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Coisa julgada tributária e inconstitucionalidade

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10/05/2011 às 17:31
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5. INSTRUMENTOS DE CONTROLE

Ainda que paire divergência doutrinária quanto à possibilidade de relativização da coisa julgada, e tendo em vista, a tendência jurisprudencial em aceitá-la, passa-se, agora, a analisar os meios utilizados para a desconstituição da coisa julgada.

O Direito brasileiro não contempla, especificamente, um instrumento específico para controlar a coisa julgada inconstitucional não mais sujeita à impugnação recursal. Entretanto, a despeito da ausência de previsão legal, não se pode ignorar que o problema existe e que se faz necessário buscar meios para solucioná-lo.

5.1 Ação Rescisória

As hipóteses de cabimento da ação rescisória estão previstas no ar. 485 do CPC e são numerus clausus.

O fundamento utilizado por aqueles que aceitam a rescisória como instrumento de relativização da coisa julgada encontra-se no inciso V do art. 485 [41], do CPC, ou seja, quando a coisa julgada violar literal dispositivo da lei.

Assim, "esta lei deve ser entendida no sentido de norma jurídica, englobando, por conseqüência, a possibilidade de ação rescisória quando a sentença violar alguma norma constitucional [42]."

A Súmula 343 do STF [43] veda a interposição de ação rescisória, com fundamento no inciso V, do art. 485 do CPC, quando a matéria era objeto de interpretação divergente na época do julgamento.

Vale lembrar que o próprio STF afastou a aplicação da Súmula 343 quando a divergência de interpretação disser respeito à controvérsia constitucional, conforme comprova o julgado abaixo:

Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória. (RE 328812/AM, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 06.03.2008, DJe-078 30.04.2008) (grifos nossos)

Portanto, prevalente o entendimento sufragado pelo STF que aceita a interposição da ação rescisória "escorada em superveniente alteração de sua interpretação quanto ao texto constitucional, revelando a tendência de prestigiar e se conceber na ordem jurídica instrumentos capazes de dar efetividade à força normativa da Constituição Federal [44]".

Contudo, o problema surge quando já ultrapassado o prazo de dois anos para a propositura da rescisória, motivo pelo qual passa-se a análise dos demais instrumentos apontados como adequados à desconstituição da coisa julgada.

5.2 Impugnação à Execução e os Embargos à Execução

Em sede de execução, o CPC, no art. 741, assim como no art. 475-L e § 1°, previu situações em que é possível, seja em face da Fazenda Pública, ou em face de particular, arguir a inexigibilidade do título judicial fundado em lei ou em ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Existe discussão na doutrina acerca do alcance desses dispositivos, qual seja, se a declaração de inconstitucionalidade pelo STF, apta a ensejar o manejo dos embargos com fundamento na exigibilidade do título em virtude de questão constitucional, seria apenas aquela proferida em controle concentrado, ou se abarcaria também o decisão proferida em controle difuso.

Helenilson Pontes [45] defende que "a regra processual não exige que a decisão do Supremo Tribunal Federal apta a gerar a cessação da eficácia da coisa julgada em sentido contrário tenha sido proferida apenas sede de controle concentrado". Admite o autor que a pronúncia de inconstitucionalidade proferida pelo STF em controle difuso tenha sido objeto de Resolução do Senado ou não, "produz da mesma forma os efeitos a que alude o art. 741, parágrafo único, do CPC".

O próprio STJ já decidiu que as decisões proferidas em controle difuso de constitucionalidade pelo STF também podem ensejar o manejo dos embargos ou da impugnação à execução com fundamento na inexigibilidade do título executivo:

CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. COFINS. ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 9.718⁄98. CONCEITO DE FATURAMENTO. MAJORAÇÃO DE ALÍQUOTA. PRECEDENTES DO STF.

1. Não podem ser desconsideradas as decisões do Plenário do STF que reconhecem constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de diploma normativo. Mesmo quando tomadas em controle difuso, são decisões de incontestável e natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, § único: "Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão"), e, no caso das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis (CPC, art. 741, § único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232⁄05).

2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão de 09.11.2005, apreciando recursos extraordinários (RE 346084⁄PR, RE 357950⁄RS, RE 358273⁄RS e RE 390840⁄MG), considerou inconstitucional o § 1º do art. 3º da Lei 9.718⁄98 ("§ 1º. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas"), e reconheceu a constitucionalidade do art. 8º, caput, do mesmo diploma legal, que prevê a majoração da alíquota da COFINS de 2% para 3%.

3. O pedido formulado no recurso especial restringe-se ao afastamento da alteração da majoração da alíquota da COFINS de 2% para 3%, prevista no art. 8º da Lei 9.718⁄98, razão pela qual o acórdão recorrido deve ser mantido. 4. Recurso especial a que se nega provimento. (grifos nossos) (STJ, REsp 819.850/RS, 1ª T., Rel. Min Teori Albino Zavascki, julgado em 01.06.2006)

Helenilson Cunha Pontes afirma que a regra prevista no art. 741, parágrafo único do CPC é de pouca aplicação no Direito Tributário:

Assim sendo, a norma do art. 741, parágrafo único, do CPC é de pouca aplicação nas lides de natureza tributária em que o título executivo judicial a ser executado pelo contribuinte contempla justamente a pronúncia de inconstitucionalidade da norma tributária.

Situação factível, no entanto, é aquela em que o Estado insiste em promover a execução fiscal de crédito tributário fundado em lei tributária já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Nesta hipótese, o contribuinte executado poderá eleger o art. 741 (por remissão do art. 745 do CPC) como defesa em embargos à execução, não mais de título judicial, mas de título extrajudicial (a Certidão de Dívida Ativa).

Dessa forma, de acordo com o previsto nos arts. 475, L, § 1° e 741, parágrafo único, independentemente de já decorrido o prazo de dois anos para a rescisão da decisão transitada em julgado, por meio dos embargos e da impugnação à execução, previstos nos artigos supramencionados, é possível argüir a inconstitucionalidade daquela decisão.

5.3 Querela Nullitatis

Outro instrumento aceito pela doutrina para o afastamento da coisa julgada inconstitucional é ação declaratória de nulidade, também conhecida como querela nullitatis.

Estefânia Maria de Queiroz Barbosa [46] entende pela "possibilidade de interposição de ação declaratória de nulidade para desconstituir a coisa julgada inconstitucional.

Quanto a possibilidade de interposição da ação declaratória de nulidade para desconstituir coisa julgada inconstitucional, esta também deve ser aceita, uma vez que a decisão inconstitucional é nula desde o início, e a ação declaratória é admitida justamente naqueles casos de nulidade, como o que ocorre por ausência de citação, em que a coisa julgada pode ser revista independente de prazo prescricional ou decadencial.

Nesse sentido, a manifestação do STF:

AÇÃO DE NULIDADE. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA DE VIGENCIA DOS ARTIGOS 485, 467, 468, 471 E 474 DO C.P.C. PARA A HIPÓTESE PREVISTA NO ARTIGO 741, I, DO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - QUE E A DE FALTA OU NULIDADE DE CITAÇÃO, HAVENDO REVELIA -, PERSISTE, NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO, A "QUERELA NULLITATIS", O QUE IMPLICA DIZER QUE A NULIDADE DA SENTENÇA, NESSE CASO, PODE SER DECLARADA EM AÇÃO DECLARATORIA DE NULIDADE, INDEPENDENTEMENTE DO PRAZO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO RESCISÓRIA, QUE, EM RIGOR, NÃO E A CABIVEL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (STF, RE 96374, 2ª T., Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 30.08.1983, DJ 11.11.1983, pp-07542).

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Humberto Theodoro Jr. e Juliana Faria [47] também defendem o cabimento da querela nullitatis para as situações nas quais haja transcorrido o prazo da rescisória e não seja caso de interposição dos embargos à execução e de impugnação ao cumprimento da sentença. Vejamos:

Ainda que não se admita o uso dos embargos à execução e da impugnação ao cumprimento da sentença fora dos casos expressamente indicados para se obter a relativização e se restabelecer o império da Constituição, cabível será a via da ação declaratória de nulidade, ou a querela nullitatis, se não for mais possível a ação rescisória, em virtude do prazo decadencial que o Código lhe impõe.

Assim, embora transitada em julgado a decisão judicial, podem convalescer invalidades processuais, como, por exemplo, falta de citação de litisconsorte necessário. Para a declaração de nulidade, ou de ineficácia da sentença proferida pode ser manejada a querela nullitatis.


6 CONCLUSÃO

A coisa julgada é garantia constitucional que visa preservar a segurança jurídica das relações sociais, uma vez que garante a imutabilidade da decisão proferida pelo Poder Judiciário, já não mais sujeita a recurso, e que estabeleceu "um esquema de agir" para determinado conflito de interesses posto à sua apreciação.

A segurança jurídica objetiva promover a previsibilidade em relação aos efeitos jurídicos da conduta regulada, ou seja, busca criar a certeza de que o cidadão saberá de antemão que ao praticar de determinada conduta, isto trará determinada conseqüência. Portanto, a noção de segurança jurídica está atrelada à ideia de justiça.

A tese da relativização da coisa julgada divide a doutrina. A corrente que defende a relativização parte do pressuposto de que a Constituição assegurou a proteção da coisa julgada apenas em relação à lei posterior. Sustenta, também, que a segurança não é um valor absoluto, devendo ceder diante de outros princípios como o da supremacia da Constituição e da sua máxima efetividade.

Decisão proferida em contrariedade com a Constituição não pode prevalecer, haja vista que inexiste uma intangibilidade da coisa julgada quando esta violar preceito constitucional. E a relativização da imutabilidade da coisa julgada inconstitucional seria, ao contrário do que alegam aqueles que se opõem a esta tese, garantia da própria segurança jurídica, pois garantiria a harmonia do sistema jurídico e a prevalência da norma constitucional.

Já a corrente contrária à relativização defende que a coisa julgada é uma garantia fundamental, prevista no art. 5°, XXXVI, da Constituição Federal, e que constitui instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança. Defendem os adeptos dessa corrente que a simples alegação da existência de uma sentença injusta não serve para justificar a desconsideração da coisa julgada, o que poderia acarretar grave insegurança na sociedade.

Demais disso, afasta a possibilidade de utilização da ação rescisória como mecanismo de uniformização da jurisprudência. Assim, nega o cabimento de sua manipulação para desconstituir sentença que julgou questão constitucional, e que transitou em julgado, em sentido contrário a posterior decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em sede de controle concentrado ou de controle difuso.

O ordenamento jurídico brasileiro prevê a ação rescisória como mecanismo adequado para desconstituição da coisa julgada em virtude da ocorrência de vícios graves, limitada a sua utilização ao período de 2 anos após o transito em julgado.

Ultrapassado tal prazo, em regra, convalesceriam todos os vícios existentes na decisão judicial. Contudo, o legislador infranconstitucional acrescentou casos em que é possível alegar a inexigibilidade do título judicial, em sede de embargos à execução (art. 741, parágrafo único, do CPC) e na impugnação ao cumprimento da sentença (art. 475-L, § 1°, do CPC), quando referido título judicial fundar-se em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Há ainda aqueles, que como Humberto Theodoro Jr., entendem pela possibilidade de utilização da querela nullitatis, qual seja, a ação declaratória da nulidade da coisa julgada, não sujeito a prazo decadencial.

Comungamos do entendimento daqueles que negam a possibilidade de relativização da coisa julgada com fundamento na mera injustiça da decisão, pois isto ocasionaria insegurança ao sistema jurídico. Para que seja possível desconstituir a coisa julgada fora das hipóteses de utilização da ação rescisória, dos embargos à execução ou da impugnação ao cumprimento da sentença, deve haver nova previsão legal, a fim de regulamentar expressamente as hipóteses em que tal desconstituição seria admissível, como forma de assegurar a segurança jurídica, a justiça e a isonomia que devem permear o sistema jurídico.

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Sobre a autora
Michele Franco Rosa

Procuradora Federal em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Michele Franco. Coisa julgada tributária e inconstitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2869, 10 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19084. Acesso em: 25 abr. 2024.

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