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Medidas de segurança: quando a irracionalidade se propõe a cuidar da pretensa falta de razão

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12/07/2011 às 08:01
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O instituto penal das medidas de segurança consiste em um "embuste das etiquetas", pois, apesar de ser punitivo na prática, é "vendido" com rótulo de tratamento.

Contudo, se, por sustentar os direitos do gênero humano e da imbatível verdade, contribuí para arrancar de morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas um inocente recambiado aos sentimentos da alegria e da ventura me confortariam do desprezo do resto dos homens.

(Cesare Beccaria)

Palavras-chave: Portador de sofrimento mental infrator – Medidas de segurança – Inconstitucionalidade do instituto.


Resumo

O instituto penal das medidas de segurança consiste em um "embuste das etiquetas", pois, apesar de ser punitivo na prática, é "vendido" com rótulo de tratamento. Em função da natureza punitiva, o instituto gera contradição dentro do próprio diploma punitivo pátrio, e conflita diretamente com nosso ordenamento constitucional.

Princípios basilares para a construção de um Estado Democrático de Direito, tais como presunção de inocência, vedação de pena de caráter perpétuo, e princípio da legalidade, são desprezados quando o réu é cidadão em sofrimento mental e considerado perigoso em função deste sofrimento.

Portanto, este trabalho é dedicado à análise crítica da natureza jurídica das medidas de segurança, bem como ao confronto deste instituto punitivo com a ordem constitucional vigente, inaugurada em 1.988.

Sumário:Introdução. 1. Das Medidas de Segurança. 1.1. História da Loucura. 1.2. Antropologia Criminal. 1.3. Breve História das medidas de segurança. 1.4. As medidas de segurança hoje. 2. Medidas de segurança: quando a presunção de periculosidade subverte a presunção de inocência. 2.1. A execução "provisória" das medidas de segurança. 3. Considerações finais acerca das medidas de segurança. Conclusão. Bibliografia. Anexos


Introdução

O presente trabalho tem como objetivo demonstrar teoricamente que as medidas de segurança são incompatíveis com o atual ordenamento jurídico constitucional brasileiro, e é baseado nos resultados obtidos na pesquisa de iniciação científica desenvolvida junto à Universidade Federal de Ouro Preto, não mantendo, no entanto, nenhum vínculo institucional.

A pesquisa foi realizada sob a orientação do Prof. Dr. Olímpio Pimenta Neto, e co-orientação do Prof. Dr. Virgílio de Mattos, e consistiu na busca pelos fundamentos do instituto analisado.

Ao longo dos trabalhos de investigação, foram desenvolvidas várias pesquisas: análise dos processos da Comarca de Ouro Preto – MG, nos quais se decretou a aplicação de medidas de segurança; levantamento da opinião dos alunos do curso de Direito na Universidade Federal de Ouro Preto, que estavam cursando as disciplinas de Sociologia Jurídica, Direito Penal I, II, III e IV, no primeiro semestre de 2009, a respeito da natureza do instituto; além da pesquisa teórica.

O instituto das medidas de segurança está previsto no Código Penal, e a indagação que norteia este trabalho é: Aplicar dispositivos legais basta? Em outros termos, a previsão legal é suficiente para justificar a aplicação de um instituto punitivo? Não basta. Parto do pressuposto de que todos os institutos jurídicos, principalmente os punitivos, necessitam de fundamentação razoável para serem aplicados.

(...) o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. Desde então, não tive razões para mudar de idéia. Mais que isso: essa frase que, dirigida a um público de filósofos, podia ter uma intenção polêmica – pôde servir, quando me ocorreu repeti-la no simpósio predominantemente jurídico promovido pelo Comitê Consultivo Italiano para os Direitos do Homem, como introdução, por assim dizer, quase obrigatória.

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. [01]

Assim, o problema que enfrento é o de como garantir os direitos dos cidadãos em sofrimento mental que, ao realizar conduta tipificada como crime, são submetidos às medidas de segurança.

O primeiro capítulo é dedicado à análise crítica do instituto, sua inconstitucionalidade, breves apontamentos sobre a história (de exclusão) da loucura, a fraqueza de seus fundamentos teóricos, sua história no ordenamento jurídico brasileiro, bem como sua inconsistência na atualidade.

O segundo capítulo demonstra que a presunção de periculosidade subverte a presunção de inocência, sendo que tal subversão atinge seu ápice com a execução provisória das medidas de segurança.

O terceiro e último capítulo nos mostra que a manutenção das medidas de segurança em nosso ordenamento jurídico, não obstante sua inconsistência jurídica e sua incongruência fática, se deve à satisfação dos interesses neoliberais.

Na conclusão se propõe a exclusão das medidas de segurança de nosso ordenamento, e sua substituição pelo tratamento puro e simples, desvencilhado do sistema penal. Tal proposta tem em vista o fato da nossa sociedade estar preparada para tal mudança, o que é demonstrado pela implantação do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator (PAI-PJ) no Estado de Minas Gerais, bem como métodos semelhantes em outros Estados.


1. Das Medidas de segurança

A aplicação das medidas de segurança pressupõe a realização de uma conduta delituosa por um cidadão perigoso, e promove a exclusão deste indivíduo do convívio social, para que o mesmo não volte a perpetrar condutas tipificadas como delituosas.

A periculosidade, apesar de requisito para a aplicação de uma sanção penal (§3º do art. 97, do Código Penal Brasileiro), não é conceituada legalmente, configurando, assim, hipótese de tipo penal aberto, sendo inconstitucional por exigir uma atitude valorativa do juiz ao conceituá-la e reconhecê-la, o que desrespeita o princípio da legalidade, dentre outras inconstitucionalidades verificadas na aplicação do instituto sob análise.

Ao realizar a valoração necessária à identificação da periculosidade, os magistrados recorrem à psiquiatria forense, que a conceitua como probabilidade de um cidadão causar dano à sociedade, ou a si próprio. [02] Assim, instaura-se o diálogo entre Poder Judiciário e Psiquiatria, no qual há uma inversão de valores: a Psiquiatria decide o destino do cidadão infrator, e o Poder Judiciário execução a decisão, promovendo o seu "tratamento".

Eis o pano de fundo procedimental da aplicação do famigerado instituto: ilegal e com valores invertidos. No entanto, isto parece não incomodar nossa sociedade, pelo fato das medidas de segurança serem uma maneira de lidar com os cidadãos em sofrimento mental, excluídos ao longo da história da humanidade.

Em virtude desta constatação, pertinente a análise, ainda que breve, da história dos tratamentos que a humanidade dispensou à loucura.

1.1. História da Loucura

Como decorrência de sua racionalidade, o homem sempre buscou respostas às indagações que incomodavam seu espírito. No entanto, as respostas são obtidas de acordo com o nível de avanço científico, tecnológico, e, principalmente, de acordo com a cultura vigente na sociedade.

Antes que a luz da razão nos impusesse a necessidade de explicações científicas, era a religião, principalmente através da Igreja Católica, que dava as respostas às principais indagações humanas na cultura ocidental.

O comportamento das pessoas que difere do apresentado por seus semelhantes – seja por ficar abaixo dos padrões do grupo, seja por superá-los – constitui um mistério semelhante e uma ameaça; as noções de posse pelo demônio e loucura dão uma teoria primitiva para explicar esses acontecimentos e os métodos adequados para enfrentá-los.

Essas crenças universais, bem como as práticas a elas ligadas, são os materiais a partir dos quais os homens constroem os movimentos e as instituições sociais. [03]

Foucault nos diz, em sua "História da Loucura na Idade Clássica", que a loucura é herdeira da estrutura deixada pela lepra. Assim, os leprosários não ficaram vazios por muito tempo, pois "Antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos, ou que pelo menos gostamos de supor que tem, o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura" [04].

Por sua vez, Thomas Szasz deixa claro quais são estas razões bem diversas da cura:

A definição original de loucura, apresentada no século XVII – como a condição que justificava o confinamento no hospital – se conformava às exigências para as quais este foi criado. Para ser considerado louco, era suficiente ser abandonado, miserável, pobre, não-desejado pelos pais ou pela sociedade. [05]

O referido autor nos diz ainda que a loucura é a sucessora da feitiçaria como bode expiatório da sociedade. Sobre a importância dos bodes expiatórios na sociedade, registra:

Os governantes, temerosos de perder o poder, redobram seu domínio; os governados, temerosos de perder a proteção redobram sua submissão. Nessa atmosfera de mudança e incerteza, os governantes e governados se unem num esforço desesperado para resolver seus problemas. Encontram um bode expiatório, consideram-no responsável por todos os males da sociedade, e passam a curar a sociedade ao matar o bode expiatório. [06]

Herdeira estrutural da lepra, e do status social da feitiçaria: eis a história da loucura antes de seu reconhecimento como doença da mente pela medicina. Percebemos, então, que no momento do seu reconhecimento médico como doença, a loucura já se encontra em um contexto social manifestamente excludente.

Com a antropologia criminal, a loucura é relacionada ao crime, e inicia-se o diálogo entre direito e psiquiatria. É deste diálogo que surgem as bases teóricas para a aplicação das medidas de segurança.

1.2. Antropologia Criminal

A modernidade caracteriza-se por estar iluminada pelas "Luzes da Razão", e representar, na história da humanidade, o momento em que o homem deixa de se contentar em ser apenas mais uma criatura feita por Deus e começa a perceber-se como ator social, como parte integrante e decisiva de uma cadeia causal complexa, e não meramente efeito cuja causa lhe é estranha.

A mais forte concepção ocidental da modernidade, a que teve efeitos mais profundos, afirmou principalmente que a racionalização impunha a destruição dos laços sociais, dos sentimentos, dos costumes e das crenças chamadas tradicionais, e que o agente da modernização não era uma categoria ou uma classe social particular, mas a própria razão e a necessidade histórica que prepara seu triunfo. [07]

Assim, a modernidade reclama respostas capazes de convencer a razão, e não apenas de acalentar o espírito. É neste contexto social, cultural e científico que Lombroso, o pai da Antropologia Criminal, produzirá sua obra "L'uomo Delinquente", fundamental para a escola penal antropológica, que tratará de "Loucura e crime, a tentativa, fascinante, de explicação de dois temas que chamam tanto a atenção" [08].

De acordo com o pensamento desta escola, o tipo criminoso é um ser humano a parte, diferente dos outros. O tipo criminoso é encontrado geralmente nas sociedades selvagens, razão pela qual a existência deste tipo na sociedade organizada, evoluída, é resultado do atavismo [09], ou seja, os criminosos são seres humanos que ocupam, em relação aos outros, posição inferior na linha evolutiva.

Os tipos atávicos (criminosos) são classificados, identificados e diferenciados entre si. Uma destas classificações, de grande interesse para o trabalho aqui proposto, é a dos criminosos loucos.

Os criminosos loucos apresentam muitas variedades; os loucos moraes, victimas desta enfermidade mental denominada "imbecilidade moral" (PRITCHARD), "loucura raciocinante" (VERGA) etc., que "consiste, em ultima analyse, na ausencia ou atrophia do senso moral, quasi sempre congenita, ás vezes adquirida" e coexistindo "com uma integridade apparente do raciocinio logico": são psychologicamente identicos ao criminoso-nato; além destes, "ha uma phalange de desgraçados que são affectados de uma fórma commum, mais ou menos apparente, de enfermidade mental, e que, neste estado pathologico, commettem delictos por vezes atrozes, nos casos, por exemplo, de idiotismo, de mania de perseguição, de mania furiosa, de epilepsia, ou attentados contra a propriedade e pudor, nos casos, por exemplo, de paralysia geral, epilepsia, imbecilidade, etc." [10].

Em meio às suas pesquisas, Lombroso identifica peculiaridades físicas nos tipos atávicos. O crime então passa a ser identificado em características físicas e a ciência penal sofre transformações radicais.

A temibilidade do delinquente e não a gravidade do delicto, é que deve servir de base e criterio para a meidade da pena, considerada como um remedio, um meio de defeza social.

Quanto maior for a temibilidade do criminoso tanto mais intensa e viva deve ser a reacção social; isto é: a gravidade da pena está na razão directa do gráo de temibilidade do delinquente.

A temibilidade do delinquente é maior ou menor conforme é maior ou menor a sua inadaptabilidade ou inidoneidade á vida social: quanto mais anti-social, mas temivel é o individuo, porque maior é o mal que delle se póde esperar. [11]

Fica evidente o retrocesso na ciência penal, e a importância assumida pela psiquiatria no diálogo com o direito penal, uma vez que aquela será chamada, enquanto ciência especializada, para reconhecer o criminoso louco, "psicologicamente idêntico ao criminoso nato", no contexto do processo penal.

Os métodos, utilizados nas pesquisas anteriores à elaboração da teoria antropológica, demonstram a fraqueza desta. Lombroso realizou suas pesquisas com indivíduos encarcerados, desconsiderando os criminosos que não foram alcançados pelo sistema penal da época, sendo a cifra negra evidência de que a pesquisa foi feita por amostragem, tornando suas conclusões fracas.

A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta. As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário. [12]

Outra informação pertinente às pesquisas, que demonstra a fragilidade da teoria, é a de que pouco mais da metade dos indivíduos analisados por Lombroso apresentava as características físicas do tipo atávico.

Além da existência de criminosos que não apresentavam os traços característicos do tipo atávico, outro contra-argumento à teoria é a constatação da existência de indivíduos que, apesar de apresentarem os traços característicos do tipo criminoso, passam a vida toda sem realizar uma única conduta criminosa.

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Em resposta a esta contra-argumento, os defensores da escola antropológica vão sustentar que o crime não é determinado apenas biologicamente, mas também por aspectos sociais, físicos, sustentando ainda que a influência destes últimos seja mais efetiva.

Nesta resposta teórica vislumbramos um forte indício do caráter seletivo da teoria antropológica, pois os indivíduos abastados financeiramente, em função da boa influência exercida pelo meio social em que se encontram, dificilmente cometerão crimes. Os alvos do Direito Penal, portanto, serão os de sempre: os marginalizados, incapazes de se adequarem aos meios de produção. As teorias mudam, o objeto permanece.

Das considerações anteriormente tecidas, podemos concluir que a teoria antropológica permite a manutenção de uma sociedade de castas bem definidas: os abastados gozam do meio e de todas as suas benesses; e os pobres sofrem os estigmas do Direito Penal, perpetuando-se assim a desigualdade social.

Outro contra-argumento forte à teoria antropológica é o de que as condutas criminosas são definidas pela sociedade, de acordo com sua evolução, determinadas no espaço e no tempo, e, portanto, não há que se falar em tipo criminoso. Diante de tal constatação, a teoria antropológica demonstra toda a sua fraqueza.

Pense-se, por exemplo, nas relações homossexuais, que, ainda em meados do século XX, eram criminalizadas em diversos países europeus, enquanto, hoje, ao contrário, advoga-se a criminalização de condutas de quem pratique discriminação motivada pela rejeição a tal orientação sexual. [13]

Apesar de toda fragilidade da teoria antropológica, ela permanece em voga em nosso ordenamento jurídico, pois a periculosidade, que justifica a aplicação das medidas de segurança, se apresenta como o crime em potencial que corre nas veias do "criminoso louco".

1.3. Breve história das medidas de segurança

As medidas de segurança aparecem de forma expressa apenas no Código Penal de 1940, diploma no qual se evidência a influência da "ciência" lombrosiana, especialmente sobre a redação do art. 76, que atribuía à periculosidade do agente o status de pressuposto de aplicação do instituto.

Apesar da realização de conduta tipificada como crime também aparecer no art. 76 como pressuposto de aplicação das medidas de segurança, o parágrafo único deste dispositivo previa a aplicação das medidas de segurança nos casos de crime impossível e de impunibilidade, quando verificada a periculosidade do agente.

Em relação à periculosidade, chama a atenção, no texto de 1940, a sua presunção, esculpida no art. 78. E, para agasalhar os perigosos não presumidos, os critérios para aferição da periculosidade eram demasiadamente vagos como, por exemplo, a insensibilidade moral. Em função desta vagueza, e sendo o crime considerado uma ofensa moral à determinada sociedade, o critério da insensibilidade moral se presta a qualificar como perigoso qualquer indivíduo que cair nas "malhas" do direito penal.

Assim, as medidas de segurança podiam ser utilizadas como instrumento jurídico de perseguição, dependendo apenas do interesse daqueles que manipulam o discurso legitimante. O art. 88 do texto de 1940, ao elencar as espécies de medidas de segurança, deixa claro o papel social desempenhado pelo instituto. Vejamos:

Divisão das medidas de segurança

Art. 88. As medidas de segurança dividem-se em patrimoniais e pessoais. A interdição de estabelecimento ou de sede de sociedade ou associação e o confisco são as medidas da primeira espécie; as da segunda espécie subdividem-se em detentivas ou não detentivas.

Medidas de segurança detentivas

§ 1º São medidas detentivas:

I - internação em manicômio judiciário;

II - internação em casa de custódia e tratamento;

III - a internação em colônia agricola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional.

Medidas de segurança não detentivas

§ 2º São medidas não detentivas:

I - a liberdade vigiada;

II - a proibição de frequentar determinados lugares;

III - o exílio local.

A existência das medidas de segurança patrimoniais, tal qual a detentiva de "internação em colônia agricola ou em instituto de trabalho, de reeducação ou de ensino profissional" demonstra os interesses que se escondiam por trás dos discursos humanitários de tratamento. Neste sentido, elucidativas as palavras de Gonçalves:

Apesar da luta antimanicomial e da existência de vários setores da sociedade, incluindo psiquiatras e psicólogos, favoráveis ao fim do tratamento nada consentâneo com a dignidade da pessoa humana dado por manicômios, hospícios e hospitais psiquiátricos aos seus pacientes, interesses poderosos parecem estar por trás destas instituições, visando mantê-las funcionando a qualquer custo. [14]

E, dando indícios de quais são estes "interesses poderosos", continua:

Os avanços no tratamento científico dado às doenças mentais ocorrido no século XIX, advindos de sua explicação psicológica e não apenas fisiológica, sobretudo após o surgimento da psicanálise, com Sigmund Freud (1856-1939), não impediram que ainda hoje subsistam tratamentos que violam direitos fundamentais dos pacientes e, mesmo que estes não mais sejam submetidos a lobotomia, continuam sendo tratados de maneira desumana e degradante pelos donos de manicômios e hospitais psiquiátricos, os quais muitas vezes recebem vultuosos repasses do poder público, sem falar no significativo estímulo da indústria de medicamentos, interessada em repassar as drogas mais novas produzidas pelo mercado de psicofármacos. [15]

As outras espécies de medidas de segurança resultam do medo, do medo do diferente, do medo do imprevisível, que na prática se traduz como exclusão. Exclusão absurda, irracional, mas que conta com o silêncio estarrecedor de toda a sociedade.

1.4. As medidas de segurança hoje

Este pode ser considerado, sem dúvida, o coração do presente trabalho. Neste capítulo analisaremos a natureza jurídica das medidas de segurança, bem como a adequação do instituto em relação ao ordenamento jurídico vigente, como decorrência lógica e jurídica de sua natureza.

1.4.1. A Natureza Jurídica das Medidas de Segurança

A questão relativa à natureza jurídica das medidas de segurança não é pacífica, apesar da existência de poucos trabalhos versando sobre o tema. Não obstante a divergência doutrinária, este tópico é dedicado à análise crítica das possíveis naturezas jurídicas do instituto, visando a que melhor explica o instituto.

1.4.1.1. Natureza dúplice

Trabalhemos inicialmente a natureza dúplice, uma vez que é assim que o instituto se mostra no texto legal: tratamento que se efetiva como consequência do cometimento de um crime. Qualquer argumento apresentado na tentativa de sustentar esta natureza é falacioso, implausível, pois o tratamento consiste no exercício do direito à saúde, garantido constitucionalmente, com eficácia plena, sendo inadmissível o seu condicionamento ao cometimento de um crime.

Assim, percebemos que se aceitarmos a natureza dúplice das medidas de segurança, a conclusão é contraditória não só ao Estado Democrático de Direito contemporâneo, mas a qualquer Teoria de Estado, pois existiriam direitos cujo exercício estariam sujeitos ao cometimento de um crime. Seria sanção premial para condutas indesejadas. Com Sérgio Carrara percebemos que a contradição da natureza dúplice não se limita ao nível teórico, atingindo também o nível institucional.

Prenhe de consequências práticas, a diferença entre o asilo e a prisão, visível através do MJ, está amplamente ancorada nas definições opostas que mantemos a respeito do estatuto jurídico-moral dos habitantes de cada uma das instituições. Para a prisão enviamos culpados; o hospital ou hospício recebe inocentes. [16]

E para o manicômio judiciário, são enviados quais indivíduos? Os culpados-inocentes? Ou inocentes-culpados? A contradição da natureza jurídica dúplice do instituto é intransponível. Aceitar a natureza dúplice é admitir que a humanidade retorne ao estado de natureza exposto pelos contratualistas.

Negaríamos, portanto, o importante papel da racionalidade na construção de um Estado de Direito, e seríamos irracionais ao tentar lidar com uma suposta e pretensa falta de razão.

Logo, restam derrubados os argumentos embasados meramente nas letras da lei, pois somos levados a uma contradição intransponível. Teçamos, agora, algumas considerações a respeito do instituto, tendo em vista seu aspecto assistencial.

1.4.1.2. Natureza Assistencial

Ao longo da pesquisa realizei o levantamento da opinião dos colegas, onde foi constatado, conforme gráficos constantes do anexo, que a maioria dos colegas entendeu ser assistencial a natureza jurídica do instituto.

No entanto, ao serem questionados sobre a existência de um prazo para tratamento inerente aos sofrimentos mentais, poucos foram os que responderam afirmativamente, mas todos estes foram categóricos ao dizer que tal prazo não está contido entre 1 (um) e 3 (três) anos, prazo mínimo estipulado pelo Código Penal Brasileiro para aplicação das medidas de segurança.

Os argumentos favoráveis à natureza assistencial acabam chegando a um ponto insustentável, principalmente quando voltamos nossa atenção para o conteúdo da lei nº 10.216/01, que trata dos direitos dos cidadãos em sofrimento mental.

Fazendo tal exercício percebemos que o referido diploma legal traz em seu cerne disposições suficientes sobre o tratamento destes cidadãos, e teríamos um conflito de leis, pois a parte do CP que dispõe sobre as medidas de segurança e a lei nº 10.216/01 tratam do mesmo tema.

Estaria configurado, assim, o conflito entre tais normas, sendo um comezinho de interpretação a regra de que a lei especial revoga a lei geral quando com ela for incompatível. Portanto, não haveria mais espaço legal para a existência das medidas de segurança.

Não obstante a constatação da revogação das medidas de segurança pela Lei nº 10.216/01, através do critério da especialidade, o princípio geral de direito de que a lei posterior revoga a anterior nos leva a mesma conclusão. Assim, à luz da aplicação dos critérios de aplicação das leis no tempo, insustentável a natureza assistencial do instituto, pois se assim fosse, as medidas de segurança não vigeriam mais em nosso ordenamento.

Ademais, a referida lei, em seu art. 6º, parágrafo único, elenca os tipos de internação, sendo compulsória aquela determinada pela justiça, consistente nas medidas de segurança. Percebemos aqui, mais uma vez, a inconsistência dos argumentos que defendem o caráter assistencial do instituto, pois a internação ocorre compulsoriamente, de maneira que o internado fica privado do gozo de seu direito de ir e vir, como consequência do suposto cometimento de um crime. O que é esta internação se não uma forma mascarada de punição?

Não obstante a força de tal indagação, bem como a fraqueza dos argumentos que sustentam a natureza assistencial, o Supremo Tribunal Federal firmou, através da súmula 422, entendimento favorável à natureza assistencial do instituto sob análise, ao enfrentar a impropriedade técnica, consistente no caráter absolutório da sentença que decreta a aplicação da medida de segurança. A referida súmula nos diz que: "A absolvição criminal não prejudica a medida de segurança, quando couber, ainda que importe privação da liberdade".

No entanto, evidenciando a insustentabilidade do entendimento sumulado por nossa Corte Excelsa, uma análise mais aprofundada da Lei nº 10.216/01 demonstra que, se as medidas de segurança promovessem tratamento de fato, deveriam ocorrer modificações no processo penal, como consequência lógica e jurídica da sua vigência, mudanças estas não verificadas na prática.

O referido diploma legal, no caput de seu art. 6º, dispõe que a internação psiquiátrica depende de um laudo médico circunstanciado que a justifique. Assim, se o instituto fosse de fato assistencial, restaria mitigado o princípio da persuasão racional do magistrado, uma vez que a aplicação das medidas de segurança estaria dependente de um laudo psiquiátrico justificando o tratamento.

o princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional, que implica que o juiz deve se ater à prova dos autos (o que não está nos autos não está no mundo), mas no exame da prova terá o magistrado liberdade para apreciá-las, segundo seu próprio convencimento, valorando-as da maneira que melhor entender (...). [17]

Existem, ainda, outros reflexos processuais que deveriam ser observados se o instituto fosse assistencial. O art. 4º do mencionado diploma legal deixa claro a excepcionalidade da internação, ao dispor que esta só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

Assim, uma interpretação sistemática do referido diploma legal nos leva a conclusão de que as medidas de segurança só poderiam ser aplicadas nos casos em que restarem esgotadas todas as tentativas de tratamento extra-hospitalar, e houver nos autos do processo laudo psiquiátrico que acuse tal esgotamento e justifique a internação, o que não se verifica na prática.

A análise exegética das medidas de segurança também deixa transparecer a fraqueza dos argumentos que se propõe a defender o caráter assistencial do instituto. Vejamos os itens 87 e 88 da exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal, sobre as medidas de segurança:

87. Extingue o Projeto a medida de segurança para o imputável e institui o sistema vicariante para os fronteiriços. Não se retomam, com tal método, soluções clássicas. Avança-se, pelo contrário, no sentido da autenticidade do sistema. A medida de segurança, de caráter meramente preventivo e assistencial, ficará reservada aos inimputáveis. Isso, em resumo, significa: culpabilidade – pena; periculosidade – medida de segurança. Ao réu perigoso e culpável não há razão para aplicar o que tem sido, na prática, uma fração de pena eufemisticamente denominada medida de segurança.

88. Para alcançar esse objetivo, sem prejuízo da repressão aos crimes mais graves, o Projeto reformulou os institutos do crime continuado e do livramento condicional, na forma de esclarecimentos anteriores.

Na exposição de motivos o legislador evidenciou sua preocupação com a repressão aos crimes mais graves, ressaltando o caráter preventivo do instituto. A prevenção, como se verá mais detalhadamente adiante, é uma das finalidades da pena, o que evidencia o aspecto punitivo do instituto.

A leitura constitucional do instituto, considerado o seu aspecto assistencial, mostra o desrespeito à direitos fundamentais. Os pacientes "normais" têm o direito de optar entre seguir o tratamento prescrito por um médico ou não, já o cidadão em sofrimento mental, que possui em seu desfavor um laudo psiquiátrico constatando sua periculosidade, será, inevitavelmente, submetido ao tratamento determinado pelo juiz, tendo, desta forma, suprimida sua liberdade de ir e vir, e também a de escolha.

A realidade à qual se encontram submetidos os cidadãos em sofrimento mental infratores também demonstra o caráter punitivo do instituto. Excluídos, internados em "hospitais de custódia" (eufemismo para manicômio judiciário), sendo tratados com psicofármacos de última geração, lobotomia, eletrochoque, entre outros.

Por fim, para não restar dúvida quanto à insustentabilidade dos argumentos em prol do caráter assistencial do instituto, temos a análise teleológica do mesmo, que deixa transparecer a preocupação única com a sociedade, pois, nos termos do parágrafo terceiro do art. 97 do CP, a desinternação ou liberação do cidadão que se encontra submetido à medida de segurança está condicionada à cessação de sua suposta periculosidade, e não à sua cura ou evolução do pretenso tratamento.

Logo, as medidas de segurança, por serem um instituto que cerceia direitos, mormente à liberdade, e serem aplicadas como consequência da realização de uma conduta tipificada como crime, incontestavelmente possui natureza jurídica punitiva.

Desta forma, os argumentos que defendem o seu caráter assistencial são implausíveis, o que nos faz perceber que estamos diante do "embuste das etiquetas" apresentado por Kohlrausch [18]. Diante das inconsistências dos argumentos que apontam para a natureza assistencial das medidas de segurança acima demonstradas, resta apenas a natureza punitiva do instituto.

1.4.1.3. Natureza punitiva

As medidas de segurança são "verdadeiras sanções penais, pois participam da natureza da pena, tendo porém existência em função da perigosidade do agente". Penas e medidas de segurança são portanto, a nosso ver, duas espécies do mesmo gênero: o gênero sanção penal. Por essa razão, o nosso sistema legal prevê a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por medida de segurança, no caso de agente semi-imputável, e também a possibilidade da contagem do tempo de prisão provisória para fins de detração dos prazos mínimos de duração das medidas de segurança, além de prever que, extinta a punibilidade, não se imporá medida de segurança nem subsistirá a execução da que tenha sido imposta. Tais evidências contradizem frontalmente a opinião dos que defendem a diversidade de natureza jurídica de ambos os institutos. [19]

Sendo punitivo o instituto, há uma contradição dentro do próprio Código Penal, pois, conforme dispõe o art. 26 do referido diploma legal:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

A única conclusão possível é: punimos aqueles que são, declaradamente, isentos de pena. Contradição intransponível!

Supomos, na construção de um Estado Democrático de Direito, que qualquer indivíduo somente possa ser punido como consequência do cometimento de um crime. Não é o que ocorre com a aplicação das medidas de segurança. Conforme dispõe o art. 386 do Código de Processo Penal:

O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

(...)

VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;

(...)

Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz:

(...)

III – aplicará medida de segurança, se cabível.

Mais uma contradição: além de punirmos os inimputáveis, punimos inocentes, em claro desrespeito ao princípio da presunção de inocência, e, também, à razão, uma vez que a punição recai sobre aqueles reconhecidamente inocentes. Injustiça!

Reforçando a tese do caráter punitivo do instituto, temos o parágrafo único do art. 96 do Código Penal, que condiciona a aplicação das medidas de segurança à existência de punibilidade.

A liberação do indivíduo condicionada à cessação de sua periculosidade demonstra a adoção do princípio in dubio pro societate em relação ao instituto sob análise, subvertendo assim o in dubio pro reo, decorrência lógica e necessária da presunção de inocência, demonstrando que o instituto se encontra em rota de colisão com a nossa Carta Política.

De acordo com o caput do art. 97 do Código Penal, nos casos de crimes puníveis com reclusão, o cidadão em sofrimento mental será submetido à medida de segurança de internação, e, nos casos de crimes puníveis com detenção, poderá, a critério do juiz, ser submetido à tratamento ambulatorial.

Este critério reforça os argumentos no sentido da natureza jurídica punitiva do instituto, pois os crimes mais graves culminam na aplicação de medida de segurança mais rigorosa, transparecendo o princípio da proporcionalidade, próprio da aplicação das penas.

Dentre os processos analisados durante a pesquisa, o caso de RSN foi, entre todos os analisados, o que mais nos chamou a atenção. RSN foi acusado de ter cometido dois homicídios: um 24/01/1985, cuja vítima foi sua vizinha, morta a golpes de machadinha; e o outro em 02/02/1987, cuja vítima foi sua companheira, morta a pedradas, sofridas na região da cabeça.

RSN fora julgado pelo Tribunal do Júri apenas em 24 de julho de 2006 pela morte da vizinha, e no dia subsequente pela morte da companheira. Em relação às sentenças absolutórias impróprias de RSN, chamou-nos a atenção a inobservância dos critérios legais para a determinação da espécie de medida de segurança a ser aplicada, e a ausência de fundamentos para tanto, pois no dia 24 foi decretado o tratamento ambulatorial, e no dia seguinte foi determinada a internação de RSN, sem que as sentenças apontassem o motivo da discrepância.

Outro princípio constitucional desrespeitado com a aplicação das medidas de segurança é o da anterioridade da lei penal, pois os cidadãos em sofrimento mental "criminosos" são punidos não pela conduta delituosa supostamente realizada, mas pelos crimes que podem vir a cometer, e não há uma lei determinando que ser considerado potencialmente criminoso seja crime.

Nesta esteira de considerações merece destaque o fato de que a psiquiatria será chamada para reconhecer a presença ou ausência da periculosidade, cuja vagueza nos leva a supor que os petrechos de trabalho do psiquiatra forense sejam o "periculômetro" e a "bola de cristal", tudo funcionando a favor da exclusão ad vitam.

O parágrafo primeiro do art. 97 do Código Penal estabelece o limite mínimo para a aplicação das medidas de segurança, mas não o seu limite máximo, o que torna possível a aplicação do instituto ad aeternum, em colisão frontal com o dispositivo constitucional que veda a pena de caráter perpétuo.

Assim, após tantos exercícios na tentativa de encontrar a natureza jurídica das medidas de segurança sem esbarrar em nenhuma contradição, chegamos à conclusão de que as mesmas promovem a exclusão, a punição pura e simples, e que, assim, o instituto se mostra inconstitucional.

Para dizer com Thomas S. Szasz: "Se considerássemos o internamento psiquiátrico involuntário como um crime contra a humanidade, o problema de saber quem deve ser internado também desapareceria." [20]

1.4.2. A conduta dos cidadãos em sofrimento mental infratores é de fato criminosa?

A aplicação das medidas de segurança pressupõe a realização de uma conduta típica. Mas, tecnicamente, é criminosa a conduta dos cidadãos em sofrimento mental? Na tentativa de responder a esta pergunta, analisemos a conduta daqueles que são "inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento" à luz do conceito analítico de crime, adotado por nosso Código Penal.

Segundo este conceito, o crime é a conduta humana, ilícita ou antijurídica, típica e culpável. Devo acrescentar que a elite, política e econômica, será responsável pela seleção das condutas criminosas, no processo de criminalização primária.

Analisemos, portanto, cada um dos elementos do conceito analítico de crime, para verificarmos se a conduta dos cidadãos em sofrimento mental pode ser tecnicamente classificada como criminosa.

A conduta humana consiste em uma ação ou omissão pautada por uma finalidade. Neste ponto, já nos deparamos com uma grande dificuldade em definir como criminosa a conduta dos cidadãos em sofrimento mental, pois não há como identificar uma finalidade na conduta daqueles que são "inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento", uma vez que, se não são capazes de realizar juízos de valor, tampouco o serão de ter condutas visando um resultado.

A única forma de vencer esta dificuldade é desconsiderar o indivíduo em toda a sua complexidade, e levar em conta apenas o aspecto mecânico, ou seja, o cidadão entendido apenas como causa cujo efeito é o crime.

A consequência deste entendimento é a coisificação do cidadão, que deixa de ser entendido como sujeito dos próprios direitos, e passa a ser objeto dos direitos alheios, direito dos outros cidadãos em ter um ambiente mais agradável, sem a presença do estranho, do diferente, do imprevisível.

Assim, para que a conduta dos cidadãos em sofrimento mental possa ser tecnicamente classificada como criminosa, a mesma deve ser considerada apenas objetivamente, em claro retrocesso da teoria do delito, por negar, na composição do crime, a clara existência do elemento subjetivo.

A ilicitude e a tipicidade da conduta dos cidadãos em sofrimento mental são elementos do conceito analítico que não apresentam grandes discrepâncias em relação à conduta dos "normais", razão pela qual não serão tecidas aqui maiores considerações sobre tais elementos.

A culpabilidade é o elemento de maior relevância para o exercício de se classificar, tecnicamente, a conduta dos cidadãos em sofrimento mental como criminosa. Das várias teorias acerca da culpabilidade, destacaremos aqui as que demonstraram maior importância ao longo da história da dogmática penal.

A culpabilidade, nos primeiros tempos da dogmática, se assentava na teoria psicológica. Perquiria-se acerca do nexo-causal (físico), questionando se a conduta havia ou não causado o resultado e de um nexo psíquico, ou seja, a existência de uma relação psicológica entre a conduta e o resultado, que nada mais é o que hoje, nós, os finalistas, denominamos de nexo de finalidade. [21]

Percebemos que, através da teoria psicológica da culpabilidade, não há que se falar em crime cometido pelos cidadãos em sofrimento mental, pois ausente a relação psicológica. Ademais, esta teoria pressupõe o conhecimento da ilicitude do resultado, razão pela qual é insuficiente para adequarmos a conduta dos cidadãos em sofrimento mental ao conceito analítico de crime.

No princípio do século XX começa a ser defendida a teoria complexa da culpabilidade, segundo a qual a culpabilidade consiste num juízo de reprovabilidade. Tal juízo está diretamente relacionado com a possibilidade do indivíduo realizar conduta diversa da criminosa, ideia melhor desenvolvida no contexto da teoria normativa pura da culpabilidade. :

Para os autores que professam a teoria causal-mecanicista, acostumados a ver na culpabilidade uma carga de elementos inexplicavelmente amalgados, fundidos, e, por conseqüência, de explicitação bastante complexa e cansativa, a culpabilidade, sem os elementos dolo e culpa tornou "vazia", expressão que se atribui a ARTHUR KAUFMANN. Daí a reiterada, mas injustificada afirmação de que a culpabilidade desprovida do dolo e da culpa sofreu um injustificado processo de esvaziamento. Isto, na realidade, não ocorre. "Se observamos atentamente a teoria ou concepção normativa da culpabilidade, veremos que ela está longe de ser vazia de conteúdo. Vemos na culpabilidade, como critérios legais de reprovação do injusto ao seu autor, dois núcleos temáticos que constituem árduos problemas jurídicos: a possibilidade de compreensão da antijuridicidade e um certo âmbito de autodeterminação do agente. Dito de outro modo: para reprovar uma conduta ao seu autor (isto é, para que haja culpabilidade), requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha". [22]

De acordo com estas teorias também é impossível classificar-se como criminosa a conduta dos cidadãos em sofrimento mental, por não podermos exigir-lhes conduta diversa. Assim, ainda que tenhamos conduta humana, ilícita e típica por parte dos cidadãos em sofrimento mental, não podemos falar tecnicamente na culpabilidade dos mesmos, pela própria definição esculpida no art. 26 do CP.

Sob o véu da periculosidade, punimos inocentes, punimos inimputáveis, sendo que sequer podemos classificar a conduta dos cidadãos em sofrimento mental como delituosa. Absurdo! Absurdo que se engrandece quando percebemos que a aplicação das medidas de segurança colocam em prática o direito penal de autor.

1.4.3. Direito Penal de Autor

O direito penal de autor é fruto de uma concepção de crime que relaciona o crime à uma espécie de predisposição do criminoso.

Este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. [23]

No "estado perigoso", o delito cometido pelo indivíduo demonstra que há algo errado no corpo social, que pode provocar o seu colapso, daí a ideia de perigo. Por via das conseqüências, o crime cometido não é uma situação valorada e valorável por si só, mas apenas um demonstrativo da personalidade criminosa de quem o cometeu.

Detalhe interessante neste salto dado do crime para a personalidade perigosa do criminoso é a completa falta de critério para identificar a personalidade perigosa. O caso de Pierre Rivière, narrado por Foucault, é paradigmático desta falta de critério, pois, além da sua (in)imputabilidade não ser consensual entre os "especialistas" que o examinaram, tem-se a constatação de que os fatos indicativos de sua "loucura moral", são, no mínimo, inusitados.

Dentre esses fatos, destaca-se o de Pierre ter o costume de sacrificar pássaros quando criança, numa espécie de ritual. Não fosse o crime, tais sacrifícios seriam tidos como mera "travessura de criança", mas, como houve o crime, as "traquinagens" da infância se transformaram, como num passe de mágica, em indicativos de que sua personalidade perigosa, anti-social, já se manifestara desde a tenra idade.

O vocabulário hermético (anamnese, avaliação prospectiva, diagnóstico nosológico, por exemplo), rebuscado, utilizado pelos psiquiatras, aliado às expressões latinizadas dos juristas, contribuem para que o (ou a falta de) critério de aferição da periculosidade seja conhecido por poucos, e, principalmente, não acessível ao examinado.

Assim, a seletividade dos "clientes" do direito penal de autor não aparece claramente, e, para mascará-la aos olhos da sociedade, é utilizado um linguajar técnico, no mais das vezes confuso, que Alessandro Nepomoceno chamou de "Código Tecnológico" e definiu da seguinte maneira:

Observa-se que existe um amplo espaço de discricionariedade para a decisão daquele que opera no sistema penal, sendo que todas as agências de poder que compõem este já fizeram julgamentos de cunho ideológico. Aquele que está chegando ao Judiciário vai sofrer o último julgamento. O magistrado analisará o caso de acordo com suas convicções pessoais sobre o fenômeno criminal. A partir daí, como já se sabe nos bastidores dos fóruns, já está praticamente concluída a condenação. Às vezes até mesmo já no interrogatório.

Contudo, a sentença penal não poderia expressar a convicção de foro íntimo do julgador, suas angústias, seus medos, suas frustrações, raivas entre outras coisas. Ela teria que apresentar fundamentação técnica apta a respaldar a decisão condenatória ou não. Aí entra o código tecnológico, que opera nas decisões judiciais relativas à individualização (juízos de periculosidade etc.) e, sobretudo, nas decisões penitenciárias relativas à execução da pena (exame criminológico, progressão de regimes etc.), instrumentalizando-as, seu código ideológico legitima a seleção e estigmatização que delas resultam. [24]

A utilização do "Código Tecnológico" gera insegurança jurídica, e, pela via das consequências, permite que o direito penal seja utilizado como instrumento jurídico "legítimo" de perseguição aos inimigos da ordem que se quer impor. Historicamente, tal utilização pode ser exemplificada pelo nazismo e pela "guerra contra o terrorismo".

Tal insegurança é fruto, também, da subversão do ordenamento penal, pois este baseia-se no fato cometido livre e conscientemente, e não na predisposição do criminoso ao cometimento de crimes. Portanto, a aplicação das medidas de segurança, ao reclamar a efetivação do direito penal de autor, subverte o ordenamento jurídico penal.

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Sobre o autor
Anderson Henrique Gallo

Advogado criminalista atuante em Ouro Preto - MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLO, Anderson Henrique. Medidas de segurança: quando a irracionalidade se propõe a cuidar da pretensa falta de razão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2932, 12 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19520. Acesso em: 28 mar. 2024.

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