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A família homoafetiva e o princípio da dignidade da pessoa humana

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07/05/2011 às 10:33
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Sumário: 1. Introdução. 2. A Família na Constituição Federal de 1988. 3. A Família Homoafetiva. 4. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 5. Considerações Finais. 6. Referências.


1.Introdução

Estudos e levantamentos de dados mostram que cada vez mais casais homoafetivos procuram garantir às suas relações o reconhecimento como instituição familiar.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade das uniões homoafetivas serem caracterizadas como entidades familiares, tendo como base o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Propõe-se um estudo da possibilidade de reconhecimento e garantia de direitos às uniões homoafetivas a partir dos princípios e dos direitos fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988.


2.A Família na Constituição Federal de 1988

O Capítulo que trata da Família, inserido no Título "Da Ordem Social", estabelece no artigo 226 e parágrafos a pluralidade de entidades familiares.

O casamento deixou de ser a forma exclusiva de constituição família, passando o Estado a proteger igualmente as famílias constituídas pela união estável (§3º, art. 226) e a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes (§4º, art. 226).

O legislador constituinte não estabeleceu hierarquia entre as entidades familiares, sequer tentou definir o conceito de família, atribuindo ao intérprete a tarefa de adequar as relações cotidianas ao modelo de família protegida. A partir daí, novas perspectivas familiares foram apresentadas.

Dias [01] traduziu as possibilidades dessa nova família da seguinte forma: "As famílias modernas ou contemporâneas constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papéis se sobrepõem, se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos também algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. Com a constante dilatação das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifica e dinamiza as relações entre os membros".

Vale ressaltar que essa concepção de família prenuncia um paradigma que deixa de dar prevalência ao caráter produtivo e reprodutivo do laço familiar, para envolvê-lo em um outro valor jurídico digno de tutela: o afeto.

Feliz também foi a atitude do legislador constituinte ao estabelecer como fundamento da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana, que refletiu diretamente nas questões relativas ao Direito de família.

Segundo Angeluci [02], "pensar na família moderna olvidando o princípio da dignidade da pessoa humana é uma contradição e verdadeira forma de se negar a função primeira da família: o desenvolvimento de cada um de seus membros." O mesmo autor ressalta a importância do afeto para a realização da dignidade humana, pois é ele que proporciona ao indivíduo a estruturação da sua vida, sendo obtido, primariamente, no seio familiar.

E é nesse sentido que a Constituição Federal privilegia a afetividade como valor jurídico. Também o faz quando declara, por exemplo, a proteção à família monoparental, que afastou da idéia de família o pressuposto de casamento; na mesma linha de raciocínio, igualou os filhos adotivos aos demais, ressaltando a vinculação socioafetiva e não apenas biológica.


3. A Família Homoafetiva

Amparadas pelos princípios constitucionais, as uniões homoafetivas ganharam relevo a partir do momento em que o obsoleto modelo patriarcal e hierarquizado de família cedeu lugar a um novo modelo fundado no afeto. A propósito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo pautadas pelo amor, respeito e comunhão de vida preenchem os requisitos previstos na Constituição Federal em vigor, quanto ao reconhecimento da entidade familiar, na medida em que consagrou a afetividade como valor jurídico [03].

Enquadrar hoje as uniões homoafetivas dentro do âmbito da família é mais do que uma questão constitucional, trata-se de uma postura ética. Como bem alerta Dias [04], "Ao contrário do que se pensa, considerar uma relação afetiva de duas pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar não vai transformar a família nem vai estimular a prática homossexual. Apenas levará um maior número de pessoas a sair da clandestinidade e deixar de ser marginalizadas"

O debate mais caloroso quanto à inclusão das uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo no conceito de família gira em torno do art. 226 da Constituição Federal. Se por um lado é certo que não há previsão constitucional expressa nesse sentido, por outro, também é correto dizer que é por meio de uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição que se irá inferir tal conclusão.

De fato, não há no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de normas específicas a regular as uniões homoafetivas e os efeitos que dela decorrem. Trata-se, segundo Jenczak [05], de "um direito novo a exigir positivação, para o que é indispensável a cooperação interdisciplinar de todos os políticos do Direito". O autor enfatiza que, a exemplo do que ocorreu em outros países, essa legislação só será formalizada se houver um trabalho interdisciplinar.

Fachin [06], ao discorrer sobre o silêncio do Código Civil de 2002, com relação às uniões homoafetivas e seu caráter excludente, adverte que "os fora dessa lei não estão fora da lei quando é de outra lei que se trata", ensejando uma remissão à Constituição Federal.

Diante da ausência de norma especial reguladora, sobressai uma corrente doutrinária que defende a inclusão das uniões homoafetivas dentro do conceito de entidade familiar por meio da analogia ao instituto da união estável, prevista no art. 226, §3º da Constituição Federal.

O Tribunal de Justiça gaúcho foi pioneiro no reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas ("Neologismo cunhado com brilhantismo pela Desembargadora Maria Berenice Dias do TJRS", nos termos do Ministro Humberto Gomes de Barros, no REsp 238.715/RS). Em densos e extensos votos, discorrendo sobre aspectos jurídicos, psicológicos, históricos e antropológicos, os julgadores gaúchos foram sedimentando o que seria pioneiro no país.

A respeito expõe Sumaya Saady Morhy Pereira: "A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul parecia trilhar por caminho coerente: reconheceu a competência das varas de família para julgar questões referentes a uniões de pessoas do mesmo sexo (o que já pressupunha o reconhecimento da natureza familiar dessas uniões) e também reconheceu às uniões homossexuais os mesmos efeitos patrimoniais inerentes às demais relações familiares de maneira geral. As decisões do Tribunal gaúcho reconheceram a possibilidade de se estender indistintamente a homens a mulheres, independentemente de sua orientação sexual, o direito de constituir família, garantindo nas relações familiares entre pessoas do mesmo sexo eficácia (indireta) aos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade, a partir da vinculação dos julgadores a esses direitos fundamentais na interpretação e aplicação do direito privado". [07]

No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio demonstrou possuir igual entendimento: "Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do artigo 3o da Carta Federal).
Vale dizer, impossível é interpretar o arcabouço normativo de maneira a chegar-se a enfoque que contrarie esse princípio basilar, agasalhando-se preconceito constitucionalmente vedado. (...) ressaltando o Juízo a inviabilidade de adotar-se interpretação isolada em relação ao artigo 226, § 3o, também do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Considerou-se, mais, a impossibilidade de, à luz do artigo 5º da Lei Máxima, distinguir-se ante a opção sexual." [08]

Nesse sentido, em razão do recurso à analogia, os critérios para a caracterização da união estável homoafetiva (família), deverão ser exatamente os mesmos exigidos para a união estável.

Assim, o que se tem hoje como certo em matéria de reconhecimento de união estável, seja entre pessoas de sexos opostos, seja entre pessoas do mesmo sexo, é a necessidade de demonstração quanto a ocorrência de: "a) uma relação em que seus membros convivam um com o outro, isto é, estabeleçam uma comunhão estreita de vida e de interesses, ainda que não haja coabitação entre eles; b) que esta relação seja duradoura, contínua e perdure por um período de tempo que revele estabilidade e interesse na constituição de família; c) que esta relação seja igualmente pública, ou seja, de conhecimento notório e inequívoco das pessoas que integram o círculo de relações dos companheiros; e, sobretudo, d) que por meio da união estabelecida, os conviventes tenham o objetivo de constituição de família, que "se revela pelo comportamento social à moda de casados e uma gama de elementos variáveis, como a freqüência a lugares públicos, a participação em reuniões, festividades e compromissos familiares, a situação de dependência de um dos companheiros, as viagens em conjunto, a colaboração nas empreitadas de interesse comum, a abertura de contas bancárias conjuntas, a existência de filhos em comum, o tratamento dispensado por parentes, conhecidos e amigos, a aquisição de bens em condomínio etc." [09].

Desde que presentes esses requisitos e comprovada a inexistência de relações matrimoniais por ambos os conviventes, estará caracterizada a união estável e a ela poderão ser concedidos todos os efeitos legais dela decorrentes, inclusive aqueles de natureza sucessória.

Neste ponto, deve-se ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 820.475/RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 02/09/2008, DJe 06/10/2008, assentou expressamente a possibilidade jurídica do pedido formulação em ação declaratória para o reconhecimento de união entre pessoas do mesmo sexo. Na oportunidade, assentou-se que: "A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada.

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Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador".

Ademais, Maria Berenice Dias, citada por Maria Claúdia Cairo [10] observa novo argumento de interpretação do § 4º do art. 226, comparando a União Homoafetiva à união estável e assim salienta, "não há, portanto, como deixar de visualizar a possibilidade do reconhecimento de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. O adjunto adverbial de adição 'também' utilizado no § 4º do art. 226 da CF, é uma conjunção aditiva, a evidenciar que se trata de uma enumeração exemplificativa da entidade familiar. Só as normas que restringem direitos têm de ter interpretação de exclusão".

E continua afirmando que: "nada justifica o estabelecimento da distinção de sexos como condição para a identificação da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória, estabelece exigência nitidamente discriminatória. Frente à abertura conceitual levada a efeito pelo próprio legislador constituinte, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento identificador da família. Por conseqüência, de todo descabido a ressalva feita no sentido de só ver como entidade familiar a união estável entre pessoas de sexos opostos."

Recentemente, a jurisprudência tem decido no mesmo sentido: Rio Grande do Sul – APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. APELO DA SUCESSÃO. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Seja como parceria civil (como reconhecida majoritariamente pela Sétima Câmara Cível) seja como união estável, uma vez presentes os pressupostos constitutivos, de rigor o reconhecimento de efeitos patrimoniais nas uniões homossexuais, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Caso em que se reconhece as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. (TJRS, 8.ª C.Cív. AC 70035804772, rel. Des. Rui Portanova, j. 10.06.2010).

A Constituição Federal tem como regra maior o respeito à dignidade da pessoa humana, conforme expressamente proclama o seu art. 1º, inc. III, que serve de norte ao sistema jurídico. Tal valor implica dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei, como bem explicita Konrad Hesse [11]: "o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito".

Para sedimentar, a atual jurisprudência tem reconhecido a competência das varas de família no tocante ao reconhecimento das uniões homoafetivas: "SÃO PAULO-CONFLITO NEGATIVO. CÍVEL E FAMÍLIA. UNIÃO HOMOAFETIVA. PEDIDO DECLARATÓRIO. Pretensão voltada ao mero reconhecimento da união, para fins previdenciários. Ausência de discussão patrimonial. Omissão legal a ser suprida pela analogia e pelos princípios gerais de direito. Aplicação do art. 4o da lei de introdução ao Código Civil. Situação equiparável à união estável, por aplicação dos princípios constitucionais da igualdade e dignidade da pessoa humana. Art. 227, § 3o, da Constituição Federal de que não tem interpretação restritiva. Proteção à família, em suas diversas formas de constituição. Matéria afeta ao Juízo da Família. Conflito procedente em que se reconhece a competência do Juízo suscitado. (TJSP, CC 170.046.0/6, Ac. 3571525; São Paulo; Câmara Especial; Relª Desª Maria Olívia Alves; Julg. 16/03/2009; DJESP 30/06/2009. Ainda, "MARANHÃO – CONSTITUCIONAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. DIREITO DE FAMÍLIA. APLICAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL. EQUIVALÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. COMPETÊNCIA. VARA DE FAMÍLIA. PARTILHA IGUALITÁRIA DOS BENS ADQUIRIDOS DURANTE A CONVIVÊNCIA. ARTS. 1º E 5º DA LEI Nº 9278/96. NÃO PROVIMENTO. I – O STJ, recentemente, através da 4ª Turma, decidiu que a ação que busca a declaração de união estável na relação homoafetiva deve ser analisada à luz do Direito de Família, sendo competentes, portanto, as Varas de Família para processo e julgamento do feito; II – equiparando-se tal relação homoafetiva à união estável, nos termos do art. 1º da Lei nº 9278/96, deve ser mantida incólume a sentença que, à luz do art. 5º da referida lei, dissolveu a união e determinou a partilha igualitária dos bens; III – Apelação não provida. (TJMA – AC 020371/2008, 3ª C. Cív. Rel. Des. Cleones, j. 18/12/2008)."


4.Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, estabelece que todos são merecedores de igual proteção de sua dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas.

Ingo Wolfgang Sarlet [12] propôs uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa humana: "Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos".

Para Luís Roberto Barroso [13], dignidade da pessoa humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que embora carregue em si forte carga espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana.

A dignidade da pessoa humana [14] encontra-se no epicentro da ordem jurídica brasileira tendo em vista que concebe a valorização da pessoa humana como sendo razão fundamental para a estrutura de organização do Estado e para o Direito. O legislador constituinte elevou à categoria de princípio fundamental da República, à dignidade da pessoa humana (um dos pilares estruturais fundamentais da organização do Estado brasileiro), previsto no art. 1º, inciso III da Constituição de 1988.

Os direitos fundamentais são definidos por Loewenstein [15] como sendo o reconhecimento jurídico de determinadas esferas de autodeterminação individual como proteção à intervenção do Estado, anteriores à constituição e funcionando como controles verticais sobre o poder político. Este reconhecimento seria o núcleo essencial do sistema político da democracia constitucional.

A idéia da existência de um valor intrínseco da pessoa não é recente, e certamente Kant [16] é um de seus mais bem sucedidos expositores. Ele concebe a dignidade da pessoa como parte da autonomia ética e da natureza racional do ser humano. Para ele, o homem existe como um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser tratado como objeto.

A dignidade da pessoa humana tem uma dupla dimensão. Por um lado, constitui expressão da autonomia da pessoa, ou seja, é vista como algo inerente ao ser humano, que não pode ser alienado ou perdido, representando um limite à atuação do Estado e da comunidade (dimensão defensiva). De outra parte, também é algo que necessita da proteção por parte da comunidade e do Estado (dimensão protetiva, assistencial, prestacional). Assim, se a pessoa tem demência, a dimensão assistencial e protetiva da dignidade prevalecem sobre a dimensão autonômica. Portanto, pode-se afirmar que o Estado não apenas deve respeitar a dignidade da pessoa humana, que serve de limite à sua atuação, mas também tem o dever de promover essa dignidade e, para isso, deve gerar inclusão social. [17]

Na lição de Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, a reprovação do Estado ao amor homoafetivo, o que é incompatível com o direito de respeito à dignidade, necessariamente implica em desrespeito à liberdade de envolvimento afetivo com quem se quiser, sem que isso seja motivo para se menosprezar jurídica ou socialmente [18].

A sexualidade, aqui compreendida no aspecto da orientação sexual e das condutas sexuais do indivíduo, se consubstancia como um alicerce essencial para o livre desenvolvimento dessa individualidade e da própria personalidade de cada qual. A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual do indivíduo é direta, na medida em que a proteção dos traços formadores de cada um inclui a sua opção sexual e, por conseguinte, o seu respeito e a sua proteção pela sociedade e, evidentemente, pela ordem jurídica em vigor.

O Professor Rizzatto Nunes [19] ensina que "a dignidade nasce com a pessoa, é inata e inerente à sua essência. O indivíduo nasce com integridade física e psíquica, cresce e vive no meio social, e tudo o que o compõe tem que ser respeitado", concluindo que: "a dignidade humana é um valor preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa."

A dignidade da pessoa humana não é apenas uma palavra com conotação ética, ela também expressa "o elemento que qualifica e completa o ser humano e dele não pode ser destacado", ou seja, aquilo que "assegura ao indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais [20]".

No escólio de Rodrigo da Cunha Pereira [21], "A dignidade, portanto, é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a funcionalização de todos os institutos jurídicos à pessoa humana." E conforme o exposto, o "sentido do Princípio da Dignidade Humana só se torna efetivo, quando se verifica na Constituição de 1988, o poder atribuído a cada cidadão de se realizar plenamente em sua personalidade".

Segundo Dworkin [22], a dignidade humana é constituída por duas dimensões, cada uma delas ressaltando um aspecto ético fundamental para a realização do ser humano enquanto pessoa moral. A primeira dimensão, à qual Dworkin denomina de "princípio do valor intrínseco da vida humana", significa que "o sucesso ou derrocada de qualquer vida humana é, por si só, importante, algo que todos nós temos razão para querer ou lastimar". Todo indivíduo, portanto, conforme já afirmava Kant, é um fim em si mesmo, ou seja, a vida humana possui um valor intrínseco e é insubstituível [23].    

Decorre dessa primeira dimensão da dignidade humana que, uma vez que o ser humano é um fim em si mesmo, isso significa que somente o homem é capaz de viver segundo leis que ele mesmo elabora. Ou seja: o homem caracteriza-se pela sua responsabilidade, pela auto-determinação, pela autonomia da vontade. E é exatamente esta a segunda dimensão da dignidade humana, que, nas palavras de Dworkin, é o "princípio da responsabilidade pessoal", segundo o qual "cada pessoa tem uma responsabilidade especial pela realização do sucesso de sua própria vida, uma responsabilidade que inclui o exercício do julgamento acerca de qual vida será a de maior sucesso para ele" [24]

A dignidade humana, expressa na Constituição da República no artigo 1.º, inciso III, deve ser compreendida como um direito e um dever: um direito a igual direito e consideração, dada a essencialidade da vida humana para cada indivíduo em uma sociedade democrática, e um dever à otimização da vida humana, através do exercício da responsabilidade individual. 

Luis Edson Fachin [25], de forma salutar expôs uma nova concepção de família, que baseada no afeto, perpassa pela Dignidade da Pessoa Humana e o respeito à sua Liberdade e, por sua vez, constituem os fundamentos sólidos e inequívocos da família contemporânea. Assim relata: "com efeito, é por meio da dignidade da pessoa humana, alicerce concreto do direito fundamental à liberdade, neste incluso o direito subjetivo à liberdade de orientação sexual, que a nova concepção de família será gestada."

A Constituição Federal veda veementemente qualquer tipo de discriminação. Confere igualdade de qualquer natureza, inclusive igualdade "sem distinção de sexo e de orientação sexual". José Afonso da Silva [26] salienta "a questão mais debatida feriu-se em relação às discriminações dos homossexuais. Tentou-se introduzir uma norma que a vedasse claramente, mas não se encontrou uma expressão nítida e devidamente definida que não gerasse extrapolações inconvenientes. Uma delas fora conceder igualdade, sem discriminação de orientação sexual, reconhecendo, assim, na verdade, não apenas a igualdade, mas igualmente a liberdade de as pessoas de ambos os sexos adotarem a orientação sexual que quisessem".

Nas palavras de Maria Berenice Dias [27], "qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal, não se podendo subdimensionar a eficácia jurídica da eleição da dignidade humana como um dos fundamentos do estado democrático de direito. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições de direitos servindo de fortalecimento a estigmas sociais e causando sofrimento a muitos seres humanos".

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais atualmente decidiu nesse sentindo: DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA – ART. 226, § 3º, DA CF/88 – UNIÃO ESTÁVEL – ANALOGIA – OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – VERIFICAÇÃO – Inexistindo na legislação lei específica sobre a união homoafetiva e seus efeitos civis, não há que se falar em análise isolada e restritiva do art. 226, § 3º, da CF/88, devendo-se utilizar, por analogia, o conceito de união estável disposto no art. 1.723 do Código Civil/2002, a ser aplicado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput e inc. I, da Carta Magna) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, c/c art. 5º, inc. X, todos da CF/88). TJMG AC 1.0024.09.484555-9/001, rel. Des. Elias Camilo, p. 20/04/2010.

Na mesma linha, o Tribunal do Rio Grande do Sul: UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DE BENS SEGUNDO O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. DIREITO À MEAÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA. Constitui união estável a relação de fato entre duas mulheres, consistente na convivência pública e ininterrupta pelo período de cinco anos, com o objetivo de formação de família, observados os deveres de mútua assistência, lealdade, solidariedade e respeito. A homossexualidade é um fato social que acompanha a história da humanidade e não pode ser ignorada pelo Judiciário, que deve superar preconceitos para aplicar a tais relações de afeto efeitos semelhantes aos que se reconhecem a uniões entre pessoas de sexos diferentes. Aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, além da analogia, dos princípios gerais de direito e da boa-fé objetiva, na busca da concretização da justiça. Possibilidade de partilha dos bens amealhados durante o convívio, de acordo com as normas que regulamentam a união estável, utilizado como paradigma supletivo para evitar o enriquecimento sem causa. (RS - 1ª Vara de Família e Sucessões de Alvorada - Proc. 003/1.07.0001956-8 begin_of_the_skype_highlighting003/1.07.0001956-8end_of_the_skype_highlighting – Ação de Dissolução de União Estável - Juíza de Direito Evelise Leite Pâncaro da Silva - j. 13/01/2009).

Por fim, A Advocacia-Geral da União reconheceu no dia 04/06/10 que a união homoafetiva estável dá direito ao recebimento de benefícios previdenciários [28]. Segundo a AGU, o principal motivo para a interpretação é a Constituição Federal, que não impede a união estável de pessoas do mesmo sexo, por não ser discriminatória. Pelo contrário, garante a dignidade da pessoa humana, a privacidade, a intimidade e proíbe qualquer discriminação, seja de sexo, raça, e orientação sexual. Assim, não poderiam normas infraconstitucionais violarem direitos fundamentais expressos em seu texto. O parecer é valido apenas para os trabalhadores do setor privado. "Numa interpretação sistemática da Constituição da República é possível verificar que o que se pretende é justamente proteger a liberdade de opção da pessoa", ressaltou o advogado da União, Rogério Marcos de Jesus Santos, responsável pela autoria do documento.

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Sobre a autora
Dóris de Cássia Alessi

Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (2001). Atualmente é Oficial de Registro Civil - Comarca de Dracena - Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e Interdições e Tutelas da Sede da Comarca. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: registros públicos, registro civil das pessoas naturais. Pós-Graduação "Lato Sensu" em Direito Educacional e em Aperfeiçoamento em Direito Público e Privado. Pós-Graduação "Strictu Sensu": em Direito, na UNIVEM (em andamento).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALESSI, Dóris Cássia. A família homoafetiva e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2866, 7 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19055. Acesso em: 18 nov. 2024.

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