosíssima. Contudo, se sua pesquisa é irretocável, de suas conclusões podemos divergir, como, por exemplo, do fato do autor considerar a proteção do fundo de comércio no direito brasileiro ousada, por possibilitar a renovação compulsória, quando no direito francês, em se tratando de imóvel destinado ao comércio, sempre existe a possibilidade de retomada.

Ocorre que, na prática, o comerciante e o seu fundo de comércio é mais bem protegido no direito francês. Isso porque enquanto no direito brasileiro os requisitos formais para a renovação são vários, bem como as possibilidades de negativa da renovação sem qualquer indenização ao locatário, no direito francês, somente em casos excepcionais o proprietário pode reaver o seu imóvel sem indenizar locatário pela perda do fundo de comércio. Existem ainda, outras vantagens em favor do locatário no direito francês.

Como exemplo, no direito francês inexiste contrato de locação comercial com prazo inferior a nove anos [24]. Este é o prazo considerado mínimo e compulsório (para o locador) para que o comerciante possa buscar o desenvolvimento do seu fundo de comércio e o consequente retorno do seu investimento [25].

Naquele ordenamento o pedido de renovação pode ser efetivado a partir de seis meses de antecedência da data de término do contrato, contudo, subsiste mesmo após o término do prazo contratual, podendo ser exercido a qualquer momento se houver a prorrogação por prazo indeterminado (permanência no imóvel) [26]. É curiosa a semelhança com a lei brasileira, que também menciona o prazo de seis meses, contudo, curiosamente, estipula que o pedido de renovação só poderá ser exercido com antecedência máxima de um ano, e mínima de seis meses, sendo, pelo entendimento dominante, completamente inadmissível após tal lapso temporal.

O pedido de renovação encaminhado pelo locatário pode ser realizado pela via extrajudicial [27] e da mesma forma deve se manifestar o locador, anuindo ou não com a renovação, aduzindo, no caso de recusa, sua justificativa. Como visto, em todos os casos de desfazimento da locação, inclusive quando o proprietário não concorda com a renovação, salvo na hipótese de violação grave do contrato por parte do locatário, este terá direito a uma indenização pelo despejo, que será avaliada de acordo com o prejuízo decorrente da perda do fundo de comércio [28].

É de se notar que no direito brasileiro a indenização pela desvalorização do fundo de comércio é prevista no art. 53, §3º da Lei do Inquilinato apenas na forma de exceção, no caso de não renovação por melhor proposta de terceiro, e de desvirtuação da destinação alegada no caso de retomada para uso próprio.

É correto salientar que no direito francês, a locação comercial tem um tratamento bastante diferenciado da locação residencial. No Código Comercial francês, a locação comercial constitui a alienação de um direito de propriedade de forma que ao ceder o seu imóvel a um inquilino para que nele desenvolva um fundo de comércio e colha seus frutos o proprietário concorda em se colocar em uma situação jurídica na qual só poderá reaver o seu imóvel se indenizar o inquilino pelo seu fundo de comércio, mesmo após o decurso do prazo contratual [29].

Como se vê, a legislação francesa, muito embora seja em vários aspectos, criticável, e considerada mais ligada ao individualismo jurídico na opinião de Buzaid, no âmbito da proteção do fundo de comércio, em termos práticos, é mais objetiva e coesa, harmonizando-se de forma mais compreensível com princípios de não enriquecimento sem causa e da proteção e desenvolvimento da ordem econômica.

É justamente por se considerar o sistema jurídico pátrio mais aberto que o francês, que o exemplo é deveras relevante. Tendo sido do estável modelo francês fonte de inspiração, cabe-nos, dentro do direito pátrio marcado por uma maior avidez por evolução no conhecimento jurídico, buscar a superação daqueles princípios originais, hoje centenários, buscando paulatinamente a transformação do sistema jurídico objetivo.


6. SUGESTÕES DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA

É preciso reconhecer que a busca de uma ponderação de princípios e a aplicação da ratio legis não é fácil no atual modelo de proteção ao fundo de comércio. A crítica que se faz à manutenção desse sistema é que ele compele o locatário a buscar o judiciário, antes mesmo do fim do prazo contratual. Como visto, dependendo do caso, será necessária, inclusive, a propositura de uma ação por ano enquanto se objetivar a manutenção da locação. Não é admissível que em tempos de busca de soluções para desafogo do judiciário, ainda tenhamos normas que praticamente obrigam as partes a litigar, desperdiçando a atividade jurisdicional com questões viciosas, ou seja, criadas pelo próprio sistema.

O problema é que ainda subsiste um exacerbado receio de influir nas questões atinentes à propriedade. Admite-se a lei como está, mas continua-se a oferecer resistências à mitigação dos poderes inerentes à propriedade, apegando-se a vetustos conceitos patrimonialistas.

Visionário foi o legislador, há mais de 75 anos, ao estabelecer a proteção do fundo de comércio. Contudo, merece crítica a manutenção de um mesmo esquema por tantos anos, sem avanços significativos. O exercício do direito do locatário à renovação se assemelha a uma corrida de obstáculos. Em verdade, os requisitos para a configuração do direito de propositura da ação renovatória em favor do locatário já não fazem qualquer sentido, e hoje, tendo-se como plenamente superada a intangibilidade do direito de propriedade, essa condição torna-se ainda mais perceptível.

É salutar a possibilidade de uma interpretação criativa da lei, a exemplo de como se verificou após a lei de luvas (1934) em sede doutrinária e jurisprudencial, e culminou com o reconhecimento da acessio temporis expressamente na atual legislação vigente. Entretanto, com relação às demais críticas desferidas contra o atual modelo de proteção do fundo de comércio, devido à rigidez das normas que regulam a ação renovatória, a interpretação contrária ao texto legal, é capaz de gerar insegurança jurídica, e por isso tem seus limites, especialmente nas questões procedimentais.

Tendo como certo que não se pode sacrificar a segurança jurídica em prol de uma suposta igualdade material, pois, a própria segurança jurídica é princípio fundamental que reconduz à noção de igualdade, em alguns pontos resta apelar ao legislador que promova alterações a fim de dar maior eficácia e justeza às normas que regem a proteção do fundo comércio.

Como já ressaltado, pela legislação vigente, é o locatário obrigado a, periodicamente, propor ação renovatória, como única forma impor a preservação do seu fundo de comércio perante o locador. Nesse sentido, dada a tendência e objetivo pela preservação do fundo de comércio, mais útil seria a inversão dos papeis. Ao invés de impor ao locatário, periodicamente o ajuizamento de ação renovatória, possibilitando a sua manutenção no imóvel, um mais elevado nível de coerência e eficiência poderia ser alcançado com o deslocamento da iniciativa de desfazer a locação para o locador, ou ainda, como visto no exemplo do direito francês, tornar o pedido de renovação extrajudicial, bem como manejável durante a vigência por prazo indeterminado.

Nesse caso, a retomada poderia ocorrer mediante os fatores já previstos em lei para negativa da renovação: não cumprimento do contrato, reforma do imóvel, uso próprio, ou melhor, proposta de terceiro. Apenas se excluiria a questão da existência ou não de contrato escrito e por prazo determinado, pois como argumentado, tal requisito é injustificável e não exprime igualdade na proteção dos fundos de comércio constituídos em suas inúmeras peculiaridades contratuais, reforçando a vulnerabilidade do locatário empreendedor, e ampliando a margem para o enriquecimento sem causa do locador proprietário.

A proposta ora rascunhada é certamente ousada, implicando no descarte da própria ação renovatória. Com eventual alteração, a retomada operar-se-ia através de uma modalidade de despejo, que remeteria as causas resolutivas que já figuram, atualmente, como afastadoras da obrigação de renovar.

De outro lado, novamente remetendo-se ao exemplo francês, razoável seria a ampliação do direito do proprietário de retomar o seu imóvel, contrabalanceando-se com a ampliação das hipóteses de obrigatoriedade de indenização pelo fundo de comércio, em favor do locatário.


7. CONCLUSÃO

Não se pretendeu, no pretende trabalho, delinear com precisão uma nova lei e seus artigos, o que requereria um minucioso detalhamento das propostas ventiladas, de forma a manter coerente a concatenação de normas da lei do inquilinato. Por isso não se aduz, em sede de conclusão, qualquer arquétipo de texto normativo a ser positivado. Antes, se buscou apontar zonas conflituosas e incongruentes na lei, demonstrando a necessidade de mudança da estrutura legal da proteção do fundo de comércio, e apontar o sentido para o qual as alterações deveriam rumar.

O grande benefício da sugerida mudança legislativa, seria o alívio de uma pressão sobre a relação entre as partes do contrato de locação. Com efeito, é praticamente certo que, atualmente, ao final do prazo contratual, o locatário deverá propor uma ação renovatória, e o locador, de forma fria e quase mecânica, quase sempre resiste ferozmente à pretensão, talvez por entender que a sucumbência em uma ação renovatória representaria atentado aos seus poderes dominiais.

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Assim, muitas vezes, uma relação poderia permanecer transcorrendo de forma tranquila e consensual, torna-se litigiosa, com razoável incentivo do regramento atinente à matéria. É evidente que havendo a concordância do locador em promover a renovação por escrito não se verifica a necessidade de litígio, contudo, a experiência prática demonstra que esse acaba se tornando um momento conflituoso da relação locatícia, cujos fatores psicológicos desencadeados pelas normas que a regem não podem ser desconsiderados.

Diante da dificuldade do poder judiciário de dar vazão ao enorme volume de demandas ajuizadas, não deveriam existir, no ordenamento jurídico brasileiro, normas que, justamente, induzissem as partes a contender em juízo.

Não é de se ignorar a possibilidade de critica à sugestão de alteração legislativa supra, pelo seu viés de favorecimento ao locatário em detrimento proprietário. Por outro lado, o liberalismo, pautado na intervenção mínima do estado e na liberdade das partes em contratar livremente, abandonando-se as relações civis ao crivo da lei da oferta e da procura, já deu mostras suficientes de que não é capaz de garantir uma sociedade igualitária e sustentável.

Além disso, a mitigação dos poderes do proprietário seria basicamente restrita à impossibilidade de promover a denúncia vazia do contrato, ou pelo menos, condicionar a denúncia vazia a uma razoável indenização ao locatário pela abrupta perda do seu fundo de comércio. Não seriam abolidas as demais prerrogativas do locador, como por exemplo: propor o ajustamento do valor do aluguel ao valor de mercado a cada três anos, retomar o imóvel para uso próprio, demolição ou edificação e etc. O único fator que realmente atua em prejuízo do proprietário, é a redução da sua esfera de especulação sobre o ponto comercial, impedindo-o de despejar o locatário sem qualquer pretexto, ou ainda, de cobrar as luvas do próprio locatário ou de terceiros interessados em assumir o ponto.

O imóvel comercial é um bem que deve ser orientado para uma função social, como deve ser toda propriedade privada, e nesse caso específico a sua utilidade social é servir, por natureza, ao desenvolvimento de atividades produtivas, sendo, sempre, berço propício ao desenvolvimento do fundo de comércio. Logo, se o inquilino dispõe-se a pagar o preço de mercado, cobre oferta de terceiros, e o locador não possui planos objetivos para edificação ou uso próprios, por qual razão se tutelaria o direito de retomada imotivada, arbitrária e sem qualquer indenização, em detrimento de um fundo de comércio construído pelo locatário, gerador de empregos e riquezas?

Como bem assevera o Professor Gustavo Tepedino, "as liberdades individuais devem ter por função, ao lado da legítima preocupação com os interesses de seu titular, o alcance de interesses socialmente relevantes atingidos por seu exercício" [29], e neste âmbito certamente se pode situar a proteção do fundo de comércio.

Serve como exemplo a própria locação residencial, que chegou a ter a denúncia vazia abolida [30], posteriormente possibilitada após o decurso do prazo trinta meses havendo contrato escrito por este prazo, e após cinco anos, nos contratos sem prazo determinado com ou com vigência menor que trinta meses.

Arriscamo-nos a dizer que, o prevalecimento da denúncia vazia, em qualquer modalidade, salvo situações excepcionais, é resquício de um individualismo que não coaduna com os princípios que norteiam o ordenamento jurídico atualmente. É certo que o indivíduo continua merecedor de privacidade e amplos poderes na gerencia de seus bens de uso personalíssimos, mas da mesma forma não se pode tratar os bens colocados em circulação econômica, posto que possuem função social acentuada. O proprietário deve ter o domínio reconhecido e preservado através de ferramentas legais, que não podem, contudo, ser colocadas em prol de uma retomada sem qualquer justificativa e sem a reparação dos prejuízos causados pela arbitrariedade perpetrada.

O ideal, que ora se apresenta, é o definitivo reconhecimento da preponderância da função social do desenvolvimento e proteção do fundo de comércio sobre o exercício irrestrito do direito à propriedade. Roga-se que, a partir de tais conceitos, os operadores do direito, especialmente magistrados e legisladores, possam trabalhar no sentido de aumentar as possibilidades de proteção do fundo de comércio, através da interpretação criativa da lei ou de modificações legislativas.

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Sobre o autor
Fábio Neffa Alcure

Advogado - Especialista em Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALCURE, Fábio Neffa. Ação renovatória: uma releitura da proteção do fundo de comércio sob seu aspecto funcional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2844, 15 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18915. Acesso em: 23 abr. 2024.

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