Resumo: A presente pesquisa promove um estudo analisando a aplicação do princípio da vedação à reformatio in pejus no âmbito do processo administrativo. Com o advento do Estado de Direito, o processo administrativo passou a ser tido como instrumento de garantia do administrado ante prerrogativas públicas. Daí aplicável, em regra, o cânone da revisibilidade das decisões administrativas. O princípio da vedação à reformatio in pejus, caso aplicado à processualística administrativa, imporia limite no que tange à revisão dos atos administrativos editados como ato final do processo. Com sua incondicional adoção, caso o administrado interpusesse recurso administrativo contra decisão que considerasse total ou parcialmente desfavorável, restaria impossibilitado, em qualquer caso, o agravamento da situação jurídica pela Administração. O tema tem gerado constante debate doutrinário por confrontar de um lado direitos fundamentais do indivíduo, de outro a indisponibilidade do interesse público. O estudo se prenderá a tal temática, apontando visão crítica, demonstrando a posição doutrinária e a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: processo administrativo; recurso administrativo; vedação à reformatio in pejus.
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como alvo principal o estudo da aplicação do princípio da vedação à reformatio in pejus no âmbito do processo administrativo, considerando os múltiplos posicionamentos doutrinários a respeito, bem como o último precedente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça firmado sobre o tema, sem olvidar o conteúdo da legislação de regência, qual seja, a Lei nº 9.784 (BRASIL, 1999), mais conhecida como Lei do Processo Administrativo Federal.
Com o advento do Estado de Direito e sua nota primacial de submissão ao império da lei, os cidadãos livres passaram ser detentores de garantias e direitos individuais. Tais garantias, no primeiro momento de sua evolução geracional, correspondiam à liberdade de atuação frente à opressão até então sofrida. Neste contexto, o respeito às regras processuais surge como garantia do indivíduo ante as prerrogativas do poder público. A partir deste ponto, não mais se admitiu decretação de perda de bens ou condenação de qualquer espécie sem o devido respeito às regras processuais previamente fixadas e emanadas formalmente do Poder Legislativo1.
O Direito Administrativo, responsável pela disciplina das relações entre administrados e Administração, nasce com o Estado de Direito e se destina a defender o cidadão, regulando a conduta do Estado e o deixando subjugado às disposições legais.
Assim, desde então, caso a Administração pratique ato que se mostre contrário ao interesse do administrado, é dado a este, como direito fundamental, participar ativamente do processo de tomada da decisão, podendo influir no conteúdo desta, através de mecanismos que prestigiem a ampla defesa e o contraditório. Como corolário de tais prerrogativas, exsurge ao administrado o poder de recorrer das decisões que considere total ou parcialmente desfavoráveis.
No caso de decisão administrativa devidamente emanada de processo administrativo, porém contrária aos interesses do administrado, tendo este aviado recurso cabível, pergunta-se: pode a administração agravar a situação do recorrente?
A problemática do princípio da vedação à reformatio in pejus no âmbito do processo administrativo ocorre quando a Administração Pública, através de um recurso administrativo interposto pelo administrado ou servidor, agrava sua situação jurídica, exsurgindo um conflito entre o dever da Administração de zelar pela legalidade de seus atos e a garantia concedida ao administrado de interpor recurso para revisão de ato contrário, total ou parcialmente, ao seu interesse.
A vista dessas noções, discutir-se-á a respeito desse conflito, de forma que a compreensão do tema é impossível sem o enfrentamento dos aspectos controversos, sendo este o propósito do presente trabalho.
Sobre o tema demonstrar-se-á, de forma crítica, o posicionamento não uniforme da doutrina nacional, bem como o mais recente precedente do Superior Tribunal de Justiça. Procurar-se-á entender a vedação da reformatio in pejus e analiar-se-á possibilidade de aplicação de tal vedação à processualística administrativa.
2. PROCESSO ADMINISTRATIVO
Processo, sob uma visão global, é meio de produção de norma. Daí porque processo legislativo é o meio, constitucionalmente previsto, para produção da norma legislativa (geral, abstrata e que inova na ordem jurídica). Processo judicial é o meio disposto no ordenamento jurídico para produção da norma jurídica concreta (resolve controvérsia com força de coisa julgada). Já o processo administrativo é o meio de produção da norma administrativa. É dizer, este último representa o meio pelo qual é desempenhada a função administrativa, definida por Mello2 como "a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce, na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário".
Assim, processo é garantia derivada do Estado de Direito ao cidadão, ao jurisdicionado e ao administrado, de que as regras estabelecidas serão obedecidas na produção das normas que os afetarão. É instrumento de garantia ante prerrogativas do Poder Público.
Devemos ter a ideia de que processo e procedimento administrativo encerram conceitos diversos. O processo tem um objetivo certo, no caso, a prática de um ato administrativo final. Já o procedimento é o processo em sua dinâmica, é o modo pelo qual os diversos atos processuais se relacionam na cadeia que constitui o processo. Segundo Mello3, apesar da divergência legislativa e doutrinária, a expressão mais utilizada no Direito Administrativo é procedimento, reservando-se a expressão processo para os casos contenciosos. No entanto, salienta o autor, é mais adequado utilizar a terminologia processo para designar o objeto em causa e procedimento para a modalidade ritual de cada processo.
Fixadas tais premissas, impende esclarecer que, de regra, processo é a terminologia utilizada para qualquer atuação da Administração Pública, ainda que não se dirija para a prática de um ato final.
O processo administrativo, de acordo com lição doutrinária, pode ser classificado em: processos litigiosos (que contêm um conflito de interesses entre os administrados ou servidores e o Estado) e processos não litigiosos (simples expedientes). Nos processos litigiosos, há uma controvérsia a ser solucionada, o que exige a observância das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório pela Administração.
No ordenamento jurídico brasileiro, despontam alguns cânones aplicáveis aos processos administrativos. Dentre eles, destacam-se: princípio da audiência do interessado (decorrência do contraditório, não se resume a uma única manifestação); princípio da acessibilidade aos elementos do expediente (ao interessado deve ser facultado o exame de toda documentação dos autos); princípio da instrução probatória (decorre da ampla defesa e significa não só o oferecimento e a produção de provas, mas também a fiscalização da produção); princípio da motivação (obrigatoriedade de explicitação dos fundamentos normativo e fático da decisão); princípio da verdade material (decorrência do interesse público, significa que a Administração não pode ficar adstrita ao que as partes demonstram, devendo buscar o que realmente é a verdade); princípio da oficialidade (cabe à Administração a condução e desdobramentos dos atos até a produção do ato final); e, princípio da revisibilidade (direito do administrado de recorrer de decisão desfavorável, desde que o processo não tenha se iniciado por autoridade do mais alto escalão administrativo).
São fases do processo administrativo, conforme Andrade4: instauração (o impulso deflagrador do procedimento tanto pode vir do administrado, quanto da própria Administração); instrução (coleta de elementos que servirão de subsídio para produção do ato final); defesa (apresentação de argumentos pelas partes, no intuito de formar o convencimento da autoridade administrativa); relatório (peça informativa e opinativa); e, julgamento (contendo um resumo do processo, fundamentação e decisão da Administração). Mello5 aponta, ainda, as seguintes fases processuais, como subseqüentes às fases já mencionadas: controladora (é fase integrativa, com atuação de controle de legalidade e, em alguns casos, de conveniência e oportunidade); e, comunicação (conclusão do processo é transmitida de acordo com as especificações legais).
Em caso de decisão desfavorável, de acordo com previsibilidade na legislação de regência, poderá o administrado interpor recurso administrativo.
A sucinta revisão realizada neste tópico mostra-se relevante para melhor enquadramento do tema em estudo, haja vista estar relacionado diretamente à fase dispositiva do processo, com o exercício do princípio da revisibilidade por parte do administrado e a perquirição, a ser desenvolvida nas próximas linhas, da aplicação ou não da vedação à reformatio in pejus.
3. APLICABILIDADE DA VEDAÇÃO À REFORMATIO IN PEJUS AO PROCESSO ADMINISTRATIVO
3.1. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO À REFORMATIO IN PEJUS: ORIGEM, SIGNIFICADO E DISCIPLINA LEGAL
Princípios são premissas fundamentais, postulados basilares do sistema jurídico. São vetores destinados ao legislador na elaboração normativa e aos intérpretes nas tarefas de interpretação e aplicação do sistema normativo. De acordo com a clássica definição de Mello6:
"Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico."
Com origem no plano processual penal, o princípio da vedação à reformatio in pejus está positivado na regra inserta no artigo 617 do Decreto-Lei nº 3.689 (BRASIL, 1941), Código de Processo Penal, in verbis:
"Art. 617. O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença".
Assim, tal princípio surge como proibição de reforma da decisão contrária ao réu, evitando o agravamento de sua situação, se apenas ele tiver recorrido. De acordo com dispositivo legal acima transcrito, se apenas o réu recorre, deve o juízo ad quem, no julgamento, ater-se aos estritos termos que lhe foi pedido. Caso assim não haja, estaria proferindo decisão extra ou ultra petitum, contrariando a lógica do sistema acusatório e a regra proibitiva da reformatio in pejus.
Defende Tourinho Filho7, tratando da seara processual penal:
"...Se não há alguém postulando a exasperação da pena – pelo contrário até –, como poderia o juízo ad quem fazê-lo? Assim, a proibição da reformatio in pejus é conseqüência lógica do sistema acusatório."
No âmbito processual civil, o agravamento da situação jurídica de recorrente único é admitida apenas quanto às matérias que envolvam condições da ação e pressupostos processuais, que podem ser apreciadas e julgadas sem necessidade de provocação e em qualquer tempo e grau de jurisdição. Assim, em regra, aplica-se na processualística civil a proibição da reformatio in pejus, perfazendo exceção à regra a análise das questões de ordem pública. Neste sentido, Didier Junior8:
"Se um único dos litigantes parcialmente vencidos impugnar a decisão, a parte deste que lhe foi favorável transitará normalmente em julgado, não sendo lícito ao órgão ad quem exercer sobre ela atividade cognitiva, muito menos retirar, no todo ou em parte, a vantagem obtida com o pronunciamento de grau inferior (proibição da reformatio in peius).
(...)
A proibição da reformatio in peius não afasta de modo algum a possibilidade de o tribunal revisar aquilo que ex vi legis se sujeita ao duplo grau de jurisdição, como por exemplo as questões de ordem pública que, se acolhida em detrimento do interesse do recorrente, poderão, de certo modo, levara uma reforma para pior."
A situação pode ser transposta para o plano processual administrativo. Isto porque, como visto, o administrado tendo contra si uma decisão que considere desfavorável (total ou parcialmente), possui, de acordo com o regramento legal aplicado ao caso, o direito de recorrer, em razão do princípio da revisibilidade. Caso aplicado o princípio da vedação à reformatio in pejus, tal recurso não poderia possuir o condão de agravar sua situação.
Pode-se dizer, então, quanto à seara administrativa: a vedação à reformatio in pejus consiste na vedação de piora da situação de interessado que, em processo administrativo, interpõe recurso contra decisão total ou parcialmente desfavorável, almejando a melhora de sua situação jurídica.
A disciplina da situação, no direito pátrio, é regida por duas disposições da Lei nº 9.784 (BRASIL, 1999), in litteris:
"Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.
Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão."
"Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada.
Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção."
Pela interpretação gramatical dos dispositivos acima, a matéria parece simples: a norma apenas vedou o agravamento da situação do recorrente nas hipóteses de revisão, de forma que o acima transcrito artigo 64 admite, expressamente, a aplicação da reformatio in pejus nos recursos administrativos, desde que oportunizada previamente ao administrado a defesa dos pontos controversos.
Todavia, a questão é bem mais complexa, merecendo interpretação lógico-sistemática. Isso porque se pode indagar a prevalência de tal instituto frente aos princípios e garantias do administrado (devido processo legal, duplo grau de jurisdição, contraditório e ampla defesa).
Portanto, embora se reconheça a proibição da reforma em prejuízo do réu no âmbito penal (nos termos acima identificados), bem como na seara processual civil (com as exceções apontadas acima), no direito administrativo, como salientado, existem inúmeras discussões doutrinárias acerca da aplicação ou não desse princípio.
3.2. CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA
A doutrina nacional não possui posicionamento uniforme quanto à aplicação do princípio da vedação à reformatio in pejus no âmbito processual administrativo. A questão, em regra, aparece ligada à possibilidade de adoção da coisa julgada administrativa. Nas palavras de Andrade9:
"Embora seja uma expressão tecnicamente imperfeita, dado que "coisa julgada" apenas pode ser produzida pelo Poder Judiciário, no Direito Administrativo é a impossibilidade de retratação por parte de Administração Pública desde que não seja decisão ilegal. É a decisão administrativa da qual não é mais possível se interpor recurso. Podemos dizer que, na verdade, se trata de uma preclusão de efeitos internos"
De fato, coisa julgada administrativa é terminologia, embora correntemente empregada, que diz respeito a atributo não integrante da função administrativa: a imutabilidade de suas decisões. Tal atributo é peculiar à função judicial, e só a ela. Correta, pois, a posição de Andrade ao afirmar, acima, que se trata de mera preclusão de efeitos internos. Mas como se posiciona a doutrina nacional? Admite ou não a existência de tal preclusão? É dizer: acolhe ou não a proibição da reformatio in pejus no processo administrativo? Não há posição uniforme sobre o tema.
Insta notar que os defensores da não aplicação da vedação o fazem com fundamento nos cânones que norteiam o processo administrativo (indisponibilidade do interesse público, legalidade, oficialidade e verdade material), haja vista que a proibição da reforma em prejuízo ao administrado poderia implicar a manutenção de um ato contrário à lei, ainda que sua ilegalidade viesse a ser constatada apenas em superior instância administrativa.
Para essa corrente de pensamento, verificada a existência de uma ilegalidade, o agente público tem o dever-poder de combatê-la, não podendo deliberar entre atuação positiva (ação) ou negativa (omissão), já que se afigura inafastável a observância e o cumprimento aos ditames legais, devendo o interesse público prevalecer acima de qualquer interesse privado. A adoção da vedação à reformatio in pejus configuraria, pois, violação aos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o privado, basilares de todo o regime jurídico-administrativo.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello 10, nesse sentido, afirmou:
"Igualmente, a reformatio in pejus não é interdita ao Direito Administrativo, sob pena de frustrar ação fiscalizadora ou diretora dos órgãos de controle e hierarquia, a fim de não agravar a situação do administrado, com prejuízos à Administração Pública. Esse princípio tem a sua aplicação restrita ao Direito Judiciário e se estende ao terreno do Direito Administrativo tão-somente quando se trata de recurso do próprio interessado em processos quase contenciosos".
Adotando uma postura mais moderada, Carvalho Filho, ao comentar acerca do instituto, é claro em afirmar que a legalidade se afigura como um dos fundamentos do Direito Administrativo, sendo inafastável ao administrador o dever de se ater aos estritos limites impostos pela lei. O autor entende cabível a reformatio in pejus nas hipóteses de controle de legalidade do ato administrativo a partir de critérios objetivos, mas se manifesta favoravelmente à vedação nos casos de avaliação subjetiva. Marca, assim, no estudo do tema, posição intermediária, reconhecendo a existência a vedação à reformatio in pejus, salvo quando o administrador se utiliza de critérios objetivos para agravar a situação do recorrente em processo administrativo. Eis excerto de obra jurídica que expressa seu entendimento 11:
"Quando admitimos inaplicável o referido princípio do Direito Administrativo, consideramos que a matéria é de legalidade estrita. É a hipótese em que o ato administrativo da autoridade inferior tenha sido praticado em desconformidade com a lei, conclusão extraída mediante critérios objetivos. Vejamos um exemplo: um servidor reincidente foi punido com a pena "A", quando a lei determinava que a pena deveria ser a pena "B", por causa da reincidência. A pena "A", portanto, não atendeu à regra legal, o que se observa mediante critério meramente objetivo. Se o servidor recorre, e estando presentes os elementos que deram suporte à apenação, deve a autoridade julgadora não somente negar provimento ao recurso, como ainda corrigir o ato punitivo, substituindo a pena "A" pela "B".
Suponhamos outra hipótese: o servidor foi punido com a pena "A"porque assim o entendeu a autoridade competente como resultado da apreciação das provas, dos elementos do processo, do grau de dolo ou culpa, dos antecedente, etc. Observe-se que todos esses elementos foram considerados subjetivamente para a conclusão da comissão. Se o servidor recorre da pena "A", não poderá a autoridade de instância superior proceder à nova avaliação subjetiva dos elementos do processo, para o fim de concluir aplicável a pena "B", de caráter mais gravoso. Aqui, sim, parece-nos aplicável a vedação à reformatio in pejus, em ordem à impedir o agravamento da sanção para o recorrente".
Figueiredo 12 situa a questão não sob o ângulo da reformatio in pejus, mas do controle de legalidade ínsito à atividade administrativa. Para a autora, dentro dos limites de atuação do controle de legalidade é que se produzirá a invalidação de ato administrativo, contrário à lei, emanado em processo administrativo.
Do exposto, revela-se desuniforme a doutrina acerca do tema em estudo. Parte dos autores entende aplicável a vedação à reformatio in pejus, mesmo se a Administração abrir prazo para manifestação do recorrente, por defenderem que tal ato administrativo impugnado não poderia ser modificado em prejuízo do recorrente. Em sentido contrário, há defensores para a tese da inaplicabilidade da vedação à reformatio in pejus. Outros adotam posição intermediária, defendendo que pode a Administração promover o agravamento da situação jurídica do recorrente, desde que observadas condições objetivas para tanto, em prestígio aos princípios da legalidade, da indisponibilidade do interesse público, da supremacia do interesse público sobre o privado e da verdade material.
3.3. POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO JULGAMENTO DO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 21.981/RJ
A aplicabilidade da proibição da reformatio in pejus na seara administrativa foi recentemente analisada pela Segunda Turma do colendo Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do Recurso em Mandado de Segurança 21.981/RJ 13, a Ministra Relatora, Eliana Calmon, manifestou-se contrariamente à vedação, in verbis:
"De referência a não observância do Princípio da ‘non reformatio in pejus’ na esfera administrativa, não tem razão o recorrente. O poder de auto-tutela da administração permite que ela própria anule os seus atos quando reconhecer que houve ilegalidade, ou os revogue por razões de conveniência e oportunidade, a qualquer tempo, antes de consolidado o prazo prescricional.
A possibilidade de revisão de ofício impede a observância do princípio questionado pela recorrente. Em outras palavras, a não aplicação do princípio da ‘non reformatio in pejus’ é corolário do princípio da auto-tutela da administração. A regra sofre exceções, mas estas devem estar expressamente previstas na lei.
Corroborando com o voto da excelentíssima relatora, o Ministro Castro Meira, em voto-vista, dispôs:
"Sobre o tema, há três correntes:
(a) minoritária: para a qual é possível a aplicação da reformatio in pejus pela Administração desde que se paute nos princípios da legalidade, indisponibilidade do interesse público, inquisitivo, oficialidade e verdade material;
(b) majoritária: que entende não ser possível a reformatio in pejus, mesmo que a Administração abra prazo para manifestação do recorrente, na medida em que tal ato administrativo não afastaria a afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal;
(c) mista: segundo a qual é possível o agravamento da sanção desde que observadas certas condições, sendo uma delas a intimação do recorrente para se manifestar sobre o aumento da pena anteriormente imposta.
(...)
Parece-nos correta a tese que admite a possibilidade de agravamento da sanção, mas apenas quando a majoração decorrer de critérios objetivos relacionados ao controle de legalidade do ato administrativo sancionador.
Assim, por exemplo, quando a qualificação jurídica dos fatos indicar que houve a aplicação de uma pena em descompasso com os ditames legais, será possível o agravamento da sanção.
Por outro lado, a pena não poderá ser majorada por critérios subjetivos do julgador, por exemplo, quando ele entende que deveria ser mais rigorosa a punição por um juízo de equidade.
Na verdade, a corrente mista nada mais fez do que proibir a reformatio in pejus, apartando-a do simples controle de legalidade do ato administrativo.
Ora, se um ato é ilegal, vale dizer, se a pena é aplicada em desconformidade com a lei, ela pode ser alterada de ofício, independentemente do processo administrativo, já que à Administração Pública é dado o poder de auto-tutela, que equivale à possibilidade de anular os atos administrativos ilegais. Esse controle objetivo de legalidade do ato administrativo, que é ínsito ao Poder Público, não se confunde nem contraria o princípio processual que veda a reformatio in pejus.
Saliento, por fim, que o art. 65. da Lei Federal 9.784/99 não trata do recurso administrativo, mas do processo de revisão, que pressupõe a "coisa julgada administrativa" e a existência de fatos novos que indiquem a necessidade de alteração da pena aplicada.
Nesse caso - revisão administrativa -, a lei é expressa no sentido de que a pena não pode ser agravada.
(...)
Na hipótese de recurso administrativo, o art. 64. da Lei 9.784/99, já citado, autoriza, pelo menos no plano federal, a reformatio in pejus no processo administrativo sancionador."
Eis a ementa do mencionado RMS 21.981/RJ:
"ADMINISTRATIVO - FUNCIONAMENTO DOS BANCOS – EXIGÊNCIAS CONTIDAS EM LEI ESTADUAL E MUNICIPAL - LEGALIDADE.
1. A jurisprudência do STF e do STJ reconheceu como possível lei estadual e municipal fazerem exigências quanto ao funcionamento das agências bancárias, em tudo que não houver interferência com a atividade financeira do estabelecimento (precedentes).
2. Leis estadual e municipal cuja argüição de inconstitucionalidade não logrou êxito perante o Tribunal de Justiça do Estado do RJ.
3. Em processo administrativo não se observa o princípio da "non reformatio in pejus" como corolário do poder de auto tutela da administração, traduzido no princípio de que a administração pode anular os seus próprios atos. As exceções devem vir expressas em lei.
4. Recurso ordinário desprovido."
Convém mencionar que a decisão emanada no acima mencionado RMS 21.981/RJ promoveu a orientação diversa da já emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, que havia entendido, através de sua Sexta Turma, pela aplicabilidade do princípio da vedação à reformatio in pejus no âmbito do direito administrativo, em acórdão que restou assim ementado:
"ADMINISTRATIVO. SERVENTUARIO DE CARTORIO. PENA ADMINISTRATIVA. REFORMATIO IN PEJUS. MANDADO DE SEGURANÇA. PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO E PODER PUNITIVO DO ESTADO-SOCIEDADE. DIFERENÇAS E APROXIMAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE, EM AMBAS AS HIPOTESES, DE SE APLICAR PENA NÃO MAIS CONTEMPLADA PELA LEI E AGRAVAR A SITUAÇÃO DO DISCIPLINADO. RECURSO ORDINARIO CONHECIDO E PROVIDO.
I - O impetrante/recorrente, que e escrivão da 3a. Vara da Comarca gaucha de Gravatai, foi punido com a pena de 10 dias de suspensão pelo juiz diretor do foro que, 'uno acto', transformou a penalidade em pena pecuniária. Foi interposto recurso, o qual não foi conhecido. O orgão recursal (corregedor-geral), porém, através de subterfugio, voltou, de oficio, a penalidade antiga, ja não mais contemplada pela legislação.
II - o "poder disciplinar", próprio do Estado-Administração, não pode ser efetivamente confundido com o "poder punitivo" penal, inerente ao Estado-Sociedade. A punição do último se faz através do Poder Judiciario; já a do primeiro, por meio de órgãos da própria Administração. Ambos, porém, não admitem a 'reformatio in pejus', e muito menos a aplicação de pena não mais contemplada pela lei.
III – Recurso ordinário conhecido e provido". 14
3.4. VISÃO CRÍTICA
Tudo posto, constata-se que não há um entendimento doutrinário pacífico sobre a vedação à reformatio in pejus no âmbito do processo administrativo, embora a mais recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acolha a tese da inaplicabilidade da vedação.
Entender pela aplicação, com reservas, da reformatio in pejus, no âmbito processual administrativo, parece ser o melhor encaminhamento a ser dado ao tema. Assim, quando o ato revisional da Administração pautar-se em critérios puramente objetivos, com a devida motivação, afasta-se a vedação, sendo possível a reformatio em pejus, de acordo com o voto-vista proferido pelo Ministro Castro Meira no acima referido RMS 21.981/RJ.
Na questão em exame, constata-se que princípios se confrontam, quais sejam: os invocados em benefício do administrado (ampla defesa, contraditório e devido processo legal); bem como os princípios norteadores de todo processo administrativo (como a legalidade, a verdade material, a indisponibilidade do interesse público e a supremacia do interesse público sobre o privado). Quando princípios aparentemente se contrapõem, é preciso resolver tal antinomia sistêmica à luz dos ensinamentos de Dworkin 15, aplicando-se o princípio com maior peso no caso concreto. Assim, deve o intérprete realizar a coordenação dos bens jurídicos envolvidos, de forma a evitar o sacrifício total de um dos princípios, em respeito à unidade do sistema jurídico.
Assim, havendo a ocorrência de um ilícito, o agente público tem o dever-poder de expurgá-lo do sistema, prevalecendo, pois, no caso, os princípios da legalidade, da indisponibilidade do interesse público e da verdade material.
Tem-se, então, que a Administração, assim procedendo, não estaria agravando a pena, mas realizando um dever legalmente imposto, já que tais princípios conferem poderes para que a Administração Pública possa aplicar a lei de acordo com a finalidade nela prevista. Assim, não há que se falar em alegação de desrespeito às garantias conferidas aos administrados. Esse parece ser melhor entendimento para o tema.
Por derradeiro, convém esclarecer, ainda, que, se por um lado, como visto, é permitida a aplicação da reformatio in pejus no recurso do processo administrativo, por outro, a teor do artigo 65 da Lei nº 9784/99, é vedado o agravamento da sanção anteriormente aplicada ao recorrente em caso de revisão.
Isso porque a revisão administrativa não é espécie de recurso administrativo, já que este é apresentado no decorrer do próprio processo, objetivando a rediscussão de uma decisão ali emanada. A revisão administrativa, diferentemente, é admitida nos processos de natureza sancionatória, apresentando-se como forma de reapreciação da integralidade do processo, desde que estejam presentes, como requisitos, o surgimento de fatos novos (que possam interferir na decisão administrativa) ou circunstâncias relevantes (que, eventualmente, possam alterar a sanção aplicada). Neste caso, deve prevalecer a vedação à reformatio in pejus.