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O beijo e os toques lascivos com pena de homicídio

12/06/2011 às 11:10
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Profetizava Beccaria:

"Se fosse possível adaptar a geometria as combinações infinitas e obscuras das ações humanas, deveria existir uma escala correspondente de penas, indo da mais forte para a mais fraca: mas bastará ao sábio legislador marcar os pontos principais, sem alterar a ordem, não decretando para os delitos do primeiro grau as penas do ultimo"1.

Imaginem as seguintes situações de ordem prática.

Caso prático nº 01: Tício, mediante violência, imobilizou Mévia e manteve com mesma conjunção carnal. Tício foi denunciado pelo Ministério Público como incursos nas tenazes do art. 213 (estupro) do Código Penal, c/c art. 1º, inciso V, da Lei 8.072/90 (crime hediondo).

Caso prático nº 02: Tício, mediante violência, imobilizou Mévia, acariciou seus seios e a beijou. Tício foi denunciado pelo Ministério Público como incursos nas tenazes do art. 213 (estupro) do Código Penal, c/c art. 1º, inciso V, da Lei 8.072/90 (crime hediondo).

Reflita e aponte a solução jurídica:

Solução jurídica: quanto ao caso prático nº 01 a atitude do Promotor de Justiça foi absolutamente correta, quanto ao segundo caso prático, o tema é complexo e enseja grande controvérsia.

A possibilidade de o beijo e os toques lascivos serem considerado ato libidinoso diverso de conjunção carnal, portanto, crime de estupro, sempre dividiu a doutrina.

Hungria2 defendia que: "se o beijo for dado de modo lascivo ou com fim erótico, poderá ser enquadrado no conceito de ato libidinoso".

Era também a posição de Noronha3, que leciona: "se o beijo na boca for dado por meio de violência ou ameaça, num impulso de luxúria ou volúpia, constitui ato de libidinagem".

O segundo caso prático só pode ser solucionado com o estudo de princípios.


A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS

No livro Direito Penal, Parte Geral, Série Provas e Concursos, Série Provas e Concursos, Editora Campus/Elsevier, fizemos uma exposição didática dos 42 princípios do direito penal, pois entendo primordialmente salutar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,

"Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa, não só a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".


DO PRINCÍPIO DA PROPORCINALIDADE

Podemos afirmar que para não violar o princípio da proporcionalidade a pena deve guardar absoluta proporção com a gravidade do crime praticado, in casu, não é razoável dar mesma reprimenda penal do coito anal, vaginal e oral a um beijo lascivo ou toques pudendos.

Para Heloisa Estellita:5

[...] necessário seria passar todo o arcabouço de normas incriminadoras pelo ‘filtro’ do princípio da proporcionalidade para se restabelecer a coerência e a harmonia entre o Direito Penal positivo e os cânones Constitucionais, especialmente para que aquele refletisse a hierarquia dos bens jurídicos penais emergentes de nossa Constituição Federal.

A pena tem que se mostrar proporcional ao mal praticado pelo agente, portanto, repito: um toque lascivo pudendo, embora seja repugnante, não pode ter a mesma pena de um coito vaginal forçado.

Devemos sempre fazer uma relação de proporcionalidade entre a importância do bem jurídico protegido e a gravidade da ofensa ou ameaça a esse bem, com tal confronto, podemos concluir que o beijo lascivo e o toque pudendo é infinitamente menos grave do que o coito anal, vaginal e oral, destarte, a pena não pode ser a mesma.

Com efeito, proporcionalidade enseja desde logo uma idéia de razoabilidade, traduz aquilo que não é absurdo, tão somente o que é bom senso, portanto, considerar estupro o beijo lascivo ou um toque pudendo é, data venia, um excesso que implica em grande e desmedida ilogicidade.

A proibição do excesso é uma das vertentes mais importantes do princípio da proporcionalidade, em tal contexto, Canotilho [01] defende que:

O princípio da proibição de excesso significa que qualquer limitação, feita por lei ou com base na lei, deve ser adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida). A exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adoção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas não são necessárias para se obterem os fins de proteção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, ou menos ´coativo´, relativamente aos direitos restringidos. O princípio da proporcionalidade em sentido restrito (´princípio da justa medida´), significa que uma lei restritiva, mesmo adequada e necessária, pode ser inconstitucional, quando adote ´cargas coativas´ de direitos, liberdades e garantias ´desmedidas´, ´desajustadas´, ´excessivas´ ou ´desproporcionadas´ em relação aos resultados obtidos.

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AD CONCLUSIO

Solução jurídica do caso prático nº 01: Tício deve ser denunciado por estupro na exata forma do art. 213 (estupro) do Código Penal, c/c art. 1º, inciso V, da Lei nº 8.072/90 (crime hediondo).

Solução jurídica do caso prático nº 02: entendo que a pesar dos atos praticados por Mévio serem repugnantes, o delito não pode ser o de estupro, pois tal tipificação viola o princípio da proporcionalidade.

A possibilidade de o agente ativo ser condenado em uma pena de reclusão, de seis a dez anos, portanto, por estupro, por ter beijado ou tocado em uma das partes íntimas da vítima de forma forçada, viola o princípio da proporcionalidade. Assim, entendo que:

a) Quando o ato libidinoso for de baixa intensidade, como, por exemplo, um abraço, um beijo lascivo, um toque nos seios de uma mulher, um simples toque sobre as roupas nas partes íntimas da vítima, deve o fato ser classificado, em consonância com o caso concreto, como violação sexual mediante fraude (Art. 215 do Código Penal), ou contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61) ou constrangimento ilegal (artigo 146 do Código Penal).

b) Quando o ato libidinoso for de alta intensidade, como, por exemplo, sexo anal, sexo oral, colocar o órgão genital entre as coxas da vítima, introduzir o dedo na vagina ou no ânus da vítima, coito vestibular, deve-se o fato ser classificado como ato libidinoso diverso de conjunção carnal, portanto, crime de estupro.


Referência

1.(Beccaria, Cesare Bonesana. (Trad. Flório de Angelis). Dos Delitos e das Penas. Bauru: Edipro, 1993).

2.(HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Saraiva, 1969, p. 123).

3.(NORONHA; MAGALHÃES. Direito Penal. v. III, Saraiva, 1970, p. 6).

4.HELOISA ESTELITA. Direito Penal, Constituição e Princípio da Proporcionalidade, p. 13.

5.(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000)


Nota

  1. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000)
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Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. O beijo e os toques lascivos com pena de homicídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2902, 12 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19328. Acesso em: 26 abr. 2024.

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