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Flanelinhas pelo mundo: como outros países enfrentam este problema urbano

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29/06/2011 às 14:02
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Enquanto as autoridades (políticas e policias) de algumas cidades buscam meios de reprimir com rigor esta conduta, em muitos municípios a ilicitude da mesma é simplesmente ignorada.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A ação dos flanelinhas além das ruas brasileiras. 2.1. E.U.A. 2.2. México 2.3. África do Sul 2.4. Portugal. 2.5. Espanha. 3. O Brasil e a experiência alienígena. 3.1 Aprendendo com a experiência Norte Americana e Mexicana. 3.2. Aprendendo com a experiência Sul Africana. 3.3 Aprendendo com a experiência Portuguesa e Espanhola. 4. Considerações finais


1.INTRODUÇÃO

Em meados dos anos 40, o notável cineasta americano Walt Disney buscava inspiração para elaborar um personagem de desenho animado que representasse o perfil típico do povo brasileiro. O resultado foi o papagaio Zé Carioca, um personagem alegre, porém malandro, com aversão ao trabalho e que está sempre a procura novas artimanhas para se dar bem.

Muitos brasileiros trabalharam arduamente para mudar esse infeliz estereótipo macional, porém não há como negar que alguns personagens cotidianos ainda são perfeitos representantes daquela ingrata imagem elaborada décadas atrás. Dentre estes destaca-se a figura do guardador de carros clandestino (flanelinha), um indíviduo que se vale do medo natural do cidadão diante da violência urbana para oferecer um suposto serviço de vigilância sobre os veículos estacionados em vias públicas. Colocam os condutores de em uma incômoda situação de constrangimento, de forma que o motorista deve optar entre pagar ao guardador ou ter seu veículo ou até mesmo sua integridade física atingidos.

O presente artigo pretende esclarecer que este problema não é uma exclusividade das ruas pátrias, sendo uma questão de segurança pública evidenciada em várias outras nações. Vale lembrar que em artigos anteriores já demonstramos o impacto negativo da atuação dos guardadores na sociedade [01], os delitos por eles praticados [02] e a necessidade da criminalização da conduta [03].

Atualmente este é um tema extremamente controverso no Brasil. Enquanto as autoridades (políticas e policias) de algumas cidades buscam meios de reprimir com rigor esta conduta [04], em muitos municípios a ilicitude da mesma é simplesmente ignorada. Diante disso, o objetivo deste sucinto trabalho é expor as implicações da ação dos flanelinhas em alguns outros países e a forma o problema foi (ou não) por eles enfrentado. Ao fim tentamos utilizar estas informações como parâmetros na busca de uma solução viável a nossa realidade.


2. A AÇÃO DOS FLANELINHAS ALÉM DAS RUAS BRASILEIRAS

2.1 EUA

Os Estados Unidos nunca enfrentaram maiores dificuldades decorrentes da atuação de guardadores de carros ilegais [05], mas começamos abordando este país porque no início dos anos 90 uma de suas maiores cidades encarou e venceu um "vilão urbano" cuja conduta e abordagem era muito semelhante a praticada pelos flanelinhas no Brasil. Na época, os cidadãos de Nova Iorque sofriam com a ação dos "esqueegeemen", pessoas, normalmente jovens e atuando em grupo, que mediante ameaças, veladas ou não, extorquiam dinheiro de motoristas após terem lavado os pára-brisas dos carros sem autorização. [06] Eram figuras semelhantes àquelas conhecidas nas ruas cariocas como "rodinhos", mas que atuavam de forma ainda mais violenta e intimidadora.

O problema pode parecer inofensivo em uma análise superficial, mas suas implicações negativas fizeram com que esta se tornasse uma das principais reclamações dos nova-iorquinos, que viam na atuação daqueles jovens delinqüentes a ausência de ordem e autoridade, bem como uma ameaça constante, que levava ao medo e à decadência da qualidade da vida urbana. Tanto que uma das principais reivindicações da população nas eleições municipais em 1993 foi justamente a repressão à atuação dos "esqueegeemen".

Assim, o que poderia parecer em um primeiro momento algo com que a polícia sequer deveria se preocupar, estava, na verdade, atormentando aos motoristas e a sociedade como um todo. A situação em Nova Iorque chegou a esse ponto justamente porque naquele tempo havia nos EUA a idéia de que a polícia não deveria investir seus esforços para manter a ordem pública e prevenir delitos, mas sim para combater diretamente a criminalidade "pesada". Essa estratégia de prioridades fez com que desordens e pequenas infrações deixassem de ser reprimidas e que própria criminalidade "pesada" aumentasse gradualmente.

A mudança de estratégia ocorreu quando o então prefeito de Nova Iork, Rudolf Giuliani, e seu chefe de polícia, William Bratton, implantaram um método de policiamento baseado na manutenção da ordem, enfatizando o combate ativo e agressivo de pequenas infrações, uma atuação que ficou conhecida como "Política de Tolerância Zero", ação esta baseada na polêmica "Broken Windows Theory" [07] (Teoria das Janelas Quebradas).

Esta Operação, ao reprimir de forma eficaz a atuação dos "esqueegeemen" e de todos aqueles praticantes de pequenos delitos (pichadores, pessoas que não pagavam o metro, etc.), obteve grande sucesso na diminuição da criminalidade naquela cidade, embora muitos ainda questionem a ausência de dados empíricos capazes de comprovar sua eficácia. Não obstante, o fato é que, com a implantação desta política, os "lavadores delinqüentes" simplesmente desapareceram e os motoristas finalmente se viram livres daquela extorsão cotidiana.

2.2 MÉXICO

Independentemente das muitas críticas recebidas [08], a experiência americana foi repetida com sucesso no México, que atuou incisivamente contra os "aparcacoches" (nome dado aos flanelinhas na região). Diferentemente dos EUA, este país há muito tempo sofria com a intimidação exercida pelos guardadores clandestinos de veículos sobre os condutores.

A existência da cobrança para vigilância de carros em vias públicas mexicanas pode ser verificada até mesmo em episódios do seriado de TV "El Chavo del Ocho" (conhecido no Brasil como Chaves). Em um episódio, o ator Héctor Bonilha visita a Vila e o personagem Chaves se oferece para vigiar seu carro em troca de dinheiro. Um tempo depois o menino está de volta: _Já vigiei seu carro. Quer que eu vigie denovo?_ diz estendendo a mão até receber mais uma moeda.

Deixando o humor e a ficção de lado, a verdade é que o problema existia há muito tempo naquele país, mas só ganhou maior relevo em 2004, época em que o México sofria com elevados índices de criminalidade urbana, o que fez a população ir às ruas da Cidade do México exigir uma resposta das autoridades. O Governo passou então a combater a delinqüência através de várias frentes. Uma delas, talvez a medida mais importante, foi não se omitir diante de qualquer delito, por menor que fosse. Dentre estas infrações, a atividade dos "aparcacoches" (flanelinhas) foi apontada como uma das principais a serem combatidas. [09]

Em 31 de maio daquele ano foi sancionada uma lei denominada "ley de cultura cívica" [10] que estabelecia as regras mínimas de comportamento do cidadão e previa uma nova espécie de delito, a infração cívica. A partir disso, os guardadores clandestinos de carros e outros "perturbadores da paz pública" passaram a ser punidos com um breve recolhimento a prisão, além de multa de até 30 salários mínimos.

Todas as ações encadeadas criaram um agradável clima de respeito às leis e contribuíram para frear o crescimento da delinqüência no país (muitos detidos eram delinqüentes procurados por outros crimes mais graves e devido a citada operação eles acabaram sendo finalmente presos). Na época, os "aparcacoches" ilegais praticamente sumiram das ruas mexicanas.

2.3 ÁFRICA DO SUL

Durante a realização da última Copa das Confederações na África do Sul, a organização do evento recebeu incisivos protestos relativos à segurança pública no país. Entre as razões destas críticas estava justamente a atuação dos guardadores de carros clandestinos, que muito intimidaram os jornalistas esportivos que cobriram o evento.

O estopim aconteceu quando alguns jornalistas alemães foram abordados por flanelinhas que exigiam dinheiro no estacionamento reservado à imprensa, no estádio Loftus Versfeld, em Pretória, após uma partida entre Brasil e Itália na primeira fase da competição. Acostumados com um grau elevado de civilidade em sua terra natal, os alemães mostram-se inconformados com a coerção sofrida e acionaram a imprensa mundial. [11]

Após o incidente, Comitê Organizador Local (COL) se viu em meio a uma chuva de indagações de jornalistas de importantes veículos, como a agência Reuters, a emissora de TV inglesa SKY, e os influentes jornais New York Times, dos EUA, e Le Monde, da França, que condenaram o fato de o país da próxima copa ser apático em relação a uma atividade que configura verdadeira extorsão.

O Comitê tentou minorar a situação alegando que episódio não se tratou de um assalto, mas sim de "um pedido de dinheiro típico de países do terceiro mundo". A justificativa não convenceu os repórteres das nações desenvolvidas, que não pouparam críticas quanto à perturbadora atuação intimidadora dos guardadores sul-africanos.

Diante desse clima tenso, o ministro da Polícia da África do Sul, Fikile Mbalula, afirmou que o fato não passou de um caso isolado e que não houve um roubo de fato. Um repórter da Reuters retrucou dizendo que já cobriu oito Copas e isso jamais lhe aconteceu. O assunto acabou como manchete de inúmeros jornais.

As modestas ações tomadas pelo poder público do país foram ineficientes e o problema se repetiu na Copa do Mundo de 2014. Embora novos escândalos não tenham se repetido, as ações dos guardadores ilegais estavam entre as principais queixas dos turistas. [12]

2.4 PORTUGAL

Em Portugal o flanelinha é uma figura comum nos centros urbanos, sendo conhecido pelos lusitanos como "arrumador de carros" ou simplesmente "arrumador". Neste país, a questão da cobrança ilegal pelas vagas de estacionamento em vias públicas está intimamente ligada ao problema do uso indiscrimidado de entorpencentes, vez que a grande parte dos arrumadores são dependentes químicos que encontraram na atividade uma forma de manter seus vícios.

Um estudo intitulado "Arrumadores ou Arrumados", coordenado por Elza Pais, professora do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, apontou que o fenômeno de arrumar carros apresenta-se como um novo problema social decorrente das mutações constantes da realidade lusitana. Segundo o estudo, essa situação "representa um problema social, devido à sua situação de exclusão social e de toxicodependência, encontrando-se esta população, inibida de exercer por completo a sua cidadania."

No mesmo sentido, o sociólogo José Machado Pais, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em um trabalho dedicado ao tema, afirma: "O senso comum alimenta a idéia de que os jovens arrumadores, por serem ‘drogados’, são delinqüentes, logo perigosos. Esta consensualidade é legitimada por estudos que estabelecem uma correlação estreita entre ‘consumo de drogas ilícitas’ e ‘delinqüência’, legitimação que sai reforçada quando os media a propagam como realidade incontornável. Alguns automobilistas contactados confessaram que, quando dão dinheiro a um arrumador, o fazem por receio de represálias — riscos no carro, pneus furados, vidros partidos." [13]

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O sociólogo afirma ainda que em Portugal existem dois tipos de arrumadores: os mais jovens, vistos sempre como drogados, e os idosos, conhecidos como "chapéus de chapa" (o nome decorre de um chapéu tradicionalmente utilizado por eles, que segundo o sociólogo lhes confere um poder simbólico ou alegórico). Estes últimos são encarados com alguma a respeitabilidade em razão de sua avançada idade, porém constantemente queixam-se de uma suposta concorrência desleal e chantagista exercida pelos mais jovens,

Um projeto realizado na cidade portuguesa de Caldas da Rainha, desenvolvido em 2005 através de uma parceria Câmara Municipal, a Polícia de Segurança Pública e outras entidades, buscou solucionar o problema através do fornecimento tratamento aos arrumadores dependentes de tóxicos. Com isso, parte dos arrumadores de automóveis deixou de exercer a atividade, que em muito prejudicava a imagem turística da cidade. [14] Entretanto, esta e outras medidas semelhantes adotadas no país apenas amenizaram o problema, já continuam sendo noticiados inúmeros casos de violência envolvendo guardadores lusitanos.

2.5 ESPANHA

Neste país, onde os flanelinhas são conhecidos como "gorrillas" ou "aparcacoches", o problema começou a tomar grandes proporções em fevereiro de 2006, na cidade de Córdoba, quando dois guardadores ilegais esfaquearam um homem por se opor ao pagamento. [15]

Nos últimos anos, operações forma realizadas em Barcelona com o fim de prender guardadores, tipificando a conduta como ameaça a propriedade. Os cidadãos tem se indignado com os valores que lhes são extorquidos, havendo guardadores ilegais que cobram um preço "oficial" de 14 euros por vaga. [16]

Em Valencia a presença indesejada de flanelinhas (boa parte formada por imigrantes africanos) é um constante motivo de reclamação por moradores e turistas. [17] De acordo com o porta-voz da promotoria da cidade, a conduta é punida com multa (em 2009 foram aplicadas mais de duas mil), mas em muitos casos o guardador deve ser apresentado a um juiz. Se for uma situação ‘leve’, diz o promotor, o guardador é acusado de ‘falta de desobediência’, enquanto ‘crimes mais graves e persistentes’, como coação, podem resultar até mesmo em prisão. [18] No caso de crime de desobediência, este estaria configurado porque os "gorrilas" violam o artigo 122 do "Regulamento Geral de Circulação Municipal".

A cidade de Alicante foi uma das primeiras a aprovar uma lei que proíbe expressamente a atividade dos guardadores. No entanto, na prática, os agentes municipais apenas aplicam uma multa como punição e os guardadores raramente pagam. Quando são abordados pela policia local e ainda assim permanecem com a atividade, podem os "gorrilas" serem autuados por desobediência. [19]

Na cidade de Ibiza, apesar de um decreto-lei municipal de 2009 destinado a promover e garantir a segurança do cidadão em espaços públicos, muitos motoristas ainda são ameaçados. O decreto-lei não conseguiu erradicar essas práticas com base no seu artigo 27, que inclui a proibição de "conduta sob o pretexto de pedir insistente, intrusivo ou agressivo". Esta regra é estendida no artigo 28.1, que proíbe expressamente a conduta que, sob formas organizadas, representam atitudes coercitivas ou de assédio, ou de obstruir e dificultar intencionalmente livre trânsito dos cidadãos nos espaços públicos. [20] O decreto-lei não só prevê sanções econômicas para essas ações, mas essas multas podem ser substituídas por sessões de atendimento individualizado com os serviços sociais ou cursos onde informar as pessoas afetadas pelo potencial de apoio e assistência sociais públicas e privadas oferecem instituições.

Aos poucos o país começa a enfrentar de forma mais efetiva a atuação dos guardadores, havendo recentes condenações, como a de um flanelinha condenado a um ano e meio de prisão por ameaçar policiais e outro condenado a seis meses em razão de uma coação contra um motorista que está se recusou a pagar. [21]


3. O BRASIL E A EXPERIÊNCIA ALIENÍGENA

3.1 APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA AMERICANA E MEXICANA

No Brasil, a atuação dos flanelinhas tem sido tolerada pela policia há muito tempo. A conduta é muitas vezes encarada como um delito de menor relevância, que não constitui uma prioridade diante de tantos crimes mais graves ocorridos com preocupante freqüência em todo país [22]. Entretanto, este entendimento ignora a intrínseca relação entre essas infrações e a criminalidade como um todo, de forma que a qualidade de vida da população tem caído concomitantemente com a permissibilidade de delitos como esse.

Não se pode negar que a falta de combate aos pequenos infratores gera o descrédito da sociedade na atuação e competência das instituições estatais, trazendo a sensação de se viver em uma terra sem lei, ou melhor, em uma terra de muitas leis, porém sem respeito a elas. Notadamente, trata-se de uma atividade que representa a impotência do poder público perante a marginalidade, sua ineficiência em manter a ordem e coibir práticas que atentam contra a paz social, gerando no espírito do indivíduo uma insegurança quanto à proteção dispensada pelo próprio estado.

De fato, a desordem e a ausência de repressão a pequenos delitos não são, por certo, a única causa do aumento da criminalidade no Brasil. A criminalidade é um fenômeno complexo, fundamentada também em razões de ordem econômica, política e social.

No entanto, se o crime tem causas multifatoriais, as soluções também são variadas. Assim, a contenção da ação dos flanelinhas deve ser encarada como um importante elemento no combate à criminalidade e na manutenção da ordem, embora não o único. Nesse sentido, em artigo sobre o tema, o DoutorDráuzio Varella aduziu que aquelas condutas que importam na deterioração da paisagem urbana são interpretadas como ausência dos poderes públicos, o que "enfraquece os controles impostos pela comunidade, aumenta a insegurança coletiva e convida à prática de crimes". [23]

O Brasil pode aprender com a experiência americana, não para repetir integralmente, em patente desrespeito as garantias constitucionais, as tão criticadas operações de "Tolerância Zero", mas sim para compreender a necessidade inadiável de se dar a devida atenção às infrações incorporadas ao cotidiano das pessoas. A ocorrência de delitos (como o dos flanelinhas) sem a devida repressão "configura as primeiras janelas quebradas que, não consertadas, irão, mais tarde, solapar todo o sistema de segurança pública, criando um clima propício para o aumento da criminalidade." [24]

Deve-se ter em mente que os sistemas adotados na América do Norte e no México são baseados em diferentes premissas e que, sendo o Brasil permeado por diferentes garantias constitucionais, apenas algumas dessas premissas nos são validas [25]. Devem ser repelidas aqui idéias como a intolerância com as condutas que sequer são tipificadas ou a imposição de penas demasiadamente severas. Contudo, a diminuição da impunidade, ressocializando mais criminosos (não necessariamente impondo penas restritivas de liberdade) e prevenindo a ocorrência de novas infrações, bem como a atuação uma polícia preparada junto à comunidade, são ações que podem ser repetidas com sucesso no enfrentamento dos flanelinhas brasileiros.

3.2 APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA SUL AFRICANA

Os fatos envolvendo flanelinhas durante os últimos eventos esportivos na África do sul devem ser tomados como lição para que o mesmo problema não se repita em nosso país.

É fato notório que as grandes e médias cidades brasileiras têm suas ruas loteadas por guardadores de carros clandestinos. Quem freqüenta jogos de futebol sabe que os estádios nacionais são rodeados por flanelinhas, que em dias de clássico exigem antecipadamente quantias exorbitantes pela utilização de uma vaga.

O contingente de flanelinhas nas ruas tupiniquins aumenta cada vez mais, e, assim como na África do Sul, tem se tornando uma prática comumente associada à criminalidade e à degradação do ambiente urbano. Dessa forma, percebe-se que Brasil enfrenta o mesmo problema de segurança pública que levou imprensa mundial a criticar tão duramente o país sede do último mundial de futebol. Se esta prática injustificável perdurar ruas brasileiras até a Copa de 2014, é de se imaginar que o país será alvo da mesma censura internacional. De nada adiantará duplicar rodovias e desafogar o trânsito se os turistas não poderão sequer estacionar seus carros livremente.

A situação demanda uma intervenção imediata do poder público, já que conivência estatal com esta conduta atingiu um novo patamar: o risco de um irremediável desprestígio internacional, apto a atrapalhar até mesmo a realização da Copa do Mundo de 2014, como ocorreu na África do sul na Última Copa das Confederações e Copa do Mundo de Futebol.

Quanto a esta relação entre flanelinhas e estádios de futebol, cabe ainda mais uma consideração. Em julho de 2010, foram feitas mudanças no estatuto do torcedor através da Lei nº 12.299/2010. As alterações objetivaram reduzir a violência dentro e fora dos estádios, aumentando o rigor das penas para quem invadir o campo, cometer atos de vandalismo, atuar como cambista, etc.

Ora, se o legislador queria melhorar a vida de quem freqüenta os jogos, não poderia deixar de combater a atuação dos flanelinhas que tanto intimidam torcedores nas imediações dos estádios, cobrando antecipado e com ameaças implícitas ou explícitas (e o pior é que os guardadores de carros alegam cobrar por um suposto serviço de vigilância, mas abandonam o local assim que o jogo começa).

Neste sentido o radialista e narrador esportivo "Tonicão", da Transamérica FM e Rádio Record AM, que pode até não entender de leis, mas entende muito de estádios de futebol, se manifestou: "A novo estatuto determina muitas outras coisas, porém deixaram de lado um detalhe super importante: Proibir os flanelinhas que importunam e constrangem quem tenta estacionar nas imediações do estádio." [26]

Atualmente, algumas ações pontuais da polícia na repressão de flanelinhas até chegam a ocorrer em alguns poucos jogos [27], mas este combate ainda é muito tímido se considerarmos a real dimensão do problema.

3.3 APRENDENDO COM EXPERIÊNCIA PORTUGUESA E ESPANHOLA

A ação dos guardadores ilegais brasileiros e lusitanos funda-se em razões de natureza diversa em cada país. Enquanto em Portugal a necessidade de dinheiro para o consumo de drogas é o fator primordial para ação dos "arrumadores", no Brasil há ainda as altas taxas de desemprego, a associação da conduta a outras formas de criminalidade, o aumento exponencial da rentabilidade deste tipo de crime, o conformismo da população e a falta de controle e repressão pelo poder público.

Além disso, sabe-se que os flanelinhas pátrios se mantêm no ofício porque jamais conseguiram renda semelhante trabalhando no mercado formal. Neste sentido uma pesquisa desenvolvida por Raphael Henrique de Fernandes Matos, do Departamento de antropologia da Universidade de Brasília, apontou respostas comumente dadas pelos que os guardadores para justificar a atividade e entre elas encontramos: "O salário é melhor que outros trabalhos"; "Pra trabalhar para si próprio" ou até mesmo "Porque é o único serviço que gostei." [28]

Mesmo que o problema tenha origem diversa, ainda assim pode o Brasil aprender com a lição lusitana no sentido de que o problema deve ser encarado também levando-se em conta aspectos sociais relacionados à atividade. Isto porque para solução definitiva da questão faz-se necessária ainda uma atuação integrada entre o Direito Penal e as políticas sociais, visto que afastando os flanelinhas de sua atividade criminosa, ainda assim persistirá o problema da falta de ocupação.

Esta proposta de solução consiste em uma nova postura a ser adotada pelas prefeituras, que ao invés de buscarem formas de institucionalizar a cobrança efetuada pelos guardadores através de cadastramento e regularização, deveriam buscar alternativas para eliminar esse tipo de atuação nas ruas dos municípios através da inclusão destas pessoas no mercado de trabalho formal. Não se trata de formalizar a informalidade, mas sim de proporcionar alternativas de subsistência através de uma ocupação digna.

Neste sentido um projeto chegou a ser adotado na cidade de Volta Redonda (RJ) [29]. A prefeitura deste município realizou parcerias com empresas da iniciativa privada, que assumiram o compromisso de admitir guardadores retirados das ruas em seu rol de funcionários. Em troca, o município se comprometeu em capacitar estes ex-flanelinhas por meio de cursos profissionalizantes a serem custeados pela própria prefeitura. Dessa forma ambos sairiam ganhando: as empresas admitiriam funcionários capacitados e cumpririam com sua função social; o município, por sua vez, se veria livre da incômoda e injustificável intimidação cotidiana promovida pelos guardadores clandestinos. O projeto deu certo no início, mas outros flanelinhas acabaram tomando o lugar daqueles que saíram da ocupação (ou seja, este tipo de política só funcionaria se fosse implantado em conjunto com alguma forma efetiva de repressão da conduta).

Quanto à experiência espanhola, pode-se perceber que aquele país tem buscado meios legais de reprimir a conduta, seja através da punição com base nos tipos penais já existentes, seja através da atuação legislativa para uma nova tipificação.

Em relação à possibilidade de uma nova tipificação, assumia especial relevo no Brasil o Projeto de Lei n° 4501/08, de autoria do Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ), cuja pretensão era tornar crime a "cobrança de taxa pelo serviço de vigilância de carros em locais públicos", que constaria no Código Penal como modalidade de extorsão indireta, com pena prevista de um a três anos de detenção e multa. Porém, as Comissões da Câmara protelaram de tal forma a apreciação deste projeto que ele acabou sendo arquivado quando seu autor não foi reeleito nas últimas eleições. Até agora nenhum parlamentar teve o bom-senso de reapresentar a proposta.

Já em relação a punição com base aos tipos já existentes no Brasil, conforme já esclarecemos em um artigo anterior [30], como via de regra o guardador clandestino efetua o "serviço" sem cumprir as condições exigida pela Lei Federal 6.242/75 (que exige autorização especial do poder público para a pratica de "vigiar veículos"), sua conduta caracteriza a contravenção de exercício irregular de profissão ou atividade.

Recentemente o Juiz Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, integrante da Turma Recursal Criminal de Belo Horizonte, acatou um recurso do Ministério Público para aceitar uma denúncia que havia sido rejeitada em primeiro grau porque a Juíza envolvida no caso considerava a conduta dos flanelinhas atípica, apenas um problema social. Em sua decisão, Narciso Alvarenga afirmou que a profissão de guardador foi regulamentada por lei, sendo que qualquer indivíduo que exercitar o ofício sem atender as condições legais impostas estará praticando a contravenção penal descrita no artigo 47 da Lei de Contravenções Penais (exercício irregular de profissão ou atividade).

O magistrado aproveitou a oportunidade para rebater o outro argumento levantado em primeiro grau: "Vale mencionar também que a questão social não pode ser utilizada para a rejeição da denúncia, tendo em vista que milhares de pessoas no Brasil encontram-se desempregadas e nem por esse motivo ficam pelas ruas cometendo crimes e contravenções penais" [31]

Além desta contravenção, a conduta dos flanelinhas pode evidenciar o cometimento de variados crimes, de acordo com peculiaridades de cada abordagem. Se a flanelinha não faz um pedido ao condutor, mas verdadeira cobrança coercitiva, presente estará o crime de extorsão. Se o flanelinha simplesmente impedir que um motorista venha a usufruir de uma vaga pública de estacionamento (exigindo pagamento adiantado, por exemplo), tal ato configurará o crime de constrangimento ilegal. Por outro lado, se um guardador clandestino se valer de meios ardilosos para que o condutor lhe pague voluntariamente (utilizando coletes ou crachás que passem a falsa aparência de que sua situação é regularizada junto aos órgãos competentes), poderão estar caracterizados o crime de estelionato. Caso o flanelinha venha a se passar por agente municipal competente para efetuar tal cobrança, sua conduta poderá ser enquadrada como o crime de usurpação de função pública. Vale ressaltar ainda que existem ainda inúmeros outros delitos comumente praticados de forma secundária pelos flanelinhas, tais como os crimes de dano, furto, lesão corporal, supressão de documento público (quando rasgam multas), formação de quadrilha, corrupção ativa e até mesmo tráfico de drogas, havendo ainda a possibilidade de enquadrá-lo na contravenção de vadiagem caso não comprove que possui alguma ocupação lícita.

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Sobre o autor
Oneir Vitor Oliveira Guedes

Advogado inscrito na OAB/RJ, formado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Oneir Vitor Oliveira. Flanelinhas pelo mundo: como outros países enfrentam este problema urbano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2919, 29 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19440. Acesso em: 22 nov. 2024.

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